quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Noturno da Lapa

Luís Martins*


“C'est une place
C'est une rue
C'est même tout un quartier...”


(Pigalle, Georges Ulmer e Géo Koger)

Assim também, exatamente, é a Lapa: uma praça, uma rua – a rua e o largo da Lapa; e em torno a Lapa, propriamente dita, certamente um dos recantos mais estranhos, sugestivos e pitorescos da cidade do Rio de Janeiro.

Para falar da Lapa – lembremos, ainda uma vez, a opinião de Manuel Bandeira - “e fazer-lhe sentir todo o prodigioso encanto, só um Joyce – e Joyce do Ulisses, com sua extraordinária força de síntese poética. Basta dizer que a Lapa é um centro de meretrício todo especial (onde vivem as mulatas mais sofisticadas do Rio) e esse meretrício se exerce no ambiente místico irradiado da velhe igreja e do convento dos franciscanos”.

Mas não só o convento e a Igreja que dão à Lapa um aspecto monumental e venerável, contrastando com a humildade dos seus velhos sobrados de portas enegrecidas pelo tempo, a pobreza de seu pequeno comércio e os desregramentos de sua vida noturna; um de seus limites extremos, que a separa das luzes da Cinelêndia, é o venerando, o histórico Passeio Público; é na Lapa que se eleva, desafiando a fúria dos séculos, o grande aqueduto dos Arcos, obra colonial, talvez a mais grandiosa e majestosa das relíquias arquitetônicas do velho Rio. Isto sem falar na escadaria monumental que sobe para o Curvelo e no pitoresco casario que desce a pino do morro de Santa Teresa sobre a rua Joaquim Silva, fazendo lembrar certos aspectos de Lisboa.

As paredes das casas, os telhados rústicos, os portais de pedra parecem impregnados do mofo do tempo; tudo aquilo transpira velhice e tristeza; e, entretanto, a Lapa é – ou era, porque me refiro aos anos 1930 – um bairro alegre. Pelo menos movimentado, agitado, cheio de músicas e tabuletas luminosas, indicando bares, restaurantes e cabarés. Na Lapa vivia o Rio noturno.

Para quem não a conheceu, hoje é difícil imaginá-la nesse período. EU não hesito em afirmar que o prestígio da Lapa na década de 1930 foi, um pouco, promoção nossa, os jovens escritores que a freqüentávamos. Nós escrevíamos sobre ela artigos, crônicas e reportagens; criávamos, assim, a sua tradição, o seu mito e a sua lenda.

Para se ter idéia da importância da Lapa desse período na vida carioca, basta lembrar o seguinte: em mil novecentos e quarenta e tantos (eu já morava em São Paulo) inaugurou-se perto da rua da Lapa, perto do bar 49, uma boate à maneira de Montmartre, arrumada e decorada por um artista da moda e com pretensões a grã-fina: o 1900. No dia da inauguração, o velho bairro ficou atulhado de carros particulares e a festa constituiu um grande acontecimento mundano. Durante alguns dias, os elegantes da Zona Sul foram ao 1900, como em Paris se vai ao Lapin Agille e aos cabarés de Pigalle, porque era “bem” divertido e chique a Lapa, afinal era o Montmartre carioca... Mas a extravagância não durou muito. Os grã-finos logo se enfastiaram. Seis meses depois de inaugurado, o elegante bar ficou às moscas; então, a Lapa o invadiu, tomou conta dele, integrando-o em sua atmosfera e em seu estilo de vida. Naquele ambiente sofisticado, todo decorado com enormes painéis que pretendiam reproduzir a vida elegante e boêmia da belle époque, dava pena verem-se soldados, marinheiros e marafonas tomando cerveja...

A instalação do 1900 fora um erro. O momento não podia ser mais inoportuno. Estávamos no tempo da guerra e esta foi, como terei ocasião de demonstrar em outro capítulo, um dos responsáveis pela melancólica decadência da Lapa.

Aliás, foi uma felicidade que tivesse malogrado essa estranha e despropositada aventura; se a guerra não tivesse acabado com a Lapa, os grã-finos, se nela se instalassem, com certeza acabariam; porque grã-fino, onde se mete, estraga tudo.

(1963)

*in Noturno da Lapa, Rio de Janeiro: José Olympio, 2004 – 4ª ed. Pp. 99 -102

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

A existência possível (cont.)

(PARTE I - continuação)


Existência possível e forma verdadeira


Qual a diferença entre “existência possível” e “forma verdadeira”, segundo o uso que aqui fazemos desses conceitos? Em primeiro lugar, enquanto o pensamento conservador pode tomar “forma” por uma apresentação acidental determinada independente do seu conteúdo material, o pensamento crítico, muito ao contrário, a toma como manifestação essencial e indestacável desse conteúdo, a maneira própria dele existir historicamente “para nós”. A primeira conseqüência evidente é que a forma como a existência se apresenta para nós, carregada de suas mazelas e negatividades, é absolutamente indissociável de seu conteúdo mais intrínseco, de sua conformação estrutural, e não apenas uma deformação acidental e circunstancial de um modelo ideal. A superação de suas negatividades não pode, então, apresentar-se como ortopraxia, como simples correção de desvios, como eficiência gerencial, mas unicamente pode dar-se como negação material e determinada do conteúdo assim informado. O pensamento crítico, assim, penetra nas estruturas profundas do conteúdo historicamente situado e nega as formas presentes e determinadas da existência como dotadas de qualquer necessidade, verdade, ou realidade privilegiada em relação a outras formas possíveis.

Assim, a forma possível não é determinada nem sequer determinável genericamente. Não está presente num ponto mais ou menos definido ou definível. Situa-se no campo do não-ser. Só é construível a partir da negação determinada das estruturas dadas, ou, se quisermos, das negatividades (mazelas) encontráveis na forma dada da existência. Por isso é tão difícil para o conservador atribuir a essa forma possível um estatuto de realidade comparável à forma presentemente dada. Situa-se no oceano imenso e pouco navegado da possibilidade construenda. Muito diferente da “forma verdadeira”, definida e definível por parâmetros previamente estabelecidos, perfeitamente situável, familiar. A existência possível, assim, não se apresenta como utopia, como projeto salvaguardado num não-lugar extrínseco ao tempo e espaço, mas, muito mais, como um não-projeto situado em todos os lugares, presente a confrontar criticamente todas as formas dadas da existência, negando-as e sendo por elas negada, rumo à superação das negatividades apreendidas. Apresenta-se, antes, como processo, como movimento permanente e perpétuo, como tensão dialética entre o dado e o possível – o que “é” e o que “não é”, com idênticos estatutos de realidade/racionalidade, a negarem-se mútua e incessantemente até o infinito. A “forma verdadeira”, por sua vez, reduz essa tensão dialética entre o dado e o possível a uma mera relação entre ato e potência, onde o que pode ser já é, já está contido no que é, bastando para que se atualize a disposição ideal das condições favoráveis.

