quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Ressaca


Bem, passado o referendo deste último domingo, volto à carga somente à guisa de conclusão, até porque a partir do texto de semana passada é que pude entabular as melhores discussões sobre o assunto, nos comentários, pelo correio eletrônico, em casa, ou com meus pares da Confraria S.E.M.P.R.E.

Tive a felicidade de ouvir belíssimos argumentos favoráveis a ambas posições, pelo que julguei respeitável a decisão de alguns, pelo sim, pelo não, ou pelo branco/nulo. Não de outros, confesso que a estrondosa maioria, movidos pela anteriormente apontada onda da costumeira babaquice geral da república, que acabou por opor pacificistas ingênuos a conservadores paranóicos. Ao fim e ao cabo cravei o "sim" impulsionado decisivamente pelos argumentos de meu querido amigo, (não mais tão) jovem e (sempre e cada vez mais) brilhante advogado paulistano, Maurício Silveira.

Argumentamos, debatemos, discordamos e concordamos. O que me moveu decisivamente acabou sendo o caráter simbólico, como recado indicativo de vontade política, como utopia a ser perseguida, tendo em vista que os efeitos práticos eram controversos e que o mérito da comercialização em si não se confunde com a questão do acesso e utilização (porte) da arma de fogo. E passada a vaga algo tormentosa, convenci-me do acerto da minha particular opção. Porque, como já previa o bom Dr. Maurício, a vitória do "não", pela forma como se deu, teve um significado político-simbólico altamente negativo, perdoada a redundância. Provas incontestes, os números paulistanos sinalizaram acachapantes vitórias do "não" em bairros como Perdizes, Vila Mariana, Indianópolis, Morumbi, Moóca, todos redutos de classe média a alta, enquando o "sim" fez-se mais presente nos piores guetos de miserabilidade e violência, como Capão Redondo, Paralheiros, Grajaú, São Mateus e Piraporinha. Não consegui os dados do Rio de Janeiro, mas duvido muito que sinalizem em outra direção. Simbologia claríssima da vontade de uma população que sabe o que é a vida civil cotidiana brasileira povoada pela violência real, em oposição à da população atormentada muito mais (mas não só) por um certo pânico induzido do que pela efetividade das ameaças.

Mas sem dúvida foi o pleito mais estranho da minha vida. Acostumado a defender minhas opções com unhas e dentes, vi-me brigando com três pessoas diferentes no sábado, contestando seu pífios e ingênuos argumentos pelo "sim". Aos camaradas comunistas (que acabaram por indicar a opção correta, mas com argumentos fracos, quando não falseáveis), por exemplo, repasso a pergunta que me fez o chofer do táxi que me levou ao meu colégio de votação: "Doutor, sem arma pra comprar legalmente, como a gente vai fazer quando os cidadãos tiverem que se levantar contra a tirania do governo?". Lembrei-me do velho Brizola a distribuir armas aos estancieiros, na famosa marcha pela legalidade.

Outra prova do revés político da vitória do "não" para os progressistas é o ressurgimento da ferocidade de setores conservadores, animados com a possibilidade (bastante duvidosa, registre-se) de se ressuscitar discussões como redução da maioridade penal, adoção da pena de morte, tudo devidamente subordinado a simplórias consultas populares. O que me remete à discussão da própria legitimidade da utilização indiscriminada desses mecanismos de decisão popular direta, que reputo altamente questionável em variados casos, como no em questão, por exemplo. Mas esta é uma discussão que não estou com vontade de levar adiante neste momento.

Ficou para mim, de tudo isso, requisitado para servir à Justiça Eleitoral nesses dias de preparação e execução do processo de consulta, o sentimento de ter sido efetivamente útil, pela primeira vez em quase treze anos de serviço público, à coletividade que paga o meu salário.

Sambando no Avesso

Caio Silveira Ramos


Para Germano, malandro que em um 26 de outubro, há 50 anos, ganhou um concurso e uma carteira de trabalho anotada: "cantor e executante de instrumentos exóticos." Samba, Germano. Samba.


Cheguei de longe, com o rosto aceso da cidade, mas não era, não era aquilo. Prédio, cinza, tiro: nada que meu pesadelo desaguara, era tudo, tudo outro. Outra. Que rosto tinha que meu sonho não viu ?

