quarta-feira, 30 de abril de 2008

Anoiteceu antigamente

“O passado traz consigo um índice misterioso,
que o impele à redenção. Pois não somos tocados
por um sopro do ar que foi respirado antes?
Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de
vozes que emudeceram?”

(Walter Benjamin)


Anoiteceu, hoje, antigamente. E eu, de antigo, estou assim tão goldenbergueano no sentimento e no estilo. Não é simples precisar o que me faz de novo, súbito, um menino olhando a Cidade de janelas bem abertas, aboletado no banco de trás do automóvel de meu pai, as gotas de chuva dispostas no pára-brisa como essas infinitas luzes de natal, “apagando e acendendo em cores” múltiplas e alternadas desse caleidoscópio de emoções.

Espocam os fogos de uma memória sentimental, única a nos transportar impunemente além das cercas do tempo e da impiedade da linha da História, que algum dia alguém pretendeu reta e de mão-única, para morte do sonho e desperança de nossa redenção. Porque se a memória não passa de um museu pessoal de representações por definição apartadas dos obejtos a que se reportam, fundamental, ainda que morta, é na emoção que os instantes preciosos podem renascer e rebrilhar fazendo tudo, novamente, ter sentido. E, como no sonho, o tempo é vencido e uma outra História emerge como trama de múltiplos sentidos, redimidos os arroubos de vida dos grilhões de uma desmascarada sensatez.

Só no devaneio pode-se estar presentemente nos lugares outros e viver as dimensões do não-tempo que permitem aos mortos ressuscitar. Só na emoção os corpos transcendem os seus limites no espaço e se interocupam, e o mesmo pode ser de novo e de novo e sempre. A razão procurou fundar uma consciência transcendental e dialeticamente gerou o tempo a lhe aprisionar em seu fluxo inexorável, infinitamente. O sentido do tempo gera a falta de sentido da vida. Só a emoção e o sonho podem efetivamente deter o curso eterno do rio sempre outro e fundar a individualidade. Porque todos raciocinam da mesma maneira, tempo, espaço, causa, efeito; mas se ninguém sente da mesma maneira, sentir de novo o mesmo, ressentir, é a prova da existência singular. Uma singularidade fundada pelo ressentimento.

E assim, nas luzes da noite refletidas, eu sou, a despeito de tudo, “mesmo que o tempo e a distância digam não”. As insensatezes e as desimportâncias todas fundam a minha existência e me distinguem, muito antes dos meus “grandes feitos”, em geral bastante parecidos com os do meu vizinho. Nascer, morrer, casar, ser promovido, proclamar a república, fazer mil gols é o que nos aproxima. A emoção de cada gol é o que nos distingue. Ter filhos, temos todos. Uma emoção ao lado do filho é absolutamente única. Por isso o nascimento do filho é, ao contrário do que reza o senso, o momento menos importante da vida de um pai. O pai se faz a cada sorriso, a cada palavra, as não ditas antes até das ditas. Um homem se faz cosendo os retalhos de seus sentimentos menos grandiloqüentes, tecendo a colcha que há de deslindar seus desatinos e enganar seu destino fatal.

“Espelho da minha mágoa, meus olhos são poças d’água”. Caminhando entre os restos da cidade chovida, meus mortos, meus filhos, meus ausentes, meu eu, estão todos vivos demais, no mesmo instante. Aqui.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

"Aqueles que estão contra o fascismo sem estar contra o capitalismo, que choramingam sobre a barbárie causada pela barbárie , assemelham-se a pessoas que querem receber sua fatia de assado de vitela, mas não querem que se mate a vitela. Querem comer vitela, mas não querem ver sangue. Para ficarem contentes, basta que o magarefe lave as mãos antes de servir a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie, mas são contra a barbárie."