A partir do que ficou apresentado, percebemos que qualquer doutrina do fim ou do sentido da história, tenha contornos religiosos, políticos ou filosóficos, vai se apresentar conservadora no sentido que aqui emprestamos. Sempre que o processo se detém, que o movimento se encastela numa forma determinada, ideal ou verdadeira, sempre que se abrir mão da crítica e da negação possíveis, temos a morte da possibilidade. O paraíso e o nirvana são tão imobilizadores da emancipação humana quanto o estado prussiano de Hegel ou a sociedade comunista idealizada. Mais, qualquer parâmetro particular ideal que se ponha a positivamente confrontar as formas dadas da existência, seja a Liberdade, a Igualdade, a Democracia, etc. operam o mesmo papel, qual seja de escamotear a necessária negação dos conteúdos materiais e das estruturas que engendram as negatividades essenciais. Não que essas positividades não tenham o seu papel no curso quotidiano da vida, da existência e, por assim dizer, da sobrevivência: o têm, indiscutivelmente, e disso trataremos noutra parte. Apenas situam-se num grau de consciência limitado, que tem a sua utilidade, mas que impingem transtornos insuperáveis ao progresso do conhecimento crítico, à superação das negatividades da existência dada, toda vez que não se contêm em seus limites de uso estritos.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Dama das camélias

João de Barro e Alcyr Pires Vermelho


A sorrir você me apareceu
E as flores que você me deu
Guardei no cofre da recordação

Porém depois você partiu
Prá muito longe e não voltou
E a saudade que ficou
Não quis abandonar meu coração

A minha vida se resume
Oh! Dama das Camélias
Em duas flores sem perfume
Oh! Dama das Camélias

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Divagações cinerárias


A verdade, meus amigos, é que o folião é, acima de tudo, um altivo. Daquela altivez de que nos fala Pièrre Verger ao observar que Pai Balbino, um humilde vendedor de quiabos na feira de Água dos Meninos, portava-se com a dignidade de um rei, por ser filho de Xangô. Daquela soberba que nos percorre o corpo e a alma depois de uma noitada boa de amor, ao encontrar de manhã no elevador a vizinha carola do 1201.

O folião, na quinta, sexta-feira que precedem os dias de Carnaval, encara as pessoas na rua, no ânibus, com uma acachapante superioridade. Tem pena de seu patrão, despreza o seu senhorio. Ele sabe, no seu íntimo, que a cidade lhe pertence, que as coisas na verdade não são como parecem na maioria dos dias; que a superioridade que o capataz lhe cospe reitaradamente às faces é uma ilusão que lhe custará caro. São chegados os dias em que tudo assume a sua feição verdadeira, em que as máscaras cinzentas que foram impostas à realidade são impiedosamente arrancadas. Essa efêmera mas irrefutável prova sobre o verdadeiro estatuto das coisas lhe propicia um inexprimível sentimento duplo de superioridade: por ter consciência desta realidade e por saber-se o senhor livre e soberano de seu próprio destino.

É por isso que ao folião repugnam as insuportáveis pessoas que simplesmente ignoram o Carnaval. Não as que o odeiam. Ele compreende que para os que se arvoram em donos das coisas e dos destinos nos outros trezentos e sessenta e um dias, a visão crua da realidade absolutamente diversa lhes seja insuportável. Aos que francamente detestam o Carnaval o folião responde com um sorriso de aviso: não tentem interferir no desvelamento essencial desses dias; contenham-se nos limites da sua mentira. Mas aos que ignoram o Carnaval, que estampam em suas faces lânguidas e mortas a sua estupidez indiferente, o folião devota, muito mais que piedade, um ódio secreto, um desprezo absoluto pela incapacidade de exercerem um atributo tão fundamental e tão simples de sua humanidade.


Bola Preta

Reiterando o costume já quase vintaneiro, estive sábado acompanhando o Cordão da Bola Preta na minha amada cidade do Rio de Janeiro. E só agora consigo perceber o sentido profundo da transformação que pude acompanhar nessas duas décadas.

O Bola Preta representava em 1989, quando saí pela primeira vez, uma centelha de esperança do Carnaval de rua do Rio, que se reduzia a uma dúzia de bandas e blocos resistentes, esses últimos já bem contaminados de uns bobos formalismos estruturais que deturpavam o caráter da manifestação que se devia definir pela espontaneidade: disputa de samba, desfiles intermináveis ao som de uma única música, camiseta etc. O espírito da brincadeira popular regrada tão somente pela disposição foliã confinava-se no velho Cordão, com seus seis, sete mil brincantes.

Hoje são duzentas, trezentas mil pessoas que nem propriamente compõem o desfile, mas que se apinham pelas ruas repletas de gente, simplesmente para se integrar no espírito coletivo da farra, da festa, da música, da galhofa. O Bola Preta tornou-se a celebração máxima e necessária da indentidade da cidade do Rio de Janeiro, do espírito da carioquice, que se traduz na brincadeira, na espontaneidade, na gozação, no jogo de cintura, no bate-papo. Ao verdadeiro carioca impõe-se o dever de peregrinar uma vez por ano ao santuário sagrado onde repousam as relíquias de uma cultura maravilhosa, protótipo de um país que nos propusemos historicamente a construir e que segue soterrado pelos escombros da ganância dos espoliadores de sempre. Por enquanto. Daquele altar sagrado e da imolação coletiva que sobre ele se oferece em honra de uma outra existência possível jorra a seiva que nutre as nossas esperanças.

Quem já presenciou ou sabe o que o Círio de Nazaré representa para um paraense entenderá perfeitamente a imagem que procuro construir. Muito mais que uma festa religiosa, acima e independentemente das variadíssimas formas e sentimentos em relação ao divino, a celebração coletiva da identidade de um povo é ela mesma sagrada. Por isso o paraense que não pode ir a Belém no segundo domingo de outubro sente-se um exilado. Por isso, esteja onde estiver, o paraense de escol dá seu jeito de tomar açaí, comer pato no tucupi. Sozinho ou, de preferência, encontrando outro paraense, vai encher a caveira, telefonar pros parentes, colocando logo cedo pra tocar um disco velho do Pinduca.

Assim se sente um verdadeiro carioca, de nascimento ou de coração, quando, por qualquer circunstância, se vê impedido de estar vagando perdidamente pelas ruas do centro do Rio no sábado de carnaval, o dia mais importante e mais carioca do ano, muito além de qualquer 20 de janeiro ou 1º de março. Assim compreendeu sempre meu velho Tio Osias, o maior carioca que conheço. E compreender hoje o velho me emociona e me comove muito além de qualquer distância.


O povo ama o Carnaval

Na base da autorização judicial, deu-se enfim o baile de rua da Terça-feira Gorda enchendo a pequenina rua de marchas, sambas, confetes e fantasias como, sinceramente, nunca vi e não imaginaria possível. Um encontro tão improvável como absolutamente real e necessário de todas as idades, todas as procedências, todas as condições. Velhinhos e crianças, pobres e ricos, o Centro e a Periferia se entupindo de música e serpentina, nostalgia e esperança. Quem viu, viu.

Tenho sempre aqui batido na tecla da incompatibilidade desta triste cidade com o espírito do Carnaval. Ela é aparentemente feita para os seus pretensos senhores desfilarem seus automóveis, construírem os bastiões onde encastelam sua ignorância soberba, para não serem molestados por essa desagradável e incômoda ocorrência chamada vida. Mas o povo desta cidade é um povo bom e generoso, que sofre demais por ver sua alma brasileira reiteradamente acabrunhada pelos iludidos da ordenada mudernidade capitalista.

