quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Sambando no Avesso

Caio Silveira Ramos


Para Germano, malandro que em um 26 de outubro, há 50 anos, ganhou um concurso e uma carteira de trabalho anotada: "cantor e executante de instrumentos exóticos." Samba, Germano. Samba.


Cheguei de longe, com o rosto aceso da cidade, mas não era, não era aquilo. Prédio, cinza, tiro: nada que meu pesadelo desaguara, era tudo, tudo outro. Outra. Que rosto tinha que meu sonho não viu ?

Consolação, Viaduto do Chá, eu lá, trançandando, rua, rua, do disco antigo encontrei um sotaque, será ? Pois não joguei pra rede palestras, bardis, martinelis, pignataris ? Iria então comer poeira, buscar o rosto dela em vanzolinis e rubinatos. Mais fácil seria topar com um rubinato, que o outro, doutor sambado, foi mergulhar entre cobras e lagartos. Perimetrei transambando, cadê Joca, Mato Grosso ? Inês saiu, apaga o fogo Mané, que Iracema meu grande amor foi embora. Mas Rubinato, cadê ? Adormeceu, adonirou-se antes do meu pé se cravar na cidade. Por que me abandonaste, bancando o Arnesto ?

Mas perdidosseilá, foi que vi o malaco. Desconsiderei. Pois como podia, sambista paulista, chamado Germano, europas no nome, trazer um gingado ? Como é que podia, Mathias, mãe, pai lusitanos, fadista não ser ? Como é que podia, branquelo, velhaco, ecoar piraporas dos jongos fora-da-lei ?

Pois foi nele que encontrei a cidade, mesmo antes me embebedar de João Antonio, meu palavreiro vadião a me guiar pelos infernos e inferninhos das Bocas infinitas. Germano Mathias apareceu assim, de esbarrão na esquina, desmalandrado, sem bombeta, sem pisante bico-fino, sem camisa listada, sem nada. Ali, esperando o ônibus pra Parada de Taipas. E eu fui junto.

Na ginga de se equilibrar nas curvas, no requebro do passar pela roleta, lá se foi ele, de cadeira quebrada, batucando sozinho, no banco, na janela, nos canos. E eu fui junto.

E São Paulos foram se formando dele, deles, germanos, lusos, dos falares italianados, dos brancos de coração pulsando africano, negro, negro, de alma e poesia estaladas concretas na lata de graxa. De pernada de moleque xepado no lustro certeiro.

Não sou eu não, não mais, sou Germano, homem dos trinta andares, quase arranha-céu, dos mil falares sincopados se prestando a adivinhar o quanto sambar é possível e amar é quebrável. Sou Germano para gingar Padeirinho, carioca, Mangueira em férias a verderrosear as barafundas. Sou Germano para suingar Caco Velho, pai-mestre, gaúcho negro de cuicar as veias azuis dos preconceitos. Sou Germano para me enluvar Jorge Costa, alagoano, domador da sílaba que se inverte para moldar meu passo.

Roubei uns passos, uns corpos, uns gingados, sou bom ladrão, mas meu Deus, não me perdoe, que perdão não preciso. Só quis engolir todas as línguas do mundo e sair por aí falando, sambando no avesso.

E pelo descompasso de amar errado, pecarei por adormecer com a cidade, que encostada no poste, sorri: me ama.

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