(Brecht)

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Do nosso jeitinho


É sabido – e tenho tantas vezes insistido aqui – que a meia-dúzia que sempre se arvorou em dona do Brasil nunca suportou o povo brasileiro. Não gostam da comida que gostamos, desprezam nosso modo de viver, nossa música, nossa sabedoria, menoscabam nosso jeito de rezar e curar os males do corpo e da alma. É claro que as coisas do povo que nunca toleraram vez por outra entram na moda por um motivo qualquer e aí é um tal de dar-se um jeito de tudo ficar mais “higiênico”, mais branco, menos mestiço – foi assim com o carnaval, a religião, está sendo com o futebol, os butiquins etc. - , mas isso é assunto pra outras conversas. Depreciam de tal modo as culturas nossas tributárias, que mesmo entre os negros que desprezam, julgam os nossos os piores, “bantos primitivos”; nossos índios estão no paleolítico enquanto os d’alhures construíram admiráveis civilizações; os portugueses são a nação mais atrasada da Europa, periferia do sistema, patrimonialistas medievais etc. Usam para nos medir uma medida extrínseca que nada tem a ver conosco e segundo a qual sempre seremos uma versão imperfeita do seu “ideal” importado: nossa democracia é atrasada, falta capitalismo, erudição, instituições deficientes...

Um dos traços mais singulares do povo brasileiro passou, por escamoteamentos ideológicos repisados até a exaustão, de exemplo da nossa brejeirice pacífica e algo gaiata, resistente e original, a uma espécie de pústula moral a ser banida dos projetos civilizatórios da modernidade (branca e capitalista, lógico): o famoso “jeitinho” brasileiro. Porque este sempre foi para nós uma capacidade de, apesar das adversidades, malgrado as impossibilidades decretadas pela conjuntura opressiva, contruir o entendimento, superar o aparentemente insuperável. Na base do “conversando é que a gente se entende”, nos orgulhávamos de uma habilidade de improviso lastreada no pouco apreço às soluções formais pre-determinadas, acreditando que a razoabilidade se constrói numa interação mediada pela atitude de entender e se fazer entendido. Mas os nossos senhores, que naturalmente usam e cuidam de sua condição, não conseguem conviver com essa fluidez embebida de encontro e possibilidade; aferrados às suas certezas, encastelados em sua condição de ditadores das regras auto-perpetuadoras, empedernidos pela lógica da eficiência a serviço da acumulação, trataram de fazer do “jeitinho” um traço de decrepitude de caráter típico dos povos atrasados, que dessa forma jamais poderiam aspirar ao mundo maravilhoso da modernidade e suas benesses.

Escrevia dias atrás sobre a falência da comunicação pela palavra falada. Num mundo que tem horror ao diálogo interpessoal – assim sempre me soou o modo europeu de vida, basta ver dois desconhecidos brasileiros se encontrando em outro país (normalmente se abraçam e comemoram o encontro, como se velhos amigos fossem) e o mesmo se dando com dois alemães... – é necessário ter regras precisas e claras para normatizar todas as situações, de modo que o mínimo espaço haja para a possibilidade de discussão. E mesmo essa, deve-se dar pelas vias institucionais, dentro dos limites formais previstos. Se um vizinho dinamarquês avançar seu muro meio metro sobre o terreno ao lado, ele responderá por isso nas barras dos tribunais, nos estritos termos da legislação. No Brasil, sempre houve a possibilidade, a menos a princípio, de se discutir a solução tomando um café no butiquim da esquina, com boa possibilidade de se deixar pra lá, contanto que o outro possa ficar com as mangas que pendem daquela frondosa mangueira sobre o seu quintal alheio... Ao menos enquanto viveu a palavra.

É por isso, meus caros, que nos desesperam as atendentes de telemárquetim que sempre responderão com seus 15 modelos de frases prêt a porter não importa se Rui Barbosa ou Leonel Brizola estejam a argumentar do outro lado da linha. É por isso que temos tanta dificuldade de aceitar os campeonatos por pontos corridos, onde o melhor vai sagrar-se campeão em 99% dos casos. O gosto pelo improviso, pelo imponderável mora em nosso espírito, faz parte da nossa natureza. A busca pelo desenvolvimento econômico e humano, por uma sociedade mais igualitária com acesso indistinto às utilidades que a modernidade logrou poduzir não pode tomar como padrão único um mundo pré-fabricado, engessado, previsível, sem espaço para a originalidade, para a criação e o improviso, fundamentos da singularidade individual e cultural. Singularidade é “jeito”, habilidade é “jeito”, solução é “jeito”. Quero meu jeitinho de volta!

