quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007
Divagações cinerárias
A verdade, meus amigos, é que o folião é, acima de tudo, um altivo. Daquela altivez de que nos fala Pièrre Verger ao observar que Pai Balbino, um humilde vendedor de quiabos na feira de Água dos Meninos, portava-se com a dignidade de um rei, por ser filho de Xangô. Daquela soberba que nos percorre o corpo e a alma depois de uma noitada boa de amor, ao encontrar de manhã no elevador a vizinha carola do 1201.
O folião, na quinta, sexta-feira que precedem os dias de Carnaval, encara as pessoas na rua, no ânibus, com uma acachapante superioridade. Tem pena de seu patrão, despreza o seu senhorio. Ele sabe, no seu íntimo, que a cidade lhe pertence, que as coisas na verdade não são como parecem na maioria dos dias; que a superioridade que o capataz lhe cospe reitaradamente às faces é uma ilusão que lhe custará caro. São chegados os dias em que tudo assume a sua feição verdadeira, em que as máscaras cinzentas que foram impostas à realidade são impiedosamente arrancadas. Essa efêmera mas irrefutável prova sobre o verdadeiro estatuto das coisas lhe propicia um inexprimível sentimento duplo de superioridade: por ter consciência desta realidade e por saber-se o senhor livre e soberano de seu próprio destino.
É por isso que ao folião repugnam as insuportáveis pessoas que simplesmente ignoram o Carnaval. Não as que o odeiam. Ele compreende que para os que se arvoram em donos das coisas e dos destinos nos outros trezentos e sessenta e um dias, a visão crua da realidade absolutamente diversa lhes seja insuportável. Aos que francamente detestam o Carnaval o folião responde com um sorriso de aviso: não tentem interferir no desvelamento essencial desses dias; contenham-se nos limites da sua mentira. Mas aos que ignoram o Carnaval, que estampam em suas faces lânguidas e mortas a sua estupidez indiferente, o folião devota, muito mais que piedade, um ódio secreto, um desprezo absoluto pela incapacidade de exercerem um atributo tão fundamental e tão simples de sua humanidade.
Bola Preta
Reiterando o costume já quase vintaneiro, estive sábado acompanhando o Cordão da Bola Preta na minha amada cidade do Rio de Janeiro. E só agora consigo perceber o sentido profundo da transformação que pude acompanhar nessas duas décadas.
O Bola Preta representava em 1989, quando saí pela primeira vez, uma centelha de esperança do Carnaval de rua do Rio, que se reduzia a uma dúzia de bandas e blocos resistentes, esses últimos já bem contaminados de uns bobos formalismos estruturais que deturpavam o caráter da manifestação que se devia definir pela espontaneidade: disputa de samba, desfiles intermináveis ao som de uma única música, camiseta etc. O espírito da brincadeira popular regrada tão somente pela disposição foliã confinava-se no velho Cordão, com seus seis, sete mil brincantes.
Hoje são duzentas, trezentas mil pessoas que nem propriamente compõem o desfile, mas que se apinham pelas ruas repletas de gente, simplesmente para se integrar no espírito coletivo da farra, da festa, da música, da galhofa. O Bola Preta tornou-se a celebração máxima e necessária da indentidade da cidade do Rio de Janeiro, do espírito da carioquice, que se traduz na brincadeira, na espontaneidade, na gozação, no jogo de cintura, no bate-papo. Ao verdadeiro carioca impõe-se o dever de peregrinar uma vez por ano ao santuário sagrado onde repousam as relíquias de uma cultura maravilhosa, protótipo de um país que nos propusemos historicamente a construir e que segue soterrado pelos escombros da ganância dos espoliadores de sempre. Por enquanto. Daquele altar sagrado e da imolação coletiva que sobre ele se oferece em honra de uma outra existência possível jorra a seiva que nutre as nossas esperanças.
Quem já presenciou ou sabe o que o Círio de Nazaré representa para um paraense entenderá perfeitamente a imagem que procuro construir. Muito mais que uma festa religiosa, acima e independentemente das variadíssimas formas e sentimentos em relação ao divino, a celebração coletiva da identidade de um povo é ela mesma sagrada. Por isso o paraense que não pode ir a Belém no segundo domingo de outubro sente-se um exilado. Por isso, esteja onde estiver, o paraense de escol dá seu jeito de tomar açaí, comer pato no tucupi. Sozinho ou, de preferência, encontrando outro paraense, vai encher a caveira, telefonar pros parentes, colocando logo cedo pra tocar um disco velho do Pinduca.
