quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Mais do Mesmo



Eu sou, sou do terreiro, eu vim de lá
E estou com saudade de lá para ser franco...”

(Terreiro de Jesus - João Bosco, Edil Pacheco e Francisco Bosco)


De onde menos se espera, daí é que não vem nada mesmo, ouço meu pai repetir desde que me entendo por gente. Mais admirável do que a grande imprensa continuar monocórdia e repetitiva é tanta gente ainda dando trela para o que ela segue a alardear. O arqui-previsível Luis Fernando Vianna não decepcionou, mais uma vez, ao escrever semana passada sobre a nova etapa do ótimo projeto É tradição, e o samba continua, dessa vez levado ao teatro do Sesc Vila Mariana. A matéria poderia muito bem chamar-se “Já é tradição, a lenga-lenga continua”. As mesmas citações, os mesmos clichês, os mesmos entrevistados, as mesmas falsas questões. Haja.

Rômulo Fróes mandou até bem, ao dizer que o samba não tem dono. Não tem mesmo. Lembrei, entretanto, do velho revolucionário patrício de meu avô, Georg Lukács, que foi quem descobriu que não adiantava somente a gente abolir as formas econômicas típicas do capitalismo. Para perfazermos uma verdadeira revolução, as mentalidades tinham que se libertar da forma capitalista de pensar e de ver o mundo que as colonizava, mesmo quando o modelo econômico já não funcionava segundo as regras desse capitalismo. E é daí que o bom Rômulo, a despeito de reconhecer que o samba não pertence a ninguém, continua indo a ele com o ímpeto da apropriação, com alma de proprietário - aquele que usa, goza e dispõe, como aprendi nas lições de direito civil, lá no século passado. E isso só é possível porque, diferentemente do que ocorreria nas sociedades tradicionais, onde o que não tem dono pertence ao coletivo, à natureza, ao universo, aos deuses etc., e portanto não se pode dispor como se bem entende, segundo a mentalidade colonizada pelo capitalismo, o que não tem dono está aí como coisa apta a ser apropriada, coisa devoluta, não só para se usar ou gozar, mas sobretudo para se dispor. Apropriação, aliás, é uma palavra que anda na moda.

Mas afora os atos falhos nossos de cada dia, o samba como elemento estético (sonoro, cênico, figurativo etc.), e até mesmo como elemento comportamental, pode ser mesmo disposto da forma como a propalada liberdade ocidental preconiza. Cada um faz o que quer. Como fizeram Donga e o Peru-dos-pés-frios, em 17, ou como os estacianos uma década depois; como o Bando-da-Lua, as orquestras dos anos 40 e o samba-canção de Dick e Lúcio; como João Gilberto, Jorge Ben e Tom Zé; como Benito de Paula, nos 70, Fundo de Quintal, nos 80 e as Super-Escolas-Samba S/A; como o É o tchan, o Raça Negra e o Seu Jorge; como o Kiko Dinucci, o Rodrigo Campos e quem mais queira. E o samba não deixou de ser samba, não ficou menos samba ou mais samba. Vai ficando sambas.

Meu irmãozinho Dinucci mandou mal. Em tempos em que a moda é o vale-tudo geral, auto-investido na função de polícia de costumes, esculhambou o bicolor e o panamá da rapaziada, devidamente enfatiotado no seu pretinho básico, vejam vocês. Seria engraçado, se não fosse espantoso. Mas a “onda” não é cada um fazer o que quer? Então o menino da periferia não pode achar bonita a figura do pai, do avô ou do bisavô – ou a do herói mítico da raça, o negro respeitado, o bamba, o compositor, o malandro, o desafiador, o talentoso? - engomadinho num S-120 luzindo de branco? Só o rapper então é que pode meter um tênis de marca americana, fabricado na China? Aí, é muderno, O advogado metido no seu terno sofrido do dia a dia é cultor do passado. Piercingtatoo, é liberdade de expressão, essa que é a pegada. Talvez para o bom Kiko, usar filà, agbadá, bùbá, gélé, aso ìró, também esteja presentemente soando como culto “exagerado” ao passado. Mas pior que a gafe é o conceito (ou a falta de), até porque a arte de conceituar exige talento, técnica e treino, tanto como as de compor, tocar, cantar, nas quais ele é mestre e nada de braçada: “Enquanto isso, ritmos periféricos como funkrap e tecnobrega assumem o diálogo com as questões contemporâneas, coisa que o samba perdeu há muito tempo.” Só não disse em que sentido(s) o samba é mais “central” - por oposição a “periférico” - do que os aludidos. Não pode, certo, estar se referindo à periferia geográfica, pois é de lá e conhece, como não esconde no ótimo samba “Depressão periférica”. Baseia-se ele na programação das grandes rádios, das grandes emissoras de TV? Seria o sambista um beneficiário “do sistema”, e o rapper um contestador, um excluído? Não bastasse a ululante falta de perspectiva histórica da afirmação, não esclarece nem de longe, também, o que quis dizer com “perder o diálogo com as questões contemporâneas”. O que é diálogo? É troca, é influência, é mistura? Então ele estaria desdizendo a si próprio e aos seus, como parece cediço. E o que seriam as tais “questões contemporâneas” também ficamos sem saber. Estéticas? Éticas? Políticas? Filosóficas? Talvez históricas, ou sociais? Qualquer que fosse a resposta, não consigo vislumbrar em que medida perderam a percepção do contemporâneo – se é a isso  que pretendeu se referir - autores de samba tão distintos no tempo, no espaço e no estilo como Nei Lopes, Douglas Germano, Paulo César Pinheiro, Roberto Didio, Luiz Carlos Máximo, Martinho, Aldir Blanc, Paqüera, Luiz Grande, Leci Brandão, Edvaldo Galdino... Todos bem vivinhos e produzindo, sim senhor, como tantos e tantos outros. É tanta modernidade, que de repente se perde a percepção de que as formas de “dialogar com o contemporâneo” que podem ser reputadas válidas, sob um determinado ponto de vista, podem não ser as únicas possíveis.

