(PARTE II)
A sobrevivência da negatividade
Todo estabelecimento de uma forma verdadeira, de um modelo ideal a ser perseguido admite logicamente a possibilidade de uma determinada forma da existência vir a suprimir todas as negatividades da existência dada, visto que a forma dada nada mais é do que a forma ideal, descontadas as mazelas decorrentes da má condução circunstancial no presente da existência. Mesmo na seara do pensamento crítico, toda vez que um determinado estado de coisas é tido como o estágio final de um processo histórico, esta súbita ressurgência de um estado de coisas positivo (quer dizer: não negável) assume papel imobilizador do processo histórico de emancipação humana.
Assim como a classe burguesa foi a classe revolucionária da superação do antigo regime e passa a, apartir da consumação da revolução, engendrar instrumentos de conservação da nova ordem instaurada, da mesma forma o pensamento político de Hegel que foi instrumento crítico fundamental para a consolidação filosófica da revolução liberal, trasforma-se incontinenti em instrumento conservador do estado de coisas “legitimado” a partir da implementação da nova ordem sócio-econômica burguesa. O estágio final da evolução política do espírito absoluto prussiano engendrara uma ordem em que puderam se encontrar a perfeição da liberdade e igualdade formais, pela subsunção dos indivíduos livres à racionalidade do estado de direito. A condição miserável da classe proletária fica relegada a mera circunstância transitória até que se perfaça na prática a justiça idealmente representada pelo estado de direito e pelo livre mercado. Para superar a estagnação crítica do pensamento hegeliano (quando da identificação histórica do estado prussiano com a consumação da realidade engendrada pela razão) Marx teve que engendrar todo um esforço filosófico para a reintrodução de um elemento negador da ordem burguesa estabelecida: o proletariado e sua situação de eterno perdedor no jogo do capitalismo. Precisou, portanto, demonstrar que o funcionamento das estruturas da sociedade capitalista não levariam, por seu aprimoramento, à superação da condição historicamente desfavorável do proletariado, mas, muito ao contrário, tenderia a agravá-la; e que, conseqüentemente, a negação dessa condição só seria possível pela negação da estrutura ela mesma.
A parir de então, o pensamento crítico pôde voltar-se à negação dos fundamentos do modo capitalista de produção e organização social. E não tardou a deparar-se com novos desafios, quando as revoluções nacionais começam a abolir as formas de apropriação privada da riqueza, mas variadas mazelas da vida social não desaparecem concomitantemente. Da mesma forma, então, a matriz de um pensamento que tornou possível a formulação filosófica da abolição do modo capitalista de produção passa a ter função conservadora, anti-crítica, quando vem considerar que as negatividades sobreviventes nas várias experiências do chamado socialismo real foram decorrentes de desvios pontuais na “correta” aplicação do modelo formulado! Quando esse pensamento, portanto, perde a capacidade de compreender que a substituição da estrutura capitalista pