Alguém melhor antes de mim já disse que o carnaval é um tempo de inversões. É certo que a idéia de inversão pode ter uma série de possibilidades, de virar de ponta-cabeça, de passar uma imagem do positivo para o negativo, de alterar a ordem etc. Confesso que me dá calafrios imaginar no que daria o Brasil de hoje se simplesmente a gente pegasse essa barafunda (no mau sentido) e saísse por aí “invertendo” aleatoriamente. Mas não estou pra teorias e, ainda bem, o carnaval não tem nada de aleatório; tem, na verdade, uma Razão superior que o guia, ainda que não seja essa razãozinha mesquinha e impertigada que nos querem fazer descer pela goela há uns quinhentos anos. É a Razão coletiva de um povo, de um grande povo, norteada pelo encontro e pela possibilidade, pela entrega e pelo encanto. Capitaneada, é claro, pelo Senhor de todos os caminhos.
O grande Luiz Antonio Simas, o maior amigo que ainda não conheci, escreveu dia desses no seu absolutamente indispensável Histórias do Brasil sobre a bobagem e inutilidade de se colocar nas ruas do Rio as tropas, o Exército, a força (risos) nacional de segurança (mais risos - notem como ando goldenbergueano!), o diabo que os carregue. Advogava ali o velho historiador que a solução para garantir a paz era colocar na rua permanentemente o Cordão da Bola Preta. E eu posso testemunhar, com a autoridade de dezoito carnavais, que em meio a multidão de gente espremida e ébria NUNCA, JAMAIS, EM TEMPO ALGUM vi sequer um tapa na cara. Vi, ao contrário, encoxada na mulher do próximo, que normalmente daria defunto, ser resolvida pelo “proprietário da mercadoria” com a seguinte frase: “Aê, merrmão, aqui no nosso buteco a coxinha ainda não tá liberada. Mas se quiser chegar na cerveja...” Eu juro. O maridão meteu a mão na bolsa, sacou duma lata gelada e saiu abraçado bebendo com o tirador de casquinha.
Como essas eu já andei contando várias, por aqui e pelos butiquins menos virtuais. Mas nenhuma se equiparou, verdadeiramente, à mais bem sucedida ação revolucionária de abolição do modo capitalista de produção, de dar inveja a qualquer Fidel ou Ho Chi Min. Vou contar, saldando, aliás, uma dívida ancestral.
Final de desfile do Bola, coisa de meio-dia e meia, uma hora da tarde (vejam vocês...). O ano devia ser 1991, ou 92. Nesse tempo da minha mocidade, o glorioso Cordão entrava ainda, com suas sete ou oito mil pessoas, pela Rua da Carioca, onde se dava o melhor da festa, até “acabar” na Praça Tiradentes. Acabar vai assim, entre aspas, porque era a partir daí que a coisa realmente começava a desandar. Desobrigados todos de suas sacras obrigações de folião, a bebedeira comia solta na Praça e nos seus arredores. Minto. Comia solta em todo o trecho do desfile, porque mesmo antes do fim iam parando uns aqui e outros ali e depois da “apoteose” os que vinham voltando se juntavam e assim caminhava. Pois bem. Nesse ano, entramos eu e um amigo (há testemunhas! Há testemunhas!) num buteco apinhado de gente, na esquina de Carioca com a Praça. A coisa estava caótica. O português, descostumado com a multidão em seu estabelecimento, que só enchia uma vez por ano, não conseguia minimamente dar operacionalidade à distribuição dos víveres imprescindíveis para a manutenção das tropas . E o pior é que não havia muitas opções pra se beber chope por ali (O Bar Luís, por exemplo, não abria em dia de Bola, vejam vocês...). Levava tanto tempo conseguir um tulipinha, que pedíamos os para nós dois chopes em números pares: quatro, seis, oito, conforme ia aumentando o intervalo entre cada passada do garçom. E todo vez que chegava a preciosa seiva, meu amigo se punha a gritar, bem embaixo do escudo do Vasco, no melhor estilo Sucupira: “Morra Eurico Miranda, filho de uma égua!”
Aí, meus amigos, deu-se o inacreditável. Num determinado momento, o português, bandeja de chope em riste, se esgoelava chamando o garçom que, a léguas de distância, não ouviria nem que sua tuberculose já estivesse em grau de hemoptise. Foi quando um cidadão, encastelado no balcão, tomou a bandeja do galego e berrou pro cara que estava na mesa de trás: “desova na sete!”. E o que se viu foi o buteco virar um pequeno Maracanã, a bandeja transformada numa daquelas bandeiras que se abrem deitadas na arquibancada, passeando pelo alto, de mão em mão, a coletividade automática e espontaneamente atendendo ao imperativo superior, até ser recebida na mesa certa com vibração maior do que gol aos 40 do segundo tempo! E pra quê? Percebendo que esse sistema de distribuição seria infinitamente mais efetivo do que os atônitos dois garçons a atender uma orda de bebedores insaciáveis, as bandejas passaram a ser sequestradas uma após a outra. Como o saloio naturalmente protestasse que não tinha como controlar o que era servido pra quem, um gordo suado imediatamente passou pro lado de dentro do balcão, ocupando o setor das comandas e organizando as “redes” de distribuição, que passaram a funcionar na base do adiantado. Atônito, mas visivelmente satisfeito com o grau de eficiência do sistema implantado, o nobre vascaíno nem teve forças pra protestar quando uma simpática senhora de lenço na cabeça (eu poderia dizer que havia bobes, mas a memória me trai e não quero correr o risco da mínima falta com a absoluta e estrita verdade dos fatos) assumiu o caixa, recebendo, fazendo troco.
