sábado, 12 de janeiro de 2013

Um século do lobo solitário do Cachoeiro



Em 12 de janeiro de 1913, há exatos cem anos, pois, vinha ao mundo na capixaba Cachoeiro de Itapemirim aquele que seria para mim o maior dos escritores brasileiros: Rubem Braga. Como homenagem humílima à imensidão que representou na minha vida de leitor, tomo coragem para publicar uma crônica inédita que escrevi na flor de meus vinte anos, por ocasião de sua partida para a Noite Grande - retocada a lápis, apenas, como naqueles antigos retratos, para suavizar as imperfeições mais gritantes do traço. Descontada a juventude que já se foi e a adoração que nesses vinte e dois anos só cresceu, este pequeno e despretencioso requiem conserva tão somente o mérito de se somar às vozes que afortunadamente quebram o silêncio já não surpreendente dos “grandes”, absolutamente incompatível com a grandeza e importância do homenageado. Chama Rubem Braga!



Requiem para Rubem 



Passa das onze da noite. Completam-se sete dias sem o amigo. Amigo que jamais vi e a quem nunca pude falar. Mas que conheci e conheceu-me tanto – e tanto me disse! Já andava então por veredas outras, respeitáveis até, importantes; mas Rubem Braga foi o responsável pela poesia em minha vida. Não, certo, a poesia ordinária e fundamental da vida, mas aquela própria que se tece a cinzel sobre o bronze informe das letras e palavras, acima e antes de qualquer outro poeta. Sem apologias nem erudições. Simplesmente com sua prosa cósmico-cachoeirense regada a cachaça ou a uísque, ensinando das mulheres, das gentes, dos passarinhos e dos pés de caju.

Ah, velho Braga... Chamo-te assim agora, como te chamaste desde a idade mais tenra, mesmo sabendo que acharias, assim, esquisito. Mas te chamo porque te conheço, Braga velho! Chorei tua morte, sim, me achei ridículo, e depois decepcionado de me ter assim achado. Por que não te posso chorar, Braga? Se me ensinaste a olhar a vida com os olhos da poesia, e a conviver com ela não sem sofrer? Por que não posso chorar, se a fé que tenho não enche esse vazio que me deixou tua partida? Por que rezar pela tua alma, se é a desalma do mundo que padecerá tanto do teu silêncio?

Esta crônica foi-me resistida sete dias. De preceito, talvez... E nesses dias todos, como que a tua cadeira vazia não me deixava de obrigá-la. (Mas falta a rotina, de que tanto reclamavas...) E já foi emocionada, e foi melancólica; foi lacônica e foi loquaz, e até irônica. Mas não a queria de um jeito qualquer - não a queria de jeito nenhum. Queria-a simples, apenas, ainda que sem jeito. Até por responsabilidade - quanto palavrório por esses dias! A sutileza de um articulista, por exemplo, largou esta: “Braga morre sem deixar discípulos. Os jovens de hoje buscam caminhos mais sólidos para suas glórias literárias.” Me aceita, então, Mestre, a pretensão única de desamarrar as tuas sandálias cansadas da poeira da vida toda, na volatilidade dos descaminhos a que te entregaste.

Estes fins de ano andam tristes que não sei... E este como vai ser, oh Braga, sabedor da falta de teu olhar de pássaro atento, penetrante e assustado na tua gaiola de Ipanema? Mas é verão, amigo, e as tardes serão longas e as mulheres estarão belas. E tu estarás em cada por-do-sol , à beira do mar que te encantava. E as tuas mulheres todas serão, no meu coração, apenas uma como sempre foi. Apenas Joana. As tuas mulheres, Velho, pelas quais chorei em primeiro lugar, quando soube que partiras.

(São Paulo, 26 de dezembro de 1990, sétimo dia da morte de Rubem Braga)