Naquelas poucas horas cavadas a fórceps judicial em meio aos dias que por si só já deviam pertencer ao povo oprimido – e eu choro escrevendo isso – vi o Brasil latejar incontido dentro da carcaça de concreto e dinheiro. E através de um aleph improvável que imaginava tão distante destas plagas, vi, num átimo, passado, presente e futuro, o Rio de Janeiro e a Bahia, África e Amazônia, condensados num toque de Zé Pereira.

Minha gratidão eterna a todos os que embarcaram conosco neste sonho, ao Capitão Caverna Leo Gola, ao grande Marcão Gramegna, os colegas músicos e toda a família Borogodó. E especialissimamente a uma certa melindrosa ruiva que iluminava o céu com o seu sorriso tímido, em cuja cabecinha, carnavalesca como poucas, brotou e cresceu a disposição de contrariar a esperada expansão eterna da impossibilidade. A ela, meus sonhos, minhas esperanças, meus filhos. Minha vida.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Pra contrariar o chefe, K. Veirinha fundou o Bola Preta

Jota Efegê



Nas proximidades do carnaval que, naquela época (1918), começava a ferver desde outubro nos festejos da Penha, o folião K. Veirinha erguendo seu copo de chope resolveu desafiar o chefe de polícia: "Vamos formar um cordão!" E, mostrando sua disposição de luta contra a autoridade, concluiu: "Ele disse que vai fechar todos os cordões, mas o nosso ele não fecha! O nosso é de bola preta!" Toda a turma, já com duas ou três altas pilhas de cartões na mesa, topou a parada e resoluta, pondo em alvoroço o Bar Nacional, da famosa Galeria Cruzeiro, prorrompeu em vivas seguidos.

Nascia, desse modo, em meio de uma reunião boemia, que acontecia normalmente, todas as tardes, o já hoje tradicional Cordão da Bola Preta, conhecido em todo o Brasil e também no estrangeiro. Ficava, igualmente, consagrado como folião, pois que já o era desde rapazola, o Álvaro Gomes de Oliveira, conhecido no Clube dos Democráticos como Trinca Espinha, apelido mais tarde substituído pelo de K. Veirinha.


À guisa de biografia


Antigamente, todos os associados de destaque dos grêmios carnavalescos adquiriam um pseudônimo sempre precedido de aristocrático lord. Assim, Álvaro de Oliveira que, ainda garoto, de menor idade, conseguiu ser sócio dos Democráticos quando o alvi-negro tinah sede no Largo do Machado, ganhou sua alcunha. Deram-na, mais tarde, já na Rua do Hospício (hoje Buenos Aires), para onde o clube se transferiu, uma bem divertida: Lord Trinca Espinha. Continuou com ele da Rua dos Andradas e também na do Passeio, locais onde os valorosos 'carapicus' estiveram instalados.

Só em 1918, depois da terrível epidemia de 'influenza espanhola', da qual, conseguindo escapar, ficou, no entanto, bastante magro, esquelético, perdeu sua antonomásia. Um amigo, vendo-o em tal estado exclamou: "Puxa, você parece uma caveira". À tarde, na costumeira chopada do Bar Nacional, a turma homologou definitivamente o apelido: "Viva o K. Veirinha!" Nunca mais se deixou de chamá-lo por esse diminutivo ou de completar seu verdadeiro nome com ele: "o Álvaro K. Veirinha".


K. Veirinha enfrenta o chefe Leal


Carnavalesco de quatro costados, integrante de um grupo do qual faziam parte, entre outros, os irmãos Oliveira Roxo (Jair, Jorge, Joel), Chico Brício, Archimedes Guimarães (Fala Baixo), Álvaro de Oliveira era desassobrado. Ao ler nos jornais uma portaria do chefe de polícia, Dr. Aurelino Leal, achou o momento propício para mostrar sua coragem. Rigorosa, ameaçadora, a publicação dizia: "Os grupos e cordões que perturbarem a ordem públcia terão suas licenças cassadas, sendo os perturbadores presos e processados, na forma da lei". Proibia, ainda, mais adiante, de maneira igualmente decisiva, a fundação de grupos similares.

Longe de se amedrontar e disposto a topar uma parada com o "chefão" temido, o grupo das alegres reuniões chopísticas de um dos bares da galeria Cruzeiro seguiu coeso o líder K. Veirinha. Iriam, todos, desobedecer o mandachuva. Alugaram a sede do Clube dos Políticos, na Rua do Passeio, e na noite de 31 de dezembro de 1918, com um "maixético e rebolativo baile" (como era de praxe qualificar as festas dançantes carnavalescas) consumavam a deliberação. Iniciava, assim, o hoje famosíssimo Cordão da Bola Preta e sua brilhante e vitoriosa trajetória.


Tradição da Bola Preta

O sucesso da noitada de nascimento do Cordão da Bola Preta, com o salão apinhado e a fachada do clube feericamente iluminada, abriu-lhe caminho fácil nos meios carnavalescos. Seus iniciadores (K. Veirinha, Chico Brício, Vaselina, Pato Rebolão, Fala Baixo, Porrete e outros) pederam levar à frente o folionico grêmio sempre com seus bailes excessivamente concorridos. Sem instalação definitiva, realizando seus fandangos na Rua 13 de Maio, no Palace clube, na Cinelândia, num salão do antigo Liceu de Artes e Ofícios, acabou, por fim, rico e poderoso, com a sede própria que ora possui. [*]

Álvaro de Oliveira viu, desse modo, triunfar sua iniciativa ao mesmo tempo que se firmava uma tradição levando o nome do cordão até ‘as estranjas’ como fator preponderante do fascínio do nosso Carnaval. Os turistas que aqui chegam para conhecer o nosso famoso tríduo de Momo desembarcam na Praça Mauá ou no Galeão perguntando pelo baile do Teatro Municipal e também pelo do ‘Bôle Preete". Coisa que, inegavelmente, apesar do seu feitio boêmio, desprendido, envaidece o K. Veirinha, fundador e sócio número um, benemérito, na prestigiosa agremiação.


Saudosista, mas não muito

Afastado das homéricas "farras" dos áureos tempos em que o Carnaval carioca conseguia dividir durante o ano inteiro a cidade em três facções: ‘baetas’, ‘gatos’ e ‘carapicus’, Álvaro de Oliveira é agora um homem tranqüilo. O folião K. Veirinha hoje é apensa um assistente da festa de Momo. Às vezes, matando saudades, aparece no cordão e vê seus sócios vibrando, entoando o hino feito pelo maestro Vicente Paiva e Nelson Barbosa para empolgar a moçada: "Quem não chora não mama, segura, meu bem, a chupeta. Lugar quente é na cama ou, então, no Bola Preta".

Recorda, vendo a animação reinantes bons tempos. Lamenta não encontrar ali a ‘velha turma’, em grande parte desaparecida, ou, como ele, fora da ‘linha de fogo’. Orgulha-se, porém, de ver seu cordão vibrante, nascido de uma rebeldia momentânea, resultado da desobediência ao ‘chefão’, abrilhantando de maneira decisiva a maior festa da Cariocolândia. Caminhando para o meio século de existência o Cordão da Bola Preta, sólido e vitorioso, faz também (reconhece ele feliz e exultante), a consagração de seu apelido: K. Veirinha.


