quarta-feira, 4 de junho de 2014

Credo

(para Antonio Nóbrega)



O Brasil em que eu acredito não é esse senhor carrancudo que, alquebrado pelas amarguras – reais, realíssimas! - da existência, põe-se esculhambar aqueles tantos que fazem da festa a sua maneira de reinventar a vida. Porque é esse também um jeito de não sucumbir à vergasta quotidiana. Reinventar a vida pela festa é dar existência, ainda que efêmera, ainda que tão sutil, a uma outra ordenação do mundo, destituída da mácula da opressão, as dores todas ressignificadas. É postular que tudo o que está aí, do jeito que está aí, não precisa ser necessariamente desse jeito; de que há uma outra existência tão possível, tão real quanto esta.

O Brasil em que eu acredito é um dos sonhos mais bonitos que a Humanidade já sonhou: que era uma vez um lugar habitado por povos tão diversos como as estrelas do céu. Para onde vieram, certo dia, viajantes de um mundo tão outro, de costumes tão outros, dispostos a construir uma nova morada. Viajantes que arrastaram consigo para esse lugar, contra a sua vontade, mais um sem número de povos outros, numerosos e diversos como as areias da praia. E que, uma vez vindos, tais viajantes trouxeram na rebarba de suas boas e más intenções, tanto aos nativos do lugar como aos que arrastaram consigo, seiscentos e uma luas de muitas dores, mortes, sofrimentos e destruição. Mas exposto a todo esse caudal de martírios, ao invés de ver brotar cidades cinzentas a transbordar de ódio e ressentimento, esse estranho lugar gerou jardins floridos de tolerâncias e entendimentos, com flores de uma malemolência brejeira, bailando bailados nunca imaginados, embaladas pela música mais bela que jamais se ouviu.

Mas um certo dia pragas horrendas se puseram a assolar o jardim com o qual a Humanidade sonhava. E as pestes se valeram das fraquezas tantas que habitaram desde sempre o seio desse jardim forjado e fornido entre dores tantas, entre precariedades também tantas. E cresceram. E se alastraram. E as flores começaram a desistir de bailar seu bailado espontâneo à brisa morna das manhãs ensolaradas, desacreditadas do poder de sua beleza.

Na hora em que todos aqueles que nos obstinamos em sonhar um sonho tamanhamente possível nos vemos arrastados de nossas redes e nossas varandas ao meio da rua da amargura e da sofreguidão, atirado às nossas faces o libelo terrível - de incensarmos e cultivarmos uma ordem outra, de festas e músicas, brinquedos e bailados, delicadezas e sabidices, preguiças e jeitinhos - eu rezo.

Rogo e imploro ao Anjo Barroco do Brasil: devolve-nos a incerteza de tuas pernas garruchas! Ensombreia as claridades das arenas arquivisíveis com as tortuosidades de seus caminhos tecidos pelos gramados esburacados. Deus que andou pelas esquinas, abre caminhos improváveis por entre as retrancas da amargura, das eficiências e estratégias. Reciviliza teu povo, esquecido da alegria, da molecagem e da mandinga. Ensina de novo aos teus filhos os olhos de se perder no céu escuro, pontilhado de não-caminhos, prenhe de desvãos. E desvia-nos da obsessão da luz, que, como advertira o poeta, nos trouxe às portas do inferno.

Amém.