Consolação, Viaduto do Chá, eu lá, trançandando, rua, rua, do disco antigo encontrei um sotaque, será ? Pois não joguei pra rede palestras, bardis, martinelis, pignataris ? Iria então comer poeira, buscar o rosto dela em vanzolinis e rubinatos. Mais fácil seria topar com um rubinato, que o outro, doutor sambado, foi mergulhar entre cobras e lagartos. Perimetrei transambando, cadê Joca, Mato Grosso ? Inês saiu, apaga o fogo Mané, que Iracema meu grande amor foi embora. Mas Rubinato, cadê ? Adormeceu, adonirou-se antes do meu pé se cravar na cidade. Por que me abandonaste, bancando o Arnesto ?

Mas perdidosseilá, foi que vi o malaco. Desconsiderei. Pois como podia, sambista paulista, chamado Germano, europas no nome, trazer um gingado ? Como é que podia, Mathias, mãe, pai lusitanos, fadista não ser ? Como é que podia, branquelo, velhaco, ecoar piraporas dos jongos fora-da-lei ?

Pois foi nele que encontrei a cidade, mesmo antes me embebedar de João Antonio, meu palavreiro vadião a me guiar pelos infernos e inferninhos das Bocas infinitas. Germano Mathias apareceu assim, de esbarrão na esquina, desmalandrado, sem bombeta, sem pisante bico-fino, sem camisa listada, sem nada. Ali, esperando o ônibus pra Parada de Taipas. E eu fui junto.

Na ginga de se equilibrar nas curvas, no requebro do passar pela roleta, lá se foi ele, de cadeira quebrada, batucando sozinho, no banco, na janela, nos canos. E eu fui junto.

E São Paulos foram se formando dele, deles, germanos, lusos, dos falares italianados, dos brancos de coração pulsando africano, negro, negro, de alma e poesia estaladas concretas na lata de graxa. De pernada de moleque xepado no lustro certeiro.

Não sou eu não, não mais, sou Germano, homem dos trinta andares, quase arranha-céu, dos mil falares sincopados se prestando a adivinhar o quanto sambar é possível e amar é quebrável. Sou Germano para gingar Padeirinho, carioca, Mangueira em férias a verderrosear as barafundas. Sou Germano para suingar Caco Velho, pai-mestre, gaúcho negro de cuicar as veias azuis dos preconceitos. Sou Germano para me enluvar Jorge Costa, alagoano, domador da sílaba que se inverte para moldar meu passo.

Roubei uns passos, uns corpos, uns gingados, sou bom ladrão, mas meu Deus, não me perdoe, que perdão não preciso. Só quis engolir todas as línguas do mundo e sair por aí falando, sambando no avesso.

E pelo descompasso de amar errado, pecarei por adormecer com a cidade, que encostada no poste, sorri: me ama.

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Sim ou não, eis a questão

Protelei até quando pude meu pitaco sobre o tema mais candente do momento, até pra não dizerem que me precipito, que não tenho paciência, que o tempo político é outro, etcéteras mil. Ou na esperança de que ainda alguma alma pudesse lançar luzes honestas sobre as trevas cerradas. Porque o debate sobre o tal referendo realmente se instaura sobre uma barafunda de assustar, mesmo num país onde o furdunço é sinônimo de normalidade. Minha derradeira esperança esvaiu-se, quando, animado pela publicação de um artigo do grande Celso Antônio Bandeira de Mello, dos pouquíssimos juristas intelectualmente respeitáveis da nação, frustrei-me absolutamente pelo tom quase pueril de sua defesa do "não".