(in Figuras e coisas do Carnaval carioca, Rio deJaneiro, Funarte, 1982, pp 18-20.Publicado originalmente em O Jornal, edição de 27 de janeiro de 1963.)

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[*] Atualmente, a sede do glorioso Cordão da Bola Preta, onde tantas vezes sambei "até o sol raiar", está penhorada judicialmente e já foi levada a leilão algumas vezes sem sucesso, por dívidas de condomínio e IPTU. O poder público, como sempre, inimigo do povo. O Bola tem hoje só cerca de setenta sócios, contra mais de mil há quinze anos atrás. Que tal uma campanha de associação em massa? O que me dizes, Edu Goldenberg? O que me dizes, Paulo Eduardo Neves? O que me dizes, Luis Antonio Simas? Vamos encarar? Se cada uma das 200 mil pessoas que segue o Cordão no sábado de carnaval doasse R$ 10,00, a dívida estaria paga!

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Negação do Carnaval

Não põe corda no meu bloco
nem vem com teu carro-chefe
não dá ordem ao pessoal
Não traz lema nem divisa
que a gente não precisa
que organizem nosso Carnaval

(Plataforma, samba de João Bosco e Aldir Blanc)

Semana passada publiquei aqui um excelente texto do grande Plínio Marcos, conhecedor mais do que autorizado das coisas do profícuo carnaval que se fazia por estas cada vez mais desalentadas plagas, assim como de tantas coisas mais dos nossos pouco visíveis subterrâneos que ele tão apropriadamente batizou de “quebradas do mundaréu”. Pois bem, hoje completam-se exatos trinta anos de publicação do artigo, e é estarrecedor perceber sua brutal atualidade, numa cidade onde absolutamente nada se conserva, em que tudo está em permanente estado de transição. E, normalmente, para pior.

A genialidade do dramaturgo santista percebe e mostra com a força de sua verve o que toda a teoria não é capaz de tão direta, tão claramente exprimir. O dedo do poder (político, econômico) tende sempre a destruir as manifestações mais genuínas e mais expressivas do povo, essa entidade mítica onde se encontram e se articulam os diversos indivíduos e a coletividade. E isso por uma razão bem simples. Essa expressão da subjetividade popular pressupõe espontaneidade, diversidade, singularidade, integração. E essa outra instância de mediação entre os indivíduos chamada “poder” (ou “sistema”, se preferirem) baseia-se opostamente em planejamento, planificação, homogeneização, formalização, separação. No Brasil, desde o Estado Novo, percebeu-se claramente que para conter os demônios incontroláveis e transformadores que se espalham todas as vezes que o povo manifesta livremente sua alma criadora, é muito mais fácil, mais eficaz e menos traumático organizar do que reprimir. E assim se fez, reiterada e seguidamente com as mais pujantes formas expressivas do carnaval brasileiro, sendo o exemplo das escolas de samba o mais evidente apenas.

Essa promiscuidade destrutiva das expressões populares com o poder constituído não é só obra do apetite voraz do sistema, esse buraco-negro que tudo quer tragar para sua órbita inarredável, tentando prender toda complexidade e toda espontaneidade à previsibilidade de suas categoriazinhas determinadas e determináveis de antemão. É fruto também de um desejo e uma busca, no mais das vezes muito legítimos, pelo reconhecimento do valor destas manifestações perante as estruturas “oficiais”, o que se pode interpretar como uma tentativa de fazer valer para fora dos ambientes originários os mesmos padrões de valoração, de intermediação, de sociabilidade ali encontráveis. Traduzindo com exemplo: no ambiente da escola o bamba é aquele que melhor dança o samba, que é imbatível no verso de improviso, que domina com maestria os diversos instrumentos etc. O valor que lhe é atribuído tem uma conotação meritória, muito diferente das atribuições de valores na sociedade “civil”, determinadas por uma infindável série de pré-definições alheias e anteriores ao indivíduo propriamente: onde nasceu, de qual a família, qual a cor da pele etc. Isso, claro, porque é nesta dimensão “civil” que se travam as batalhas do dia-a-dia, a luta pela sobrevivência tanto material quanto simbólica e é nela que se experimenta a violência de um sistema informado pela desigualdade, apartação, apropriação. O bamba que é reconhecido e tem lugar de destaque no seio da sua comunidade pelo seu valor, quer que esse valor lhe sirva minimamente para reconhecimento também na sociedade “civil”. Nem que seja por três dias no ano. E nessa busca tão legítima quanto ingênua, ele, normalmente, se estrepa: perde o que tem e não alcança o que almeja.

Por isso lanço aqui, na contra-mão do que postula meu amigo Paulo Eduardo Neves, a campanha: prefeitura do Rio, governantes em geral, peloamordedeus, fiquem bem longe do Bola Preta, deixem o velho Codão em paz!!! Eu sei que minhas amigas vão reclamar e dizer que só digo isso porque não sou mulher, mas eu afirmo que sei bem o que vocês sofrem. Ninguém precisa de sinalização! Ninguém precisa de banheiro! O Cordão sobrevive assim há noventa anos, graças aos butiquins, matinhos, carros estacionados e toda espécie de peripécias e artimanhas. E afirmo, mais uma vez, com a autoridade de dezoito carnavais, com as cicatrizes deixadas pelos tamancos, com a moral de quem já passou mal um sem número de vezes apertado em fantasias improváveis: há que se sofrer! Carnaval é, acima de qualquer coisa, sacrifício.



"O que não tem, até o que tem lhe será tirado." (Mt 25, 28-29)


“São Paulo sempre teve muito carnaval. Mas hoje está tudo resumido no desfile das escolas de samba e nos bailes dos clubes. E isso tudo é muito triste.” Pois nisso envelheceu o texto do nosso guerreiro. Porque os bailes nos clubes, de matinées e soirées monumentais que bem conheci, também não há mais. Dos quatro mais tradionais grandes clubes, sei que Corinthians, Palmeiras e Portuguesa já não fazem noites de Carnaval, não sei o Juventus. Nem nos pequenos clubes e casas tradicionais: Monte Líbano, Clube Homs, Casa de Portugal. Nem nas gafieiras, só talvez em pouquíssimos e renitentes salões de bairro. Também uma ou outra “danceteria”, mas dá arrepios até imaginar o que se ouve e vê por ali, pela amostra que tive ano passado na decadentíssima matinée palmeirense em que tentei levar minha filha e não suportamos quinze minutos. Sobram iniciativas isoladas dos Sesc's e, modéstia às favas, o Ó do Borogodó.

Por essas e outras, meus caros, é que o Ó do Borogodó, num sobre-esforço quase acima das suas forças (que eu sei), num desapego quase insano aos aspectos propriamente comerciais da história, resolveu bancar o baile da Terça-feira Gorda na rua, absolutamente de graça, com palco, orquestra, cantores, som, iluminação tudo bancado pelo bar graças ao auxílio necessário, mas insuficiente, da Cerveja Itaipava. Mesmo com todo o esforço, com todo o desprendimento (e por que não dizer, com todo prejuízo) , acreditem, senhores, a nobre Companhia de Engenharia de Tráfego – C.E.T. não quer deixar! Aliando a desculpa esfarrapada da “organização” do fluxo de veículos (esses, sim, os únicos e verdadeiros donos desta pobre cidade), com a repressão indisfarçada, imotivada, árbitrária e proposital, o poder público desta cambaleante metrópole opõe-se a colocar dois ou três cavaletes para fechar por algumas horas, uma ruela com meia dúzia de casas e um cemitério, numa Terça de Carnaval em que até a Av. Paulista vira um cemitério. Não pode. Não vai fazer. Não querem. Nem pagando a esdrúxula e exorbitante taxa que é cobrada pela referida “companhia”. A frase da engenheira (risos urinantes) que veio fazer a “inspeção técnica” a partir do pedido feito pala casa cunhou a seguinte pérola, que vou enquadrar e pendurar na parede do quarto, ad perpetuam rei memoriam, para toda vez que eu sentir começar a arrefecer meu ânimo de mudar este estado de coisas que quer tomar este país: “Este ano ainda tem uns bloquinhos por aí que a prefeitura autorizou. Mas no ano que vem a gente acaba com tudo.”

