PARTE I
Não sei se efetivamente é mais assombrosa a existência ou a consciência que dela podemos tomar. Porque é fato que o nada permanece, se pensarmos bem, indiscutivelmente mais plausível. Mas não bastasse o contra-senso primeiro que é existir o universo em geral e as coisas diversas em particular, existimos também nós que podemos não só fazer esta constatação, mas ainda especulativamente negá-la. Diferentemente da infinita maioria dos demais entes que conosco dividem essa aventura existencial, que simplesmente existem e pronto. Ou, por outro modo, são massacrados e oprimidos por sua existência, em si mesma acachapante e invencível.
Cinismo, conservadorismo, criticismo
Não nós, por certo. A consciência da existência e, acima de tudo, a capacidade de negá-la, ainda que conceitualmente, nos dá como que uma vitória sobre a existência dada, que não tem sobre nós, portanto, o mesmo poder absoluto e avassalador que tem sobre os demais entes. E poder negar conceitualmente a existência ela mesma nos permite da mesma sorte negar uma certa existência dada (vale dizer, uma determinada forma da existência), que para nós igualmente passa a estar destituída desse estatuto de necessidade invencível. É este o ponto no qual passamos de uma consciência meramente perceptiva, constatadora, para uma consciência conceitual. A esse nível da consciência posso chamar crítico, eis que se caracteriza pela faculdade de conceber, para além da existência dada, uma outra existência possível. Essa faculdade passa necessariamente pela admissão de que uma outra existência possível assim concebida tem um estatuto de realidade comparável ao da forma de existência apreendida a partir das circunstâncias meramente constatadas. Trata-se, pois, de uma operação duplamente direcionada: destituir a forma percebida da existência da sua condição de forma por excelência da realidade e atribuir às formas concebidas da existência possível um estatuto de realidade além da mera utopia ou disposição programática. Só com um comparável estatuto de realidade essa existência possível pode, por um lado, estabelecer uma negação válida das formas presentemente dadas e, por outro, ser ela própria negada por estas últimas.
Este ponto é de fundamental importância. Porque se atribuirmos qualquer tipo de proeminência real (ou racional) das formas dadas da existência tenderemos inexoravelmente a crer ou (positivamente) que tudo não passa de uma questão de adaptação e reforma, ou (negativamente) que tudo está irremediavelmente perdido. É nesse ponto que começamos a perder o jogo para a existência dada, que mergulhamos no oceano informe e passivo dos entes inconscientes; que a razão abdica de seu efetivo poder transformador. Aí, se a consciência constata que a realidade que vivemos é repleta de males de todas as ordens, ou (negativamente) estes males são intrínsecos à estrutura da existência dada e nada poderemos fazer a respeito (a não ser salvar-se cada um por si mesmo), ou (positivamente) representam uma deformação acidental da forma presente da existência que circunstancialmente a aparta de sua forma “verdadeira” ou ideal. Daí, estas deformações podem ser revertidas através de uma espécie de ortopraxia, de uma correção de desvios. A primeira forma de acomodação da consciência, conduz, pois, ao cinismo. A segunda, que passa a nos interessar, ao conservadorismo.
O conservador, portanto, não é por definição o inimigo do progresso social, o defensor das mazelas do mundo, o beneficiário consciente e descarado de tudo o que é negativo na forma da existência dada, como freqüentemente queremos fazer crer. Esse é o cínico. O conservador é aquele que acredita que essas negatividades presentes na forma apreendida da existência são fruto de uma deformação da forma ideal da realidade (ou seja, da forma “verdadeira”). O que percebemos existente, portanto, é a realidade. Essa realidade possui uma forma ótima, ideal, que aqui chamamos verdadeira. As formas presentemente dadas apartam-se desse modelo ideal no qual toda negatividade desapareceria, cabendo à consciência descobrir essas deformações e os meios eficazes de corrigí-las. O pensamento conservador, portanto, não é cínico nem amoral. É uma forma válida (ainda que limitada) de consciência que apreende os males encontráveis na forma presentemente dada da existência como acidentais, não essenciais, corrigíveis e procura os meios eficazes de superação dessas mazelas. Não é por outro motivo que o pensamento conservador tende a adotar um discurso de eficiência administrativo-gerencial como forma de enfrentar os problemas do tempo presente, para ele contingenciais e não estruturais. A sua limitação advém, precisamente, de negar às formas possíveis da existência um estatuto de realidade/racionalidade, substituindo por uma forma “verdadeira”; vale dizer, o que separa a existência dada da existência verdadeira ou ideal é de uma natureza estritamente de forma, de conformação.
E eis porque esta forma válida de consciência, conforme frisamos, é limitada em sua capacidade de transformar a forma dada da existência. Porque de duas, uma: (1) ou não pode essa forma “verdadeira” ser estabelecida previamente senão segundo os parâmetros subjacentes às formas presentes da existência; ou (2) será estabelecida segundo parâmetros arbitrários “a priori”, sem compromisso com os dados da experiência e/ou históricos. No primeiro gênero situam-se as utopias políticas e seus consectários; no segundo, as utopias religiosas e quejandas. Num caso ou em outro, ao negar a tudo o que se situa no campo diáfano do não-ser o efetivo estatuto de realidade/racionalidade, a consciência conservadora, em sua manifestação religiosa ou política, está condenada ou a abdicar à conformação da forma dada da existência à forma verdadeira (situando-a, assim, extrinsecamente ao plano histórico, no “outro mundo”, paraíso, nirvana ou o que o valha) ou a trabalhar em abstrações ideais positivas a partir dos dados da forma presente de existência e baseado neles criar seu modelo de “forma verdadeira”. E em ambos os casos, como os adoradores do bezerro de ouro, o pensamento conservador prostra-se reverente à divindade das formas moldadas por suas próprias mãos.
É, meu cumpadre, por essas e por outras que o companheiro Italo Calvino escreveu:
ResponderExcluir"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."
de "Cidades Invisíveis"
Meu querido cumpadre: em primeiro, que bom saber que alguém teve saco de ler isto aqui.
ResponderExcluirEste texto é (ou seria) o início de uma série que tem por finalidade tentar justificar um tanto mais demoradamente toda uma ampla gama de posições assumidas, brigas compradas, posturas, opiniões, hábitos que muitas vezes podem parecer a quem vai pegando algo aqui ou acolá como "estar fazendo gênero", "gostar de ser diferente", "polêmica pela polêmica" etc. Isso abrange da política à música, da religião ao butiquim, da família ao trabalho e por aí vai.
Você, com a inteligência sagaz que lhe é característica, sacou brilhantemente o fim do filme! O companheiro Calvino, em uma frase, me economizou uns quatro meses de filosofia de segunda classe. Obrigado.