Porque, simplesmente, senhores, a coisa já começou mal a partir do momento em que se travestiu uma decisão sobre a comercialização legal de armas e munições em "plebiscito do desarmamento". Assim fácil, como se a perguntar ao eleitor se ele é a favor ou contra a proliferação das armas de fogo, num país que perde 40 mil de seus filhos todos os anos por meio dessa forma de morrer e matar. Depois, veio a campanha, que ao invés de esclarecer o equívoco da abordagem ao eleitor leigo nos assuntos legislativos, tratou de reforçar o engano, pra não dizer engodo. Então, defendo o "sim", apareceram o Chico Buarque, a Fernando Montenegro, Dom Paulo Evaristo, só faltaram o Betinho e o Chico Xavier, por razões óbvias. Aí você olha defendendo o "não" e estão o Erasmo Dias, o Afanázio Jazadi, o Coronel Ubiratan. Isso porque o Hildebrando está em cana. Instaura-se a completa banalização do debate, como se se tratasse de uma disputa entre a "turma do bem", do "paz e amor" e a turma barra pesada, do quanto pior melhor. Sinceramente, mais uma vez o grande prejuízo político para a democracia brasileira é a perda da oportunidade de um debate público sério, de nível, aproveitando a ausência de disputas eleitorais pessoais diretas.

Aí as pesquisas de intenção de voto, curiosamente, estão dando ligeira vantagem ao "não", mas em empate técnico, sendo que antes do começo da campanha os que se diziam favoráveis ao banimento das armas eram perto de 80%. Competência da campanha do "não"? Antes fosse. A confusão que por si só já não era pequena vem recebendo mãozinhas eficientes, por exemplo, da Igraja Católica, que tem espalhado por seus templos a frase, em letras bem grandes, pra quem quiser ler: "diga NÃO às armas"... Sinceramente, eu que andava bem desesperançado dos destinos da nação, depois da recente peregrinação pelo interior mineiro, a vontade é de desistir.

Confusões à parte, ocorre, na verdade, que a discussão é tão despreparada, tão fora de contexto e de senso de realidade, que os argumentos todos, de ambas as partes, não convencem ninguém. A tendência dos que somos batalhadores por uma sociedade mais fraterna e menos violenta é pela solução mais fácil, pelo "sim". Infelizmente, porém, a coisa não se processa tão simplesmente, porque não se trata de uma decisão sobre o desarmamento. A proibição do porte de arma, a política de recolhimento de armas e outras iniciativas já implementadas pelo Estatuto do Desarmamento estão corretas em tese e na prática provaram ter alguma eficácia. Fosse essa, simplesmente, a questão, e o voto seria no "sim", sem pestanejar. Mas o buraco é bem mais embaixo. Trata-se de inquirir se a uma sociedade que não quer armas é benéfico estabelecer uma proibição de comércio das mesmas e respectivas munições.

Porque é fato que a sociedade, em tese, não quer drogas, mas a proibição de comercialização não só não surte mínima eficácia, como, pelo contrário, ocasiona toda uma série de problemas ligadas ao mercado negro, ao comércio ilegal, bem conhecidos de todos nós, gerando custos sociais e financeiros estratosféricos. Foi assim com a proibição de venda de bebidas alcoólicas na Chicago dos anos 30. Então, a primeira pergunta é: a sociedade quer mesmo o banimento da droga? E quer o das armas, ou essa encenação é toda pra inglês ver, ou pra atender a outros interesses, menos confessáveis? E eu que há pelo menos dez anos defendo a legalização do comércio de drogas de toda espécie, como posso coerentemente defender a proibição do comércio de armas? Dirão uns que o mercado clandestino de armas já existe, mas é fato que elementos inéditos e importantes seriam introduzidos, como, por exemplo, o fato de se criar uma casta de poucas pessoas com a possibilidade de acesso ao comércio legal de munições, como praticantes de tiro esportivo (a Folha de S. Paulo de ontem dá conta de que cresceram em 70% em média os quadros associativos dos principais clubes de tiro...) e, principalmente, policiais, o que tenderia a acrescer um fator de incentivo à corrupção, hoje já em níveis quase incontroláveis.

O PCdoB, meu partido, editou uma resolução política elencando os motivos pelo "sim", posição oficial da legenda. Com todo o respeito e vênia, absolutamente imprestáveis todos os argumentos. Nenhum aborda diretamente a questão, nem enfrenta os problemaas reais decorrentes da possível proibição. Desalentador, eu diria. Por outro lado, a linha de defesa do "não", baseada em argumentos de um liberalismo mofado (do tipo "o estado não tem o direito de interferir no direito de defesa do cidadão de bem"), ou na escancaradamente inverossímil premissa de que os agressores passarão a enfrentar vítimas sabidamente desarmadas, também não se prestam ao convencimento. A qualquer um que adote a segunda linha e que tenha um mínimo de bom senso e amor à vida, arrisque perguntar: a partir da proibição, você encararia uma discussão de trânsito com toda tranqüilidade, confiando no seu poder de persuasão e nos seus punhos, na certeza de que seu contendor estará desarmado? Francamente...