Aí eu fico a cismar, ó Simas, o que será desses que se arvoram em donos dos caminhos? O que lhes acontecerá? Poderão impunemente desafiar, caçoar, troçar do Grande Senhor? Passarão? Passarão???

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Socialismo carioca

Alguém melhor antes de mim já disse que o carnaval é um tempo de inversões. É certo que a idéia de inversão pode ter uma série de possibilidades, de virar de ponta-cabeça, de passar uma imagem do positivo para o negativo, de alterar a ordem etc. Confesso que me dá calafrios imaginar no que daria o Brasil de hoje se simplesmente a gente pegasse essa barafunda (no mau sentido) e saísse por aí “invertendo” aleatoriamente. Mas não estou pra teorias e, ainda bem, o carnaval não tem nada de aleatório; tem, na verdade, uma Razão superior que o guia, ainda que não seja essa razãozinha mesquinha e impertigada que nos querem fazer descer pela goela há uns quinhentos anos. É a Razão coletiva de um povo, de um grande povo, norteada pelo encontro e pela possibilidade, pela entrega e pelo encanto. Capitaneada, é claro, pelo Senhor de todos os caminhos.

O grande Luiz Antonio Simas, o maior amigo que ainda não conheci, escreveu dia desses no seu absolutamente indispensável Histórias do Brasil sobre a bobagem e inutilidade de se colocar nas ruas do Rio as tropas, o Exército, a força (risos) nacional de segurança (mais risos - notem como ando goldenbergueano!), o diabo que os carregue. Advogava ali o velho historiador que a solução para garantir a paz era colocar na rua permanentemente o Cordão da Bola Preta. E eu posso testemunhar, com a autoridade de dezoito carnavais, que em meio a multidão de gente espremida e ébria NUNCA, JAMAIS, EM TEMPO ALGUM vi sequer um tapa na cara. Vi, ao contrário, encoxada na mulher do próximo, que normalmente daria defunto, ser resolvida pelo “proprietário da mercadoria” com a seguinte frase: “Aê, merrmão, aqui no nosso buteco a coxinha ainda não tá liberada. Mas se quiser chegar na cerveja...” Eu juro. O maridão meteu a mão na bolsa, sacou duma lata gelada e saiu abraçado bebendo com o tirador de casquinha.

Como essas eu já andei contando várias, por aqui e pelos butiquins menos virtuais. Mas nenhuma se equiparou, verdadeiramente, à mais bem sucedida ação revolucionária de abolição do modo capitalista de produção, de dar inveja a qualquer Fidel ou Ho Chi Min. Vou contar, saldando, aliás, uma dívida ancestral.

Final de desfile do Bola, coisa de meio-dia e meia, uma hora da tarde (vejam vocês...). O ano devia ser 1991, ou 92. Nesse tempo da minha mocidade, o glorioso Cordão entrava ainda, com suas sete ou oito mil pessoas, pela Rua da Carioca, onde se dava o melhor da festa, até “acabar” na Praça Tiradentes. Acabar vai assim, entre aspas, porque era a partir daí que a coisa realmente começava a desandar. Desobrigados todos de suas sacras obrigações de folião, a bebedeira comia solta na Praça e nos seus arredores. Minto. Comia solta em todo o trecho do desfile, porque mesmo antes do fim iam parando uns aqui e outros ali e depois da “apoteose” os que vinham voltando se juntavam e assim caminhava. Pois bem. Nesse ano, entramos eu e um amigo (há testemunhas! Há testemunhas!) num buteco apinhado de gente, na esquina de Carioca com a Praça. A coisa estava caótica. O português, descostumado com a multidão em seu estabelecimento, que só enchia uma vez por ano, não conseguia minimamente dar operacionalidade à distribuição dos víveres imprescindíveis para a manutenção das tropas . E o pior é que não havia muitas opções pra se beber chope por ali (O Bar Luís, por exemplo, não abria em dia de Bola, vejam vocês...). Levava tanto tempo conseguir um tulipinha, que pedíamos os para nós dois chopes em números pares: quatro, seis, oito, conforme ia aumentando o intervalo entre cada passada do garçom. E todo vez que chegava a preciosa seiva, meu amigo se punha a gritar, bem embaixo do escudo do Vasco, no melhor estilo Sucupira: “Morra Eurico Miranda, filho de uma égua!”

Aí, meus amigos, deu-se o inacreditável. Num determinado momento, o português, bandeja de chope em riste, se esgoelava chamando o garçom que, a léguas de distância, não ouviria nem que sua tuberculose já estivesse em grau de hemoptise. Foi quando um cidadão, encastelado no balcão, tomou a bandeja do galego e berrou pro cara que estava na mesa de trás: “desova na sete!”. E o que se viu foi o buteco virar um pequeno Maracanã, a bandeja transformada numa daquelas bandeiras que se abrem deitadas na arquibancada, passeando pelo alto, de mão em mão, a coletividade automática e espontaneamente atendendo ao imperativo superior, até ser recebida na mesa certa com vibração maior do que gol aos 40 do segundo tempo! E pra quê? Percebendo que esse sistema de distribuição seria infinitamente mais efetivo do que os atônitos dois garçons a atender uma orda de bebedores insaciáveis, as bandejas passaram a ser sequestradas uma após a outra. Como o saloio naturalmente protestasse que não tinha como controlar o que era servido pra quem, um gordo suado imediatamente passou pro lado de dentro do balcão, ocupando o setor das comandas e organizando as “redes” de distribuição, que passaram a funcionar na base do adiantado. Atônito, mas visivelmente satisfeito com o grau de eficiência do sistema implantado, o nobre vascaíno nem teve forças pra protestar quando uma simpática senhora de lenço na cabeça (eu poderia dizer que havia bobes, mas a memória me trai e não quero correr o risco da mínima falta com a absoluta e estrita verdade dos fatos) assumiu o caixa, recebendo, fazendo troco.

Isso, meus caros, em questão de minutos. O português encostou-se na boqueta que dava pra cozinha e dali passou a tudo observar rigorosamente calado. Minto. Vi-o umas duas vezes franzindo os bigodes e abanando a mão para a filha desesperada que virava e mexia aparecia na porta da cozinha: “deixa, ó pá!”. Um dos garçons - eu posso garantir por essa terra que me há de comer! - encostou a uns dois metros de onde a gente estava e já livre da gravatinha borboleta e dos pudores servis aceitava as tulipas que a rapaziada teimava em lhe pagar. E assim bebeu-se por uma boa parte da tarde.