E é por isso, contrariamente, que no butiquim se desconta cheque, se compra fiado (mesmo e sobretudo com a presença da plaquinha indefectível: “fiado só amanhã”), se deixa recado, se pede o prato assim ou assado, ao gosto do freguês , se decide sobre os destinos da humanidade... Tudo pode, desde que se converse! É por isso que no butiquim todos são irmãos de pratos e copos, mesmo que NUNCA se tenham visto antes. É por isso que no butiquim – e só no butiquim – ainda há jeito. Isto é, nos de verdade, os que ainda sobraram, “redutos últimos da palavra”, como quis o Poeta.

sábado, 19 de abril de 2008

Memória da tribo

Nilson Chaves e Eliakin Rufino


Minha vó me chamou:

"Curumim venha cá
Venha ver como é
O sinal do pajé

Venha cá curumim
Não vá esquecer
Essa tribo é um rio
O destino é correr

Curumim, essa terra
Nunca mais nos pertenceu
Não é de ninguém
Não tem dono
Nem Deus

Curumim venha ver
A panela de barro
O que há pra comer
É um caldo de peixe
Com as sobras do tempo
Cheiro verde, sentimento"

Minha vó me chamou...



(imagem: Índia, por Iara Carvalho Szegeri:
colagem sobre papel, 2006)

terça-feira, 15 de abril de 2008

Não agüento


Este espaço nem é para isso, mas confesso que não consigo me conter. O Palmeiras perdeu domingo o primeiro jogo da semi-final do Campeonato Paulista de 2008 com um gol de mão do atacante Adriano. Não há discussão quanto ao fato: as imagens são nítidas e o próprio jogador se justifica dizendo que se o Maradona fez, ele também pode (raciocínio perfeito, claro, sendo el Dieguito um jogadorzinho qualquer e ele o grande imperador, também conhecido como prìncipenico – aboliram o acento grave, mas a situação é grave e eu quero que se dane). Anular a partida? Punir o jogador? Rebaixar o placar para 1 x 1? Balelas gigantescas e ululantes. Futebol é isso, é momento, não é televisão, e eu só estou bravo porque foi contra o meu time. Se fosse a favor, deveria valer dois.

A questão é absolutamente outra. O juiz tem, por óbvio, o direito de não ver (é humano, não é uma câmera acoplada a um computador) e também de ver e errar a interpretação da norma aplicável (se outros juízes fazem isso a torto e a direito depois de analisar questões às vezes por anos, que dirá um cidadão que tem uma fração de segundo para decidir). O QUE O PUTO DESGRAÇADO DO JUIZ NÃO PODE FAZER É DIZER QUE VALIDOU O GOL “PORQUEABOLABATEUINVOLUNTARIAMENTENAMÃODOJOGADORESEFOSSE
OZAGEIRONÃODARIAPÊNALTI”. Aí, meus queridos, deveria não só ser afastado do futebol para sempre, como preso por estelionato, banido do convívio social, deportado para a Sibéria, visto que exerce uma profissão SEM OS MÍNIMOS REQUISITOS que o habilitam para tanto. Não conhece a regra, não ENTENDEU NADA DE NADA DE NADA do nobre esporte ex-bretão, hoje universal, que se joga com os pés. Como, meu Deus, pode o desgraçado fazer uma afirmação dessas e a Federação fingir que nada aconteceu? EQUIVALE, MAIS OU MENOS, A DIZER QUE O JOGADOR ESTAVA IMPEDIDO NA HORA DO GOL, MAS INVOLUNTARIAMENTE!!! Admitisse o erro, admitisse que não viu a bola batendo na mão ESTENDIDA do Adriano e eu guardaria minha raiva estritamente palmeirense entre meus travesseiros. Mas a minha ira é mortal nesse momento porque deixa de ser esmeraldina e se transforma numa revolta cívica monumental e irreprimível.

