O bar era o Bom Motivo,
esquina de Deputado Lacerda Franco com Inácio Pereira da Rocha,
naquela parte de Pinheiros que acabou depois simbolicamente engolida
por uma Vila Madalena temática que então nem sonhava em nascer:
era mesmo só uma vila de pés sujos, casario modesto, campos de
várzea e conjuntos habitacionais. Mesmo ali embaixo, onde já
pontificavam bastiões como o Bar da Virada e o Vou Vivendo, ninguém
podia imaginar a explosão de vinte anos depois. Ali o menino se
“desestranhou”, ganhou casa e uma família; ficou sendo o
caçulinha (minto: Roberta Valente é 13 dias mais nova!) de um
monte de irmãos também esquisitos, também apaixonados, também
desalojados de antemão de um mundinho que agonizava. Como agonizava
também – não sabíamos - a boemia cevada a música, álcool e
tertúlia, fraternidades cosidas pelo fio da solidão.
O barbudo tocador era o
comandante-em-chefe do furdunço, Roberto Lapiccirella.
Temperamental, curioso, inteligentíssimo, mal-humorado,
empreendedor, charmoso, debochado, imensamente carismático, era o
elo fundamental, a liga da massa, o aglutinador por excelência de
tudo e todos que gravitavam em volta da saudosa esquina. Não sei se
por ser o mais esquisito, o mais maluco, o mais bebum, o mais
apaixonado, ou se provavelmente por tudo isso junto, com ele me
identifiquei tremendamente, de sorte que foi virando uma espécie de
guru, de irmão mais velho de verdade. Gostava de mim. (Como
brilharam seus olhos no dia em que descobriu que eu tinha a gravação
do “Pé de Anjo” do Sinhô, primeira de Francisco Alves, que ela
andava atrás havia tempos!...) Muito pelo papo da música, que
rolava sempre solto, eu sempre muito mais aprendendo, mas bastante
também pela minha então proverbial e precoce resistência boemia –
porque acompanhá-lo não era pra qualquer um!
E nesse final dos 80 o
bar foi virando um ponto nevrálgico dos gostadores da música
brasileira. E foi tanto o sucesso, tanto o movimento, tanta a gente,
que o Roberto desgostou: ia escasseando o espaço para o encontro dos
amigos, para o violão na mesa, a informalidade e o descompromisso.
Daí nasceu, a cinquenta metros dali, a Choperia - ou “o dois”,
como alguns chamávamos.
E a farra ficou
completa. Virou casa, de verdade, a ponto de, num tempo pré-celular,
ter anotado o telefone do bar no verso do meu cartão de visita.
Dizia-se que a gente não pagava a conta, pagava o aluguel: largava
ali, em média, setenta por cento do meu salário – os outro trinta
deixava no Pé pra Fora. Mas como valia...! O Clube da Seresta, que
conhecia de outros carnavais, ancorou ali nas quartas-feiras; finda a
função, formava-se a roda, violão passando de mão em mão – e
foi aí que resolvi aprender a tocar. Até altas, altíssimas (pra
não dizer que diversas vezes, sol raiado, expulsos todos do bar,
inclusive o próprio Roberto, íamos pra casa dele e o caldo
entornava geral, coisa de se chegar em casa 10, 11 horas da
matina...). Ali me aproximei dos mestres que desde muito via tocar de
longe, sem coragem de chegar junto: Carlos Poyares, João Macacão,
Otávio, Zequinha do Pandeiro, Joãozinho Torto, João Malhado,
Tigrão. Ali bebi e convivi com ídolos em seus crepúsculos, gente
do tamanho de Zé Ketti, Jorge Costa, Victor Simon, Maugeri Sobrinho,
e vi raiar Ney Mesquita, Mônica Salmaso, Ibys Maceió, Carmem
Queiroz. Ali conheci parceiros-irmãos como Helinho Guadalupe,
Cebolinha, Valtinho do Violão, e recebi meu primeiro cachê como
cantor. Ali a cabeça inquieta de Roberto ia gestando e gerando suas
obras fundamentais: os shows-homenagem e os preciosos livretos; o
livro das Marchinhas de Carnaval (hoje clássico) e o Bando da Rua; o
Brócole Carnavalesco Bom Motivo, que saía pelas ruas do bairro, sem
cordão, sem equipamento, sem carro, sem alvará nem CET, com duas
dúzias de bebuns fantasiados invadindo os bares, artilharia pesada
de confetes e serpentinas, cantando as velhas marchinhas, os sambas
antiquíssimos, dançando com garçom, sentando em colo de cliente...
Quem viu, viu.
Com Roberto aprendi que a música só precisa ser cantada pra não morrer. Aprendi o valor do artista que se acompanha, que sozinho faz o espetáculo e a festa. Aprendi que o Carnaval não se faz com aparato nem dinheiro, mas com paixão, descontração e espírito folião. Aprendi que a pesquisa por ela mesma não é nada, se o conhecimento produzido não for compartilhado, não gerar memória, não fizer reviver - e sobreviver. Aprendi muito da dureza de se conciliar paixão, descontração e descompromisso com sobrevivência. Aprendi da importância de ter quem faça acontecer. E sei que se hoje canto, se alguma coisa pude e posso ainda fazer para que o tesouro maravilhoso da música brasileira, do qual somos fiéis depositários, vá sobrevivendo pelas beiradas da indiferença-geral da República, é muitíssimo graças a ele.
E quem sabe se porque
aquilo tudo tenha sido tanto pra tanta gente, e porque girasse tanto
em torno da figura ímpar do nosso bom Lapica, tenhamos sido todos
tão pegos de calças curtas nesse 7 de agosto que passou. Talvez até
menos pela surpresa ordinária que uma morte precoce sempre carrega.
Mais, quero crer, pela consciência tão repentina quanto acachapante
do tamanho que aquilo tinha e tem em nossas vidas. E pelo lugar outro
que, irremediavelmente, agora passará a ocupar. De tal sorte que as
despedidas costumeiras, as solenidades e rituais ordinários com que
modernamente destratamos a morte não tenham sido suficientes pra
extravasar o nó que não conseguíamos disfarçar. E é por isso que
convoco aqui, para um gurufim imaginário, regado a muuuita música e
muuuito pileque, onde quer que estejam, neste ou em outros mundos:
Isabel, Tânia, Danilo, Carlão, Valderez, Alice, Olavo, Roberta,
Babica, Chico Médico, Mário Mammana, Valtinho, Ney Mesquita,
Silvana, Railídia, Marcão, João Paulo, Armando, Ian Clayton, Ibys
Maceió, Maurício Anacleto, Josias, Carminha, Carlos Renato,
Meirinha, Ademir, Giba, Mariângela, Fabinho, Carlos Poyares, Fauze,
Lineu, Jair, Ildo, Tião Preto, Dutra, Marilena, Gustavo, Normian,
Gastão, Marília, Cidão 7 Cordas, Otávio, Pereirinha, Percy, Marco
Paulo, João Malhado, Zé Ketti, Jorge Costa, Helinho, Cebola, Simon,
Maugeri e quem mais resolver chegar. Vamos beber, tocar violão,
cantar o “Bom dia, café!”, a “Ressureição dos velhos
carnavais” e o “Choro em prelúdio”. Vamos sair pelas ruas e
invadir os bares pra mostrar o que aprendemos. E pra dizer que ainda
teimaremos um pouco mais em não morrer completamente.