Respondam, queridos: é ou não é o socialismo?

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

O Carnaval dos cordões

Plínio Marcos


A tradição canavalesca de São Paulo era o cordão. Havia algumas escolas de samba, porém (e sempre tem um porém), os bambas, a pesada eram os cordões. Camisa Verde e Branco (branco mesmo), Vai-Vai, Paulistano da Glória, Campos Elíseos, Som de Cristal eram todos famosos cordões. E o cordão paulista tinha batida diferente das escolas de samba, tinha outras figuras e outras mumunhas. Eu disse "tinha". Porque, que eu saiba, não existe mais nenhum cordão em São Paulo. Os que não acabaram de vez se transformaram em escolas de samba. Como é o caso do Vai-Vai e do Camisa Verde e Branco, que foram os que mais resistiram, antes de se transformarem em escolas de samba. E o fim dos cordões, sem dúvida nenhuma, se deve ao elitismo, ao paternismo das autoridades que, quando resolvem incrementar algumas manifestações espontaneas do povo, mesmo quando estão bem intencionadas, só atrapalham. Isso porque as autoridades, sempre tão distantes das bases, tomam suas medidas dentro dos gabinetes, escutando acessores que geralmente se preocupam com o brilhareco que resulte em algum lucro e nunca nos interesses da coletividade.

No caso do samba de São Paulo, não deu outra coisa. O Prefeito Faria Lima resolveu, com a melhor das intenções, oficializar o Carnaval de São Paulo. Mas deve ter consultado gente que sempre achou que nesta cidade não havia samba, nem sambistas. E essa gente, sem vacilar, desconhecendo totalmente o que é Carnaval, desconhecendo que carnaval não se resume apenas em desfiles, nem em escolas de samba, que desfile e escolas de samba são um aspecto do carnaval, que existem vários outros aspéctos que também devem ser considerados, essa gente estava interessada na cascata que podia fazer em torno da oficialização do Carnaval e não na preservação dos costumes carnavalescos do povo desta cidade. E então, sem nenhuma cerimônia, fizeram a presepada: oficializaram o Carnaval. Mas, na lei, ficou claro que o único evento carnavalesco que a Prefeitura se via obrigada a realizar era o desfile das escolas de samba. Resultado, todo incentivo da Prefeitura para as escolas de samba e nenhum para os cordões que, diante da indiferença das autoridades, foram se extinguindo ou virando escolas de samba, puxadas aos defeitos das escolas do Rio de Janeiro (é mais fácil copiar defeito que virtude) e se desvinculando totalmente das raízes culturais de São Paulo.O samba paulista é diferente do samba baiano que se instalou no Rio de Janeiro a partir da casa das "tias". O samba paulista é mais puxado ao batuque, ao samba de trabalho. Do toco, durão. O samba paulista vem das fazendas de café. O crioulo vindo do interior ia se instalando perto dos locais de trabalho: Jardim da Luz, Barra Funda, Largo da Banana, Praça Marechal, Alameda Glete, Bexiga, Rua Direita, Praça da Sé. E aqui, como no Rio de Janeiro, a polícia perseguia o samba e os sambistas. No Rio de Janeiro, os pagodeiros subiam o morro e a polícia se acanhava, e aí, não havia remandiola. O samba era solto, batido na mão, espalhado pelo terreiro. Aqui, o sambista se recolhia nos porões e lá puxava o samba, mas, naturalmente, não era a mesma coisa. Um samba espalhado debaixo de um céu cheio de estrelas e de luar e um samba espremido em porões, nos quais crioulo de mais de um metro e setenta tinha que mostrar o que sabia todo dobrado, pra não bater com a testa nas vigas. E quando o pagode esquentava, era tanta poeira que subia, que só era possível saber que estava havendo samba pelo ronco da cuíca e pelo gemido do cavaquinho, porque ver, não se via ninguém.

São muitos os grandes sambistas de São Paulo: Vassourinha (Olha aí, carnavalescos de escolas de samba, que andam com mania de enredo com vida de artista: esse foi gente grande e de muita embaixada no rádio), Dionísio Camisa Verde, Marmelada, Jamburá, Feijó, Pato Nágua, Sinval, Inocêncio Mulata, Carlão do Peruche, Nenê da Vila Matilde, Pé Rachado, Zézinho do Morro da Casa Verde, Geraldão da Barra Funda, Chiclete, Zeca da Casa Verde, Toniquinho, Nego Braço, Zoinho, Dona Eunice, Sinhá, Donata, Tudo gente que mantinha o samba na rua na época em que a polícia acabava samba na base do chanfralho. Tudo gente de valor provado no meio das batalhas. Tudo gente que saía nos cordões pelo prazer de sair, por gostar de samba, por querer sambar. No centro da cidade, muitas vezes, um cordão que ía encontrava um cordão que vinha. Então, era coisa pra valente. Ninguém recuava. Os cordões se cruzavam. Tinha um ritual todo cheio de parangolé. O baliza de pau de um cordão protegia a porta-estandarte do outro cordão. Os estandartes (ou bandeiras) eram trocados com muita gentileza e muito respeito. Depois de um tempo, se destrocavam os estandartes (ou bandeiras) e aí o pau comia. Navalha, tamanco, porrete entravam na fita pra bagunçar o pagode.

Pato Nágua foi levar uma cabrochinha lá pras bandas de Suzano. Amanheceu boiando numa lagoa, comido de peixe e de bala. Dizem que foi a primeira vítima do Esquadrão da Morte. Ninguém sabe direito. Defunto não fala. O que se sabe é que a notícia chegou no Bexiga à tardinha, na hora da Ave-Maria, e logo correu pelos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. E por todas as quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, o povão chorou a morte do sambista Pato Nágua. E o Geraldão da Barra Funda, legítimo poeta do povo, chorou por todos num bonito samba chamado Silêncio no Bexiga.

O Largo da Banana era o lugar onde os caminhões que vinham do interior encostavam pra descarregar. Ali se juntava a curriola. Enquanto não vinha caminhão se armava o samba duro. Se jogava a tiririca:

É tumba, moleque, é tumba
é tumba pra derrubar
tiririca, faca de ponta
capoeira vai te pegar
Dona Rita do Tabuleiro
quem derrubou meu companheiro
Abre a roda, minha gente
que comigo é diferente

E só parava na roda quem se garantia. E o Inocêncio Mulata (hoje presidente do Camisa Verde e Branco da Barra Funda) sabia tudo. Tudo e mais alguma coisa. E no Carnaval, puxava no surdão um famoso trio de couro. Ele no surdão, o Feijó na caixa de guerra e o Zoinha no tamborim. Paravam num boteco qualquer e começavam a zoar. Ia juntando gente, juntando gente e aí o rio saía pela Barra Funda, com uns duzentos sambando atrás. Na Praça Marechal, já eram dois mil, na Glete, cinco mil. Aí, era zorra, zorra total, até a polícia chegar. Foi nesse trio de couro que o Inocêncio ganhou o apelido de Mulata. Logo ele, que não é de fazer careta pra cego, resolveu aprontar pro Feijó, que não podia ver rabo de saia. O Inocêncio pegou um vestido da Dona Sinhá, meteu um turbante, se embonecou e ficou na moita. O Feijó e o Zoinha, que estavam no boteco esperando o companheiro de trio, foram tomando todas. Quando já estavam bem bebuns, e achando que o Inocêncio não viria mais, ele se apresentou vestido de mulher. Fez sucesso pro Feijó, que achou aquilo uma tremenda mulata e foi logo pagando cerveja. Mais encantado ainda ficou o Feijó quando aquela mulata pegou no surdo e mandou ver. O trio saiu. O Feijó todo preocupado com a mulata e alimentando ela com cerveja até a Glete. Aí, o Feijó resolveu partir com tudo. Se entortou. O Inocêncio tirou o turbante e se apresentou. O patuá do Feijó entortou. Mas o Inocêncio ganhou pra sempre o apelido de Mulata.