Meu único consolo é imaginar que A DOSE DE PALHAÇADA QUE SEMPRE DÁ O AR DA GRAÇA NOS JOGOS DECISIVOS ONDE ATUA O SÃO PAULO FUTEBOL CLUBE tenha se esgotado logo no primeiro jogo. Assim espero.

E os que acham que escrevendo em maiúscula parece que estou gritando, estão absolutamente certos.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A manhã ulterior


O quê, meu Deus,
para iluminar a manhã cinzenta?

Qual palavra desarmada
acenderia uma lucerna nessa bruma?
Que notícia para deter tanta garoa?
Qual melodia choraria essa desesperança?

Cisma o sol na própria inconveniência
sobre meus olhos que nublam...
O dia amanheceu para dentro
tragada a luz ao buraco negro
de vãos desforços
Inundam-se as ruas de impossibilidades
brotadas do flanco aberto da Adoração

Que recordação
a silenciar este vazio?
Nenhum auspício
derreterá a brasa ensimesmada
Não há choro
que socorra a disforia perene de insuficiências

Rorate, coeli
Que todos os sóis não aquecerão
Que os olhos não descortinarão os véus da ausência
Não é dentro que chove e faz frio:
é longe



[para Betinha]

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Meia palavra


Diz o ditado, para bom entendedor. Não vos preocupeis com deparar neste jardim, perdido entre podas e roçado negligentes, face para baixo como média de pobre, nem sonho de ofender o pudor desta sutilíssima donzela, a perturbar o sono dos filósofos e poetas há tanto. Aquietai-vos.

Para a sabedoria ancestral que herdamos de África, a palavra falada é a mais poderosa forma de transmissão do axé, a força que tudo realiza. Por isso a cultura tradicional africana é essencialmente oral: não pela presunçosamente suposta incapacidade daqueles povos desenvolverem um sistema escrito, mas para preservar a força realizadora e operadora que os ensinamentos milenares encerram. Tanto como para os judeus e para os cristãos primeiros, para quem Deus é “verbo” que existia no princípio; e que pelo verbo fez todas as coisas (Fiat!) e viu que eram boas. Mas não entre nós, claro, tão ciosos de nossa sapiência e tão dependentes dos olhos de não ver. E os sons fizeram-se imagens e pariram a História! Verba volant, scripta manent, ensinaram os latinos o que hoje só os cães parecem entender. A caneta pode ser mais poderosa que a espada? Só mesmo a cegueira crassa de quem tudo supõe poder ver é capaz de descuidar do poder dilacerante da palavra dita, com seu calor, umidade e inflexão capazes de produzir o mundo e destruí-lo.

A palavra é o veículo de conteúdo, significação e axé que vai daquele que a profere ao outro que tem a oportunidade de recebê-la. Encerra sempre uma ampla gama de referências a um universo de significados mais ou menos conscientes e será potencialmente mais poderosa na tarefa de comunicar quanto maiores forem os pontos de contato dos universos referenciais do emissor e do receptor. E o compartilhamento desses referenciais em tese aumenta na medida em que esses tenham vivências culturais convergentes e ainda mais se o meio social em que estiverem inseridos possibilite a existência de espaços de interação social não pré-determinados, vale dizer, onde a permanente repactuação das regras de conduta e dos códigos simbólicos for inerente àquela forma de socialização (nas brincadeiras de criança, por exemplo).

Justamente pelo seu poder avassalador, que encerra tamanha carga de forças e vivências acumuladas, a palavra será perigosa se não for cuidada. Não pode ficar por aí voando, conforme o ensinamento; lançada de uma parte, tem que ser recebida de outra, como passe redondo de pé em pé. Para ser bom entendedor, então, além do cabedal de referências significativas comuns com o emissor, é estritamente necessário o que o Filósofo já chamou de “atitude comunicativa”, e que nós conhecemos como a velha “boa vontade”. Uma ação comunicativa só pode ser bem sucedida se além do conhecimento do código e do compartilhamento de referenciais, emissor e receptor estiverem empenhados na tarefa. Sendo, portanto, uma forma de racionalidade essencialmente dual, seu paradigma de validade não está nas regras formais ou transcendentais que o sujeito pré-estabelece como válidas ou certas ou perfeitas. Pelo contrário, tudo o que é pré-estabelecido como certo, como dado, vai prejudicar a interação. Para que a racionalidade comunicativa se estabeleça, portanto, é requisito que os comunicantes abdiquem de suas ditaduras particulares de significados para a construção de pontos possíveis de entendimento. É preciso que admitam a falibilidade de suas pré-definições.