Isso, meus caros, em questão de minutos. O português encostou-se na boqueta que dava pra cozinha e dali passou a tudo observar rigorosamente calado. Minto. Vi-o umas duas vezes franzindo os bigodes e abanando a mão para a filha desesperada que virava e mexia aparecia na porta da cozinha: “deixa, ó pá!”. Um dos garçons - eu posso garantir por essa terra que me há de comer! - encostou a uns dois metros de onde a gente estava e já livre da gravatinha borboleta e dos pudores servis aceitava as tulipas que a rapaziada teimava em lhe pagar. E assim bebeu-se por uma boa parte da tarde.
Respondam, queridos: é ou não é o socialismo?
Boa! Veja que bela história escreveram ano passado lá na Agenda.
ResponderExcluirSzegeri, estou encantado com a filha do português. Esse " deixa,ó pá" tem para mim, desde já, a mesma dimensão de um "Não Passarão", "Socialismo ou Morte" ou coisa que o valha. É, falo convicto, um bordão libertador que adotarei, com a sua devida permissão.
ResponderExcluirGrande abraço.
Sze, quase chorei lendo essa história. Obrigado, mano velho. EU VI A MESMA COISA, não lembro em que botequim, sem uma ou outra cena, mas lá estavam as bandejas levadas de mão em mão e o garçom à vontade pegando de volta (e bebendo também). Beleza!
ResponderExcluirMalandro, peço licença pra chegar na tua área e deixar aqui meu primeiro comentário.
ResponderExcluirParabéns pela escrita fascinante.
Agora, uma pergunta. Tu sabes se o velho portuga voltou a abrir o bar em dia de bola preta? Baita curiosidade...
Um abraço!
Mano Szegeri: veja você que troço inédito, sinal dos tempos. Estava eu com a Maracanã em Volta Redonda, esse final de semana, quando ela me disse:
ResponderExcluir- Você viu que lindo o Fernando escreveu sobre o Simas?
Eu não tinha visto. Vi agora.
E anote, camarada: quando acontecer aquela mesa que eu prevejo (eu, você, Simas, Rodrigo Folha Seca, Fefê, Prata, Bruno Ribeiro, os nossos, os nossos, alguma coisa vai mudar no planeta, malandro!
Até porque rezaremos, durante a tarde/noite, a oração que o Simas ora quando viaja!
Beijo.
Paulo: Eu contei duas no texto, mas há muitas outras, algumas a gente lembra, outras ficam para sempre submersas na ebriedade coletiva. Uma das melhores é a do caminhão que queria entrar pelo meio do bloco na Rua da Carioca. Já contei em algum lugar, acho que na Agenda mesmo, mas não há meios de eu me lembrar (a idade...). Mas vale o repeteco, vou ver se conto por aqui.
ResponderExcluirVelho Simas: você não precisa me pedir permissão para nada. Não fosse pelo todo mais, ao menos por sagrada hierarquia.
Dinda: será que era o mesmo bar??? Acho mesmo é que a revolução se espalha...
Diego: Chegue a vontade, já te vi "por aí", no Simas, no Buteco. Olha, eu sinceramente até uns tempos atrás ainda sabia direitinho qual era o bar. Depois a lembrança se esvaneceu. Preciso pintar na área pra tirar a dúvida.
Edu: meu irmãozinho, precisamos organizar isso logo! Nesse dia, querido, os Meninos Despedaçados se erguerão e cantarão um cântico que NUNCA foi ouvido, para abalar os céus e a terra (tinha me prometido não falar disso, mas a dor tá me doendo demais...). Diga, se não, ó grande Simas???
Posso chegar nessa mesa?
ResponderExcluirolha eu aqui de novo, invejando a amizade masculina.
ResponderExcluirÉ cumpadre,
ResponderExcluirO bordão lusitano, que Simas sabiamente adotou, também me lembra de uma certa "Menina de Lá", de Guimarães Rosa, que, nessas horas, do alto da sabedoria de seus 6 aninhos, costumava dizer:
- Deixa, deixa...
E quanto à existência... veja lá o comentário!
Abraços de estréia nesse blog dolorosamente hilário,
Eric.
Bem vindo, compadre... Bela e dolorosa lembrança roseana. De uma história que só não é mais triste que a morte do irmãozinho do Miguilim. Ou que as histórias duramente reais com as quais temos que inaugurar cada manhã.
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