Mas a guerra se avacalhou. Não existe mais trio de couro, nem bloco de sujo, nem vai-quem-quer. Essas manifestações espontâneas do povo, que sempre a polícia tentou acabar sem conseguir, acabaram graças às promoções carnavalescas da Prefeitura. No lugar dessas coisas todas, a Prefeitura meteu o Trio Elétrico. A própria poluição sonora, que com guitarras elétricas e grandes aparelhos de som, esmagam, apagam qualquer instrumento de couro batido por um sambista. Alguns músicos defendem essa jeringonça como mercado de trabalho, mas esquecem que um toca-fitas e uma Kombi fazem o mesmo efeito que esse trio elétrico. E esquecem que falta mercado de trabalho porque muitos bailes de Carnaval em São Paulo são animados por toca-fitas e que a própria Prefeitura promove um bailão pra quarenta mil pessoas, com toca-fitas.

São Paulo sempre teve muito carnaval. Mas hoje está tudo resumido no desfile das escolas de samba e nos bailes dos clubes. E isso tudo é muito triste. Porque o Carnaval sempre serviu pras manifestações espontâneas do povo. E tudo agora vai se resumindo num espetáculo pra atrair turista. Feito no gosto dos turistas e avaliado pelos padrões culturais das elites. E isso dói. Porque um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre.

(Fonte: Folha de S. Paulo, 13 de fevereiro de 1977)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

A existência possível

PARTE I

Não sei se efetivamente é mais assombrosa a existência ou a consciência que dela podemos tomar. Porque é fato que o nada permanece, se pensarmos bem, indiscutivelmente mais plausível. Mas não bastasse o contra-senso primeiro que é existir o universo em geral e as coisas diversas em particular, existimos também nós que podemos não só fazer esta constatação, mas ainda especulativamente negá-la. Diferentemente da infinita maioria dos demais entes que conosco dividem essa aventura existencial, que simplesmente existem e pronto. Ou, por outro modo, são massacrados e oprimidos por sua existência, em si mesma acachapante e invencível.


Cinismo, conservadorismo, criticismo

Não nós, por certo. A consciência da existência e, acima de tudo, a capacidade de negá-la, ainda que conceitualmente, nos dá como que uma vitória sobre a existência dada, que não tem sobre nós, portanto, o mesmo poder absoluto e avassalador que tem sobre os demais entes. E poder negar conceitualmente a existência ela mesma nos permite da mesma sorte negar uma certa existência dada (vale dizer, uma determinada forma da existência), que para nós igualmente passa a estar destituída desse estatuto de necessidade invencível. É este o ponto no qual passamos de uma consciência meramente perceptiva, constatadora, para uma consciência conceitual. A esse nível da consciência posso chamar crítico, eis que se caracteriza pela faculdade de conceber, para além da existência dada, uma outra existência possível. Essa faculdade passa necessariamente pela admissão de que uma outra existência possível assim concebida tem um estatuto de realidade comparável ao da forma de existência apreendida a partir das circunstâncias meramente constatadas. Trata-se, pois, de uma operação duplamente direcionada: destituir a forma percebida da existência da sua condição de forma por excelência da realidade e atribuir às formas concebidas da existência possível um estatuto de realidade além da mera utopia ou disposição programática. Só com um comparável estatuto de realidade essa existência possível pode, por um lado, estabelecer uma negação válida das formas presentemente dadas e, por outro, ser ela própria negada por estas últimas.

Este ponto é de fundamental importância. Porque se atribuirmos qualquer tipo de proeminência real (ou racional) das formas dadas da existência tenderemos inexoravelmente a crer ou (positivamente) que tudo não passa de uma questão de adaptação e reforma, ou (negativamente) que tudo está irremediavelmente perdido. É nesse ponto que começamos a perder o jogo para a existência dada, que mergulhamos no oceano informe e passivo dos entes inconscientes; que a razão abdica de seu efetivo poder transformador. Aí, se a consciência constata que a realidade que vivemos é repleta de males de todas as ordens, ou (negativamente) estes males são intrínsecos à estrutura da existência dada e nada poderemos fazer a respeito (a não ser salvar-se cada um por si mesmo), ou (positivamente) representam uma deformação acidental da forma presente da existência que circunstancialmente a aparta de sua forma “verdadeira” ou ideal. Daí, estas deformações podem ser revertidas através de uma espécie de ortopraxia, de uma correção de desvios. A primeira forma de acomodação da consciência, conduz, pois, ao cinismo. A segunda, que passa a nos interessar, ao conservadorismo.

O conservador, portanto, não é por definição o inimigo do progresso social, o defensor das mazelas do mundo, o beneficiário consciente e descarado de tudo o que é negativo na forma da existência dada, como freqüentemente queremos fazer crer. Esse é o cínico. O conservador é aquele que acredita que essas negatividades presentes na forma apreendida da existência são fruto de uma deformação da forma ideal da realidade (ou seja, da forma “verdadeira”). O que percebemos existente, portanto, é a realidade. Essa realidade possui uma forma ótima, ideal, que aqui chamamos verdadeira. As formas presentemente dadas apartam-se desse modelo ideal no qual toda negatividade desapareceria, cabendo à consciência descobrir essas deformações e os meios eficazes de corrigí-las. O pensamento conservador, portanto, não é cínico nem amoral. É uma forma válida (ainda que limitada) de consciência que apreende os males encontráveis na forma presentemente dada da existência como acidentais, não essenciais, corrigíveis e procura os meios eficazes de superação dessas mazelas. Não é por outro motivo que o pensamento conservador tende a adotar um discurso de eficiência administrativo-gerencial como forma de enfrentar os problemas do tempo presente, para ele contingenciais e não estruturais. A sua limitação advém, precisamente, de negar às formas possíveis da existência um estatuto de realidade/racionalidade, substituindo por uma forma “verdadeira”; vale dizer, o que separa a existência dada da existência verdadeira ou ideal é de uma natureza estritamente de forma, de conformação.

