segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Sim ou não, eis a questão

Protelei até quando pude meu pitaco sobre o tema mais candente do momento, até pra não dizerem que me precipito, que não tenho paciência, que o tempo político é outro, etcéteras mil. Ou na esperança de que ainda alguma alma pudesse lançar luzes honestas sobre as trevas cerradas. Porque o debate sobre o tal referendo realmente se instaura sobre uma barafunda de assustar, mesmo num país onde o furdunço é sinônimo de normalidade. Minha derradeira esperança esvaiu-se, quando, animado pela publicação de um artigo do grande Celso Antônio Bandeira de Mello, dos pouquíssimos juristas intelectualmente respeitáveis da nação, frustrei-me absolutamente pelo tom quase pueril de sua defesa do "não".

Porque, simplesmente, senhores, a coisa já começou mal a partir do momento em que se travestiu uma decisão sobre a comercialização legal de armas e munições em "plebiscito do desarmamento". Assim fácil, como se a perguntar ao eleitor se ele é a favor ou contra a proliferação das armas de fogo, num país que perde 40 mil de seus filhos todos os anos por meio dessa forma de morrer e matar. Depois, veio a campanha, que ao invés de esclarecer o equívoco da abordagem ao eleitor leigo nos assuntos legislativos, tratou de reforçar o engano, pra não dizer engodo. Então, defendo o "sim", apareceram o Chico Buarque, a Fernando Montenegro, Dom Paulo Evaristo, só faltaram o Betinho e o Chico Xavier, por razões óbvias. Aí você olha defendendo o "não" e estão o Erasmo Dias, o Afanázio Jazadi, o Coronel Ubiratan. Isso porque o Hildebrando está em cana. Instaura-se a completa banalização do debate, como se se tratasse de uma disputa entre a "turma do bem", do "paz e amor" e a turma barra pesada, do quanto pior melhor. Sinceramente, mais uma vez o grande prejuízo político para a democracia brasileira é a perda da oportunidade de um debate público sério, de nível, aproveitando a ausência de disputas eleitorais pessoais diretas.

Aí as pesquisas de intenção de voto, curiosamente, estão dando ligeira vantagem ao "não", mas em empate técnico, sendo que antes do começo da campanha os que se diziam favoráveis ao banimento das armas eram perto de 80%. Competência da campanha do "não"? Antes fosse. A confusão que por si só já não era pequena vem recebendo mãozinhas eficientes, por exemplo, da Igraja Católica, que tem espalhado por seus templos a frase, em letras bem grandes, pra quem quiser ler: "diga NÃO às armas"... Sinceramente, eu que andava bem desesperançado dos destinos da nação, depois da recente peregrinação pelo interior mineiro, a vontade é de desistir.

Confusões à parte, ocorre, na verdade, que a discussão é tão despreparada, tão fora de contexto e de senso de realidade, que os argumentos todos, de ambas as partes, não convencem ninguém. A tendência dos que somos batalhadores por uma sociedade mais fraterna e menos violenta é pela solução mais fácil, pelo "sim". Infelizmente, porém, a coisa não se processa tão simplesmente, porque não se trata de uma decisão sobre o desarmamento. A proibição do porte de arma, a política de recolhimento de armas e outras iniciativas já implementadas pelo Estatuto do Desarmamento estão corretas em tese e na prática provaram ter alguma eficácia. Fosse essa, simplesmente, a questão, e o voto seria no "sim", sem pestanejar. Mas o buraco é bem mais embaixo. Trata-se de inquirir se a uma sociedade que não quer armas é benéfico estabelecer uma proibição de comércio das mesmas e respectivas munições.

Porque é fato que a sociedade, em tese, não quer drogas, mas a proibição de comercialização não só não surte mínima eficácia, como, pelo contrário, ocasiona toda uma série de problemas ligadas ao mercado negro, ao comércio ilegal, bem conhecidos de todos nós, gerando custos sociais e financeiros estratosféricos. Foi assim com a proibição de venda de bebidas alcoólicas na Chicago dos anos 30. Então, a primeira pergunta é: a sociedade quer mesmo o banimento da droga? E quer o das armas, ou essa encenação é toda pra inglês ver, ou pra atender a outros interesses, menos confessáveis? E eu que há pelo menos dez anos defendo a legalização do comércio de drogas de toda espécie, como posso coerentemente defender a proibição do comércio de armas? Dirão uns que o mercado clandestino de armas já existe, mas é fato que elementos inéditos e importantes seriam introduzidos, como, por exemplo, o fato de se criar uma casta de poucas pessoas com a possibilidade de acesso ao comércio legal de munições, como praticantes de tiro esportivo (a Folha de S. Paulo de ontem dá conta de que cresceram em 70% em média os quadros associativos dos principais clubes de tiro...) e, principalmente, policiais, o que tenderia a acrescer um fator de incentivo à corrupção, hoje já em níveis quase incontroláveis.

O PCdoB, meu partido, editou uma resolução política elencando os motivos pelo "sim", posição oficial da legenda. Com todo o respeito e vênia, absolutamente imprestáveis todos os argumentos. Nenhum aborda diretamente a questão, nem enfrenta os problemaas reais decorrentes da possível proibição. Desalentador, eu diria. Por outro lado, a linha de defesa do "não", baseada em argumentos de um liberalismo mofado (do tipo "o estado não tem o direito de interferir no direito de defesa do cidadão de bem"), ou na escancaradamente inverossímil premissa de que os agressores passarão a enfrentar vítimas sabidamente desarmadas, também não se prestam ao convencimento. A qualquer um que adote a segunda linha e que tenha um mínimo de bom senso e amor à vida, arrisque perguntar: a partir da proibição, você encararia uma discussão de trânsito com toda tranqüilidade, confiando no seu poder de persuasão e nos seus punhos, na certeza de que seu contendor estará desarmado? Francamente...

Em verdade, a única coisa que me poderia inclinar ao "sim", que não chega a ser um argumento, um juízo categórico racional - está mais pra um urro desalentado, o que não lhe tira o valor de convencimento - é aquele que diz que se uma única vida for salva pela proibição de comercialização, já terá valido a pena. Se eu me convencer disso até domingo, voto "sim". O probleminha é que não saberemos se a vida que estará sendo salva hoje não gerará a multiplicação das mortes e das chagas sociais amanhã, e isso parece que ninguém está disposto ou tem condições de provar.

Caso contrário, nessa onda, como protesto ao rebaixamente irracional do debate e à pantomima de péssimo gosto que mais uma vez se encena, cravarei pela primeira vez depois de muitos anos, um voto em branco.

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