Euzinho aqui, a bem da verdade, não tenho nada a ver com isso. Só adquiri o mau vício de não ouvir abobrinha calado. Vou seguindo minha sendazinha despretenciosa, empenhado na tarefa árdua de não ser o elo fraco da corrente. Ora acusado de vendilhão pelos justiceiros da cultura popular made in Vila Madalena, ora queimado na fogueira inquisitiva dos guardiães da virgindade mítica, ora desdenhado como uma anta babante pelos neo-pensadores do desconstrutivismo multi-tudo, vou despreocupado. Até porque o que nós realmente nos preocupamos em fazer não é propriamente o samba. É roda-de-samba, coisa muito diferente, como tão bem sacramentou, antes de nos deixar, o nosso bom Roberto M. Moura. Que é rito, é celebração, é divertimento, é jogo, é espaço de trocas simbólicas, de mediações sociais supra-conceituais, de ajustamentos negociados, de evocações, de reminescências, de projeções. E disso ninguém se apropria nem fácil, nem impunemente. E fazemos porque nos preocupamos, acima de tudo, em preservar alguns importantes referenciais que fundam nosso sentimento de pertença a um determinado contexto cultural. Referenciais que não estão relacionados diretamente com uma antigüidade cronológica, não por "serem antigos", mas ao contrário, por serem perenes, por pertencerem a uma esfera de anterioridade atemporal (do que está antes, do que está por trás). E, juntamente com esses referenciais, formas de sociabilidade neles baseadas, mais horizontais, mais plurais, mais dinâmicas, mais interativas, menos engessadas nos regramentos formais a priori, mais despidas de preconceitos, mais estribadas na expressividade-emotividade do que na lógica calculista de meios e fins etc. Etc. Pra podermos viver, nem que seja por alguns instantes, num mundo mais parecido com aquele que sonhamos.

Sigo, assim, tranqüilo, ainda que cansado. Com saudade do terreiro de onde eu vim, onde não impera a vaidade; onde não há patrão, nem senhor , nem lugar pra pai-joão, nem tempo pra conversa-mole; onde “bobo é bobo, bamba é bamba”. Esse terreiro que não fica em lugar nenhum, mas que a gente tenta recriar em cada roda, no butiquim ou no fundo do quintal. Onde, afortunadamente, muita gente ainda se reconhece. E ri, e chora, e ama, e reverencia, e se entrega, se indigna, se coloca, troca, disputa, recebe, interfere, chama, ouve, percebe, diz, faz, aprende, ensina, pede, dá. Mas isso não se diz nos jornais. E não se dirá, enquanto forem sempre os mesmos a serem ouvidos. Enquanto deles permanecerem apartadas as vozes dos compositores desconhecidos, dos batuqueiros anônimos, dos apreciadores atentos, dos diletantes amadores, dos conhecedores sem bazófia, dos negros ancestrais. Dos brasileiros comuns, efetivos artífices, na despretensão de seu dia a dia, desse sentimento que não se constrói nas academias, não se compra no xópim, nem se baixa na internet. Que não está a mercê dos jornalistas, dos descolados, nem dos donos do que quer que seja.