Assim se sente um verdadeiro carioca, de nascimento ou de coração, quando, por qualquer circunstância, se vê impedido de estar vagando perdidamente pelas ruas do centro do Rio no sábado de carnaval, o dia mais importante e mais carioca do ano, muito além de qualquer 20 de janeiro ou 1º de março. Assim compreendeu sempre meu velho Tio Osias, o maior carioca que conheço. E compreender hoje o velho me emociona e me comove muito além de qualquer distância.
O povo ama o Carnaval
Na base da autorização judicial, deu-se enfim o baile de rua da Terça-feira Gorda enchendo a pequenina rua de marchas, sambas, confetes e fantasias como, sinceramente, nunca vi e não imaginaria possível. Um encontro tão improvável como absolutamente real e necessário de todas as idades, todas as procedências, todas as condições. Velhinhos e crianças, pobres e ricos, o Centro e a Periferia se entupindo de música e serpentina, nostalgia e esperança. Quem viu, viu.
Tenho sempre aqui batido na tecla da incompatibilidade desta triste cidade com o espírito do Carnaval. Ela é aparentemente feita para os seus pretensos senhores desfilarem seus automóveis, construírem os bastiões onde encastelam sua ignorância soberba, para não serem molestados por essa desagradável e incômoda ocorrência chamada vida. Mas o povo desta cidade é um povo bom e generoso, que sofre demais por ver sua alma brasileira reiteradamente acabrunhada pelos iludidos da ordenada mudernidade capitalista.
Naquelas poucas horas cavadas a fórceps judicial em meio aos dias que por si só já deviam pertencer ao povo oprimido – e eu choro escrevendo isso – vi o Brasil latejar incontido dentro da carcaça de concreto e dinheiro. E através de um aleph improvável que imaginava tão distante destas plagas, vi, num átimo, passado, presente e futuro, o Rio de Janeiro e a Bahia, África e Amazônia, condensados num toque de Zé Pereira.
Minha gratidão eterna a todos os que embarcaram conosco neste sonho, ao Capitão Caverna Leo Gola, ao grande Marcão Gramegna, os colegas músicos e toda a família Borogodó. E especialissimamente a uma certa melindrosa ruiva que iluminava o céu com o seu sorriso tímido, em cuja cabecinha, carnavalesca como poucas, brotou e cresceu a disposição de contrariar a esperada expansão eterna da impossibilidade. A ela, meus sonhos, minhas esperanças, meus filhos. Minha vida.
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Grande Fernandão,
ResponderExcluirAinda bem que deu tudo certo com a Justiça.
Perdi essa, mas ano que vem estou lá de qualquer jeito.
Só quem é paulistano e vive o dia a dia disso aqui sabe realmente o que significa um baile desses, numa cidade como essa, numa terça feira gorda. Isso sim é tirar leite de pedra. Vocês estão fazendo história, com certeza.
Parabéns ao Ó!!!!
!
ResponderExcluirFernandão, Marcão: li, aos prantos - ô, novidade velha de merda... - esse texto definitivo sobre o Carnaval. Enchi-me de esperança na Justiça - salve o Marcão, e ontem mesmo eu disse que se morássemos na mesma cidade teríamos a maior banca de advocacia do mundo, só pras causas ditas perdidas em prol dos fudidos! - e no povo, sempre ele, o povo! Um cafuné nos cabelos ruivos dessa melindrosa, minha irmã, um afago no rosto desse barbudo filhodaputa a quem não encontrei, mais uma vez, no Bola Preta, um abraço nesse advogado que renega o protótipo nojento da profissão e um beijo do tamanho do Rio nos paulistas amigos meus!
ResponderExcluirOlha, cumpadre,
ResponderExcluirTudo que você diz aí dessa ruivinha melindrosa, é exatamente o que eu digo! Mas não para a ruiva e sim para uma LOIRINHA melindrosa que brincava bem perto dela!! Mil vivas às melindrosas!!!
Quem não gosta de brincar o carnaval não conhece os melindres da vida...
Vão morrer secos de amor, os pobres coitados...
Assistindo o "carnaval" no sofá de suas confortáveis celas!
Bjs,
Eric.
Meu irmão!
ResponderExcluirSensacional seus escritos e seu blog!
Parabéns, irmão!
Beijos
Meu irmão!
ResponderExcluirSensacional seus escritos e seu blog!
Parabéns, irmão!
Beijos