quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Jean Morgan



Na hora da inscrição, surpreendeu-se de não ter dado conta do problema elementar, mas acabou achando graça. Família tradicional, vinda da Gávea para o Engenho Velho em longínquas primaveras, sobrenome composto, de muitos costados, o jeito era arrumar um pseudônimo. Essa coisa de cantar no rádio, afinal, não podia ser coisa de moça de família. Lascou, então, premida pela ocasião, uma mistura de nomes americanizados que acabara de ler numa revista de cinema; porque afinal essa era a nova moda naqueles anos 40 povoados da propaganda estético-ideológica do Tio Sam. Assim nasceu Jean Morgan. Sem grandes pretensões, diga-se de passagem.

E não é que a moça era afinada? E não é que tinha lá uma graça de flor da idade, levemente apimentada pela inusitada quase-travessura de meter-se a cantar, de repente, num concurso de calouros, sem o consentimento dos pais? Mas o que embasbacava todos, mesmo o conhecido apresentador ranzinza, era a elegância. Ah, a elegância...

E de etapa em etapa, assim como não quer nada, foi avançando. Quando voltava para casa de pretensos footings na Rua Uruguaiana, no cair da tarde, Mathilde encontrava a família em alvoroço. A irmã logo se apressava em pô-la a par de mais uma grande apresentação de Jean Morgan, a favorita da família! “Papai era o mais empolgado!” Mas o velho, claro, fazia que não era com ele. Em comum, o grande estranhamento com o fato da jovem, de hábito tão encantada pelas coisas da música e do rádio, quedar-se tão alheada do concurso que era “o assunto” de todas as rodas. Disfarçava, às vezes: “ouvi o rádio ligado na casa Sloper...”.

E, como era de se esperar, chegou a grande final. A família, dedicada na torcida, achou muitíssimo injusta a primeira colocação do insosso doublé de Bing Crosby, que não podia fugir da alcunha de sotaque yankee: Dick Farney. A indignação foi até capaz de arrancar de Seu Eugênio, o patriarca, o único comentário em semanas de certame: “Essa gente de rádio não vale mesmo nada! Com certeza, tudo já arranjado!”

Mathilde estava feliz, no bonde que a trazia da rádio, na Cidade, para a Tijuca. Tudo era festa, então! A cabeça levemente recostada na balaustrada, devaneou nas asas de seus auspícios juvenis. Jean Morgan estava feita, carreira engatilhada. Os convites não tardariam! A carreira no disco seguiria a trilha inevitável de sendas bem calçadas no bom gosto do repertório, na sensibilidade para o apetite da época, e na sólida formação que carregava do lar quatrocentão. Que agora lhe sorria para, senão o sucesso retumbante, o pleno reconhecimento de um público distinto e fiel!

E assim seria, durante muitos anos na atividade que lhe encheria o peito de suaves satisfações e de uma alegria perene. Mas o solavanco do bonde lhe podou, inapelavelmente, a verve! A Tijuca, enfim... Em casa, o remédio agora era contar. Ninguém, mesmo, achou muita graça na burleta; com o máximo da boa-vontade, uma admiração-pontinha-de-inveja da irmã. Os footings proibidos, a vigilância redobrada, que se dedicasse à tarefa elementar de se casar. Como tinha que ser.

Mas, quem viu, dá testemunho da propalada elegância. Ah, a elegância...


[para Maria, Isaac, Fernando, Cristiano e Eduardo, com funda saudade, em homenagem à flor mais perfumada - e elegante! - de todo o Engenho Velho]