E eis porque esta forma válida de consciência, conforme frisamos, é limitada em sua capacidade de transformar a forma dada da existência. Porque de duas, uma: (1) ou não pode essa forma “verdadeira” ser estabelecida previamente senão segundo os parâmetros subjacentes às formas presentes da existência; ou (2) será estabelecida segundo parâmetros arbitrários “a priori”, sem compromisso com os dados da experiência e/ou históricos. No primeiro gênero situam-se as utopias políticas e seus consectários; no segundo, as utopias religiosas e quejandas. Num caso ou em outro, ao negar a tudo o que se situa no campo diáfano do não-ser o efetivo estatuto de realidade/racionalidade, a consciência conservadora, em sua manifestação religiosa ou política, está condenada ou a abdicar à conformação da forma dada da existência à forma verdadeira (situando-a, assim, extrinsecamente ao plano histórico, no “outro mundo”, paraíso, nirvana ou o que o valha) ou a trabalhar em abstrações ideais positivas a partir dos dados da forma presente de existência e baseado neles criar seu modelo de “forma verdadeira”. E em ambos os casos, como os adoradores do bezerro de ouro, o pensamento conservador prostra-se reverente à divindade das formas moldadas por suas próprias mãos.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Sabores e saberes

Vejam lá, vocês, como hoje a gente não cessa de deparar, nas mais prosaicas situações, os paroxismos dessa gangrena que vai carcomendo a vida contemporânea. Bem, talvez seja um começo exagerado para o que me proponho tratar, mas gostei de como ficou a frase, e a gente tem sempre que de alguma forma recomeçar do que restou de uma paixão.

O fato é que estava eu há alguns minutos no Ponto Azul, aqui na esquina, saboreando um bifão à milaneza daqueles pingando óleo (só pra fazer gênero, Isaac querido) e tomando a minha meiota geladíssima (que eu só bebo lá, na verdade, por causa dela: detesto longuenéqui, latinha não se presta pra beber sentado e uma inteira costuma comprometer a seqüência da tarde) e estava a tv irremediavelmente ligada passando um comercial da coleção “Folha” da cozinha internacional.

Pausa, no melhor estilo goldenbergueano, para uma triste constatação. As pessoas, antigamente (leia-se, quando eu era moço), ainda costumavam ir ao bar pra prosear. Ia-se ao butiquim muito mais pra jogar conversa fora do que propriamente pra beber; só por isso, aliás, tinha sentido, por exemplo, tomar café fraco, requentado, com mais horas de vôo que piloto de Electra: um bom papo paga, de longe, qualquer gastrite. Mas hoje não há um estabelecimento sequer sob este céu onde o azul é mais azul e uma cruz de estrelas aponta o sul, da mais vagabunda birosca aos empertigadíssimos e abjetos drinking centers, que não tenha nele ligada uma maldita caixinha de fazer doido, e isso graças à invenção da maldita parabólica por Luís Grande e Barbeirinho do Jacarezinho. Essa invasão foi particularmente triste nos rincões do meu Brasil varonil, onde os homens se juntavam no bar, ao fim do dia de trabalho, ou no aguardo da madrugada para o mar, pra falar da vida, das mulheres, das histórias de assombração, do peixe que estava dando. Mas hoje, em 99% das espeluncas onde se entra, vêem-se seres passivos e atônitos, mudas criaturas de braços cruzados, massacradas pelo monturo que os sufoca e que dia a dia só faz aumentar. Se você puxa prosa, nem te ligo e ainda é capaz de fazerem cara feia. E sem conversa, meus amigos, adeus assombração, adeus aquele jeito tal de armar a rede, adeus receita do remédio pra curar o moleque que ficou tossindo em casa.

Mas não era nada disso que eu queria falar hoje. Eu queria era falar da propaganda estulta que sugere que você, mesmo sendo um néscio de pai e mão sobre quem tenha sido Clóvis ou São Luís, o piedoso, ainda que ignorando solenemente a existência de Robespièrre, Napoleão Bonaparte e Zinedine Zidane, a aquisição do exemplar “França” da laureada coleção o tornará incontinenti um grand chef capaz de preparar escargots divinos, ou um cocq au vin de fazer a Brigitte Bardot lhe cair de quatro (não é emocionante a minha erudição em culinária francesa?). Não é de admirar, meus caros, que a coleção em questão seja patrocinada por um dos jornalões que mais se esmera na promoção dessa mentalidadezinha que quer nos fazer crer que tudo é possível, desde que se tenha a “técnica”. Tudo está ao alcance do homem globalizado, mente aberta, leitor da Folha, com acesso à Internet, porque afinal essa coisinha bairrista é coisa dos órfãos do muro. Vocês cariocas, Edu, não estão sozinhos.

E tudo isso me veio à cabeça porque uma prima recém adquirida (a despeito do regime matrimonial de comunhão parcial, alguma incorporação sempre é possível), que anda a “morare” em Portugal, estava em casa por esses dias querendo me convencer que eu posso perfeitamente preparar um arroz de calamares à moda do Porto que ela aprendeu e executa com propalada competência. Mas eu sinceramente não acho possível. A comida seja talvez uma das mais inquebrantáveis formas de expressão de uma cultura. Quando nada mais resiste, cantos, histórias, técnicas de trabalho, os hábitos alimentares ainda perseveram enraizados nas zonas mais profundas da alma humana. Há que se ter vivência pra se preparar um prato. Como é que se pode fazer, meu Deus, um acarajé, sem ter se embriagado do cheiro das ladeiras crocantes do velho centro de Salvador? Sem ter chorado de saudade com um samba do Caymmi, ou sem ter dançado um ponto de Exu? Como se pode preparar uma feijoada sem ter sentido, quando criança, no rosto um carinho de mão negra calejada de trabalho e exalando tempero? Quem consegue fazer um tacacá, se nunca se espremeu embaixo de uma lona de barraca, misturados os cheiros da chuva, do tucupi, do camarão e do suor escorrendo pela testa? Como eu posso fazer um doce de mamão, sem saber de cor um poema de Cora Coralina, sem tê-la visto mexer o seu enorme tacho de cobre no fogão de lenha, na velha casa junto à ponte?

Ainda que tanto sangue portucalense nos corra nas veias, nem toda minha coleção do Eça, nem todo o Pessoa me farão suficientemente luso para que o meu arroz não cheire a simulacro! Adeus, calamares! Nem todos os meus discos do Pepino di Capri me ensinarão a fazer um macarrãozinho decente. Por isso, não me venham com essa de que os melhores sushimen de São Paulo são todos cearenses. No restaurante que eu freqüento, Shimizu San mal consegue dizer “boa noite” em português. Os nordestinos têm no geral notória competência para a culinária, valendo-se, entre outras coisas, de sua espetacularmente diversa experiência de olfato e paladar, numa terra de milhares de diferentes frutas, peixes, temperos. Mas é rigorosamente impossível a um não-japonês fazer um peixe como o do pequeno Sushi Guen. Cearenses, pernambucanos e paraibanos são, sim, insuperáveis pizzaiolos. Mas isso é só a confirmação da regra. Porque, aqui moídos, viram todos genuínos paulistanos. E pizza – pelo menos como a conheço - é a mais paulistana de todas as comidas.

Nunca consegui cozinhar com receita; sempre a intuição me guiou. Se fui mediano na juventude, então, a vida, o sofrimento, as lembranças têm acentuado os sabores que hoje consigo burilar. Perguntando há muitos anos a uma velha iabassê – tão bobo...- aprendi que a gente só sabe que o refogado está no ponto quando começa ter vontade de chorar. Por isso não consigo fazer doce: porque simplesmente não consigo me emocionar. E só sei fazer dignamente: baião-de-dois, rabada, dobradinha, peixada (ou moqueca), feijão, mocotó, ossobuco, língua, camarão com abóbora e carne assada. Posso no limite da honestidade arriscar um pato no tucupi, ou um sarapatel. Passando disso, é enganação. Mesmo que de enganação se possa, ainda, sobreviver.