segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Triste pierrô, se transformou em saudade


 Era uma tarde de 1986 ou 87. De domingo, muito provavelmente. Já tinha passado ali outras vezes e me chamava atenção o violão na parede. Nesse dia não estava na parede: um barbudo de poucos sorrisos o tocava numa mesa com umas cinco ou seis pessoas entorno. A birita corria solta. Retive a vaga impressão de que o ambiente estava meio escuro, como se o bar não estivesse propriamente aberto. Mas estava – a porta, pelo menos - e entrei. E a minha vida não foi mais a mesma. Era, então, um garoto estranho, precoce em tantas coisas, atrasado em outras, de gosto singular e uma obstinação por três ou quatro assuntos que me interessavam, nada mais. Um deles, a música brasileira. Na qual mergulhei, fucei, cavei, escarafunchei, me perdi e me achei. Me perdi na solidão de não ter com quem compartilhar a sede de conhecer, as descobertas – com a exceção salvadora de meu avô - as tardes perdidas em saletas velhíssimas do velho Centro paulistano, em companhia de outros obstinados, em média 40 ou 50 anos mais velhos. E me achei naquela tarde de domingo.

O bar era o Bom Motivo, esquina de Deputado Lacerda Franco com Inácio Pereira da Rocha, naquela parte de Pinheiros que acabou depois simbolicamente engolida por uma Vila Madalena temática que então nem sonhava em nascer: era mesmo só uma vila de pés sujos, casario modesto, campos de várzea e conjuntos habitacionais. Mesmo ali embaixo, onde já pontificavam bastiões como o Bar da Virada e o Vou Vivendo, ninguém podia imaginar a explosão de vinte anos depois. Ali o menino se “desestranhou”, ganhou casa e uma família; ficou sendo o caçulinha (minto: Roberta Valente é 13 dias mais nova!) de um monte de irmãos também esquisitos, também apaixonados, também desalojados de antemão de um mundinho que agonizava. Como agonizava também – não sabíamos - a boemia cevada a música, álcool e tertúlia, fraternidades cosidas pelo fio da solidão.

O barbudo tocador era o comandante-em-chefe do furdunço, Roberto Lapiccirella. Temperamental, curioso, inteligentíssimo, mal-humorado, empreendedor, charmoso, debochado, imensamente carismático, era o elo fundamental, a liga da massa, o aglutinador por excelência de tudo e todos que gravitavam em volta da saudosa esquina. Não sei se por ser o mais esquisito, o mais maluco, o mais bebum, o mais apaixonado, ou se provavelmente por tudo isso junto, com ele me identifiquei tremendamente, de sorte que foi virando uma espécie de guru, de irmão mais velho de verdade. Gostava de mim. (Como brilharam seus olhos no dia em que descobriu que eu tinha a gravação do “Pé de Anjo” do Sinhô, primeira de Francisco Alves, que ela andava atrás havia tempos!...) Muito pelo papo da música, que rolava sempre solto, eu sempre muito mais aprendendo, mas bastante também pela minha então proverbial e precoce resistência boemia – porque acompanhá-lo não era pra qualquer um!

E nesse final dos 80 o bar foi virando um ponto nevrálgico dos gostadores da música brasileira. E foi tanto o sucesso, tanto o movimento, tanta a gente, que o Roberto desgostou: ia escasseando o espaço para o encontro dos amigos, para o violão na mesa, a informalidade e o descompromisso. Daí nasceu, a cinquenta metros dali, a Choperia - ou “o dois”, como alguns chamávamos.