Ora direis que não vivemos nesse mundo. E é fato. Nosso mundinho ocidental não é feito de abdicações. Ao contrário, é orientado pela lógica do consumo e da acumulação, legitimados por uma razão que opera por exclusões entre o certo e o errado, conforme determinados de antemão. Todos buscam a defesa dos seus interesses, a vitória, a dominação, no campo de batalha que se denominou mercado. Nesse cenário, não há lugar para o entendimento, para a repactuação de definições, para falibilidade, antes somente para a um cálculo de eficiência enquanto adequação entre meios e fins. E onde o entendimento dá lugar a um cálculo instrumental, a palavra não é mais veículo de possibilidade de construção, mas é a arma letal a detonar todos os conflitos. Sem atitude comunicativa, sempre se procurará na palavra percebida as intenções ocultas, as artimanhas veladas, as estratégias de logro e dissimulação, a manipulação e o confronto. Sem entendimento, conflito.

É por isso, meus caros passantes, que tenho, a cada dia, menos vontade de falar. Porque escrever é infinitamente mais seguro! Pode-se parar e pensar e ler e reler. Pode-se deixar para o dia seguinte. Quem pode deter o poder avassalador dessas criaturas poderosas no átimo seguinte ao em que logram evadir-se de nossas bocas? A palavra só é possível onde reina a procura do outro, a compreensão e a consciência da falibilidade. Porque no cenário da guerra universal deflagrada a palavra sempre será a embaixada do inimigo, ao invés de veiculadora das essências mais sutis da alteridade. Se os indivíduos se transformam em feudos a combater isoladamente por suas verdades contra a possibilidade do encontro, enxergando no que vem de fora somente a essência do que não é, onde se albergará a hospitalidade para com a palavra fugidia? Destemperada, andarilha, ela só gerará destruição!

Loucos, os que saem por aí soltando aos ventos esses demônios da discórdia! Porque de construtoras de todas as coisas, as palavras perdem sua capacidade de tudo criar pelo paulatino imerecimento humano de usar esse poder. Mestres que somos em desperdiçar os dons que nos são legados, peritos na arte de escangalhar as preciosidades confiadas à nossa guarda, os seres humanos perdemos a oportunidade de co-participarmos da tarefa criadora do universo, conforme nos foi dado pelos Primeiros Pais. Encastelados em nossas ditaduras soberbas, seguimos gerando a discórdia que nos há de destruir.

E o butiquim será, enfim e sempre, o único reduto possível da palavra, conforme disse o Poeta. Nele – e só nele – ora direis ouvir-me falar.

terça-feira, 1 de abril de 2008

A menina Josephina


Josephina é uma menina.

Conheci-a há muito, muito tempo, quando eu também era menino. Eu deixei de ser menino, mas não Josephina.

Nasceu num 1º de abril, mas não é de mentira.

Sendo muito menina e há muito tempo, Josephina viu muitas coisas na sua longa vida de menina.

Josephina sempre foi a alegria da família. Nenhuma festa tem graça sem ela. Sem os ovos coloridos que ela gosta, na Páscoa; sem a árvore gigante que ela faz questão de enfeitar com velinhas e acender na noite de Natal. Festa é com ela, a Josephina. Quando vê todo mundo junto, a casa cheia e a mesa com muita e muita comida, brilham os olhinhos pequenos e acinzentados de menina.

Josephina tem as bochechas mais gostosas de apertar e as mãos mais macias e geladinhas, mesmo com tanto tanque e tanta roça.

Ela fala assim engraçado, umas palavrinhas bonitinhas... “Semvergonho!”, quando uma outra criança apronta uma coisa que ela acha, assim, de criança. Um dia, no jogo de forca, ela escreveu a palavrinha “barigudo” e as outras crianças que nós éramos demos risada dela.