Em verdade, a única coisa que me poderia inclinar ao "sim", que não chega a ser um argumento, um juízo categórico racional - está mais pra um urro desalentado, o que não lhe tira o valor de convencimento - é aquele que diz que se uma única vida for salva pela proibição de comercialização, já terá valido a pena. Se eu me convencer disso até domingo, voto "sim". O probleminha é que não saberemos se a vida que estará sendo salva hoje não gerará a multiplicação das mortes e das chagas sociais amanhã, e isso parece que ninguém está disposto ou tem condições de provar.

Caso contrário, nessa onda, como protesto ao rebaixamente irracional do debate e à pantomima de péssimo gosto que mais uma vez se encena, cravarei pela primeira vez depois de muitos anos, um voto em branco.

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Última oração



(Edyr Proença e Emanuel Matos)

Quando eu for morrer
Vou pedir pra ser Outubro
No meio daqueles anjos
do Círio de Nazaré
Lá estarei tranqüilo
Com meu cigarro de palha
As dores todas vencidas
Nas ondas do Rio-Mar

Antes de chegar a hora
No instante de partir
Pedirei à Virgem
Asas feitas de meriti

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Eternidade II

"A carne que se transforma
em verbo sabe que morre"
Hélio Pellegrino

Quisera fazer poesia
desse instante perpetuar
o gozo em idéia
O esvair-se em permanência iludida
do poder de alçar
à palavra o que é tempo
Fazer eternidade do que é sentimento
solidão do que é entrega

Não fossem o sentimento
e a entrega
O gozo
O tempo
Negação do mesmo que esvai solidão
debruçando pelo Outro

Não fosse a palavra sentença
da possibilidade condenada
ao mesmo
Não-gozo

Não fosse a Eternidade
Palavra em poesia possível
no mesmo Tempo

terça-feira, 4 de outubro de 2005

São Francisco



Hoje é dia de São Francisco. Pra não deixar passar, pra marcar esta volta incipiente, pra alinhavar uns tantos sentimentos que têm-me ido. Mineiridades nostálgicas, belezas e chagas de outros brasis, antigos, tão atuais. Desesperanças e enfados, perplexidades e conformismos, luzes e sombras talhados em volutas intermináveis, a sangue e a ouro, pelo cinzel da impiedade capitalista que lavra o destino trágico desta Nação.

São Francisco batiza as três mais impressionantes igrejas que vi, na Cidade da Bahia, há uns dez anos, em São João del Rey, já há vinte, e ora em Ouro Preto, à custa de uns bons minutos - horas não seriam demais - e uma bela cervicalgia, olhar engolido pelo teto de Ataíde, frontões e retábulos do Aleijadinho. Seriam quatro, com mais uma que me apaixonou, pela simplicidade resgatada e pela impudica, reveladora nudez do restauro, no Arraial do Tijuco do Distrino Diamantino: uma dama de três séculos, nua e envergonhada como uma moça-menina.

São Francisco é o rio que só dói e agoniza. E eis que volto e um bispo-frade, em sua magreza obstinada, resolve juntar à morte à míngua do gigante de outrora a sua própria de pequeno e magro, de obstinado. De franciscano. E a dureza dos ouvidos oficiais se faz mais usurpadora pela ignorância dos gritos tantos. Nossos. E mais patética, de uma mesquinhez algo burra, algo bufa, preocupada com as repercussões sobre a audiência do presidente com o Papa. Enquanto o sertão forja, do âmago de seus franciscanos estigmas, mais um conselheiro a bramir nossa grotescência, soberba e surda.

São Francisco, no quase impensável século XIII, é o que largou heranças por sentimentos. E porque temos, até hoje, meu Deus - e até quando? - essa impressionante dificuldade.