E a farra ficou completa. Virou casa, de verdade, a ponto de, num tempo pré-celular, ter anotado o telefone do bar no verso do meu cartão de visita. Dizia-se que a gente não pagava a conta, pagava o aluguel: largava ali, em média, setenta por cento do meu salário – os outro trinta deixava no Pé pra Fora. Mas como valia...! O Clube da Seresta, que conhecia de outros carnavais, ancorou ali nas quartas-feiras; finda a função, formava-se a roda, violão passando de mão em mão – e foi aí que resolvi aprender a tocar. Até altas, altíssimas (pra não dizer que diversas vezes, sol raiado, expulsos todos do bar, inclusive o próprio Roberto, íamos pra casa dele e o caldo entornava geral, coisa de se chegar em casa 10, 11 horas da matina...). Ali me aproximei dos mestres que desde muito via tocar de longe, sem coragem de chegar junto: Carlos Poyares, João Macacão, Otávio, Zequinha do Pandeiro, Joãozinho Torto, João Malhado, Tigrão. Ali bebi e convivi com ídolos em seus crepúsculos, gente do tamanho de Zé Ketti, Jorge Costa, Victor Simon, Maugeri Sobrinho, e vi raiar Ney Mesquita, Mônica Salmaso, Ibys Maceió, Carmem Queiroz. Ali conheci parceiros-irmãos como Helinho Guadalupe, Cebolinha, Valtinho do Violão, e recebi meu primeiro cachê como cantor. Ali a cabeça inquieta de Roberto ia gestando e gerando suas obras fundamentais: os shows-homenagem e os preciosos livretos; o livro das Marchinhas de Carnaval (hoje clássico) e o Bando da Rua; o Brócole Carnavalesco Bom Motivo, que saía pelas ruas do bairro, sem cordão, sem equipamento, sem carro, sem alvará nem CET, com duas dúzias de bebuns fantasiados invadindo os bares, artilharia pesada de confetes e serpentinas, cantando as velhas marchinhas, os sambas antiquíssimos, dançando com garçom, sentando em colo de cliente... Quem viu, viu.

Com Roberto aprendi que a música só precisa ser cantada pra não morrer. Aprendi o valor do artista que se acompanha, que sozinho faz o espetáculo e a festa. Aprendi que o Carnaval não se faz com aparato nem dinheiro, mas com paixão, descontração e espírito folião. Aprendi que a pesquisa por ela mesma não é nada, se o conhecimento produzido não for compartilhado, não gerar memória, não fizer reviver - e sobreviver. Aprendi muito da dureza de se conciliar paixão, descontração e descompromisso com sobrevivência. Aprendi da importância de ter quem faça acontecer. E sei que se hoje canto, se alguma coisa pude e posso ainda fazer para que o tesouro maravilhoso da música brasileira, do qual somos fiéis depositários, vá sobrevivendo pelas beiradas da indiferença-geral da República, é muitíssimo graças a ele. 

E quem sabe se porque aquilo tudo tenha sido tanto pra tanta gente, e porque girasse tanto em torno da figura ímpar do nosso bom Lapica, tenhamos sido todos tão pegos de calças curtas nesse 7 de agosto que passou. Talvez até menos pela surpresa ordinária que uma morte precoce sempre carrega. Mais, quero crer, pela consciência tão repentina quanto acachapante do tamanho que aquilo tinha e tem em nossas vidas. E pelo lugar outro que, irremediavelmente, agora passará a ocupar. De tal sorte que as despedidas costumeiras, as solenidades e rituais ordinários com que modernamente destratamos a morte não tenham sido suficientes pra extravasar o nó que não conseguíamos disfarçar. E é por isso que convoco aqui, para um gurufim imaginário, regado a muuuita música e muuuito pileque, onde quer que estejam, neste ou em outros mundos: Isabel, Tânia, Danilo, Carlão, Valderez, Alice, Olavo, Roberta, Babica, Chico Médico, Mário Mammana, Valtinho, Ney Mesquita, Silvana, Railídia, Marcão, João Paulo, Armando, Ian Clayton, Ibys Maceió, Maurício Anacleto, Josias, Carminha, Carlos Renato, Meirinha, Ademir, Giba, Mariângela, Fabinho, Carlos Poyares, Fauze, Lineu, Jair, Ildo, Tião Preto, Dutra, Marilena, Gustavo, Normian, Gastão, Marília, Cidão 7 Cordas, Otávio, Pereirinha, Percy, Marco Paulo, João Malhado, Zé Ketti, Jorge Costa, Helinho, Cebola, Simon, Maugeri e quem mais resolver chegar. Vamos beber, tocar violão, cantar o “Bom dia, café!”, a “Ressureição dos velhos carnavais” e o “Choro em prelúdio”. Vamos sair pelas ruas e invadir os bares pra mostrar o que aprendemos. E pra dizer que ainda teimaremos um pouco mais em não morrer completamente.