Josephina parou de ir à escola, porque precisa cuidar dos irmãos mais novos, quatro fora ela. A professora não queria que ela fosse embora, mas ela tinha que cuidar dos irmãos e também tinha que trabalhar. Sempre precisa cuidar – e cuida – de todos. Da Elza, da Gabriella, do Lourenço, do Ernesto, da Hilda, do José grandão e do José Pequeno, da Walburga grande, da Cecília, do Germano, do Frederico, do Fernando, da Cristina, da Paula, da Elizabeth e da Verônica e da Valburga pequena, da Glória, dos filhos da Glória, da Iara e da Rosa.

E porque havia um Oceano esperando por Josephina.

Mas Josephina gosta de ler, de ler e de ler. Trabalha o dia inteirinho, roçando, lavando, cozinhando, cuidando dos bichos e dos meninos; e à noite, em vez de dormir, fica lendo e lendo e lendo. A luz da vela não é muita e o pai de Josephina briga com ela porque vai estragar os olhos. Mas Josephina é a mais teimosa de todas as meninas. Quando o sol já vai raiar, toma um banho gelado e vai fazer o café e vai pra roça e vai cuidar de todo mundo e vai lavar sua roupa.

Josephina me ensinou a gostar de ler e de viajar. Diz que, no fundo, é a mesma coisa. Gosta mais de ler sobre “o costume dos pôvos”. O chapeuzinho é para mostrar como é bonitinho o jeito dela falar. Mas não adianta muito.

Josephina tem um cheirinho de água de colônia. E o quarto secreto de Josephina tem esse cheirinho também. Mas é misturado com o de açúcar e arroz e feijão e óleo de cozinha que ela guarda lá, porque é uma menina que viu a guerra e a fome. E não gosta do frio, nem da guerra, nem da fome. (Pensando melhor, o quarto de Josephina tem cheiro de motor de máquina de costura também.)

Todos tocam a campainha na casa de Josephina. Os mendigos gostam dela. E os cegos, os sem mão, os muito pobres, os doentes. Porque ela sorri para todos. Sempre tem um pedaço de pão e uma xícara de café.

Josephina, como toda menina levada, não gosta de ir à igreja. Ela gosta de jogar cartas (como rouba, a Josephina...!) e fazer palavras cruzadas. Me ensinou a jogar, pra ela ter sempre alguém pra jogar com ela. Me ensinou a jogar sempre para ganhar, mas também me ensinou a perder. E, assim, nós sempre jogamos os jogos mais divertidos. Mamãe não gosta muito, mas a gente joga mesmo assim.

Josephina é menina, mas faz as comidas mais gostosas pra todo mundo comer e fica feliz quando vê todos bem gordinhos como ela. E faz bonecas pra gente brincar e roupas para as bonecas e para nós. Fez até um monte, mas um monte de quadradinhos coloridos, que depois ela ficou costurando uns nos outros até formarem várias mantas coloridas pra cada uma das outras crianças. Quando acabou de costurar todos os quadradinhos, ela ficou cansada e foi embora.

Josephina faz as comidas que todo mundo gosta. Mas ela mesma gosta de café com leite. Hoje mesmo dividi meu café com leite com ela e sei que ela ficou feliz. (Ah! De noite nós vamos dividir uma água tônica.)

Ia contar um segredo de Josephina, mas não vou contar, porque senão não é segredo. Se a Iara pedir, conto no ouvido dela, porque sei que Josephina não vai ficar brava.

Josephina é brava!

Josephina nunca, mas nunca se queixou de nada na vida. Sempre está alegre e ri uma risada gostosa com as mãos na barriga que balança muito quando ela ri: “Non me faça rir...” E segura o barrigão! Só ficou doente uma vez.

Josephina faz, no dia de hoje, 99 anos. Falo com ela todos os dias. Quando a Rosa chora muito e não quer dormir, eu sempre chamo Josephina. E a Rosa se aquieta. Quando a Iara fica dodói, peço pra ela cuidar da Iara. E ela cuida. Faz também hoje treze anos, três meses e cinco dias que eu não consigo enxergá-la, por alguma artimanha sua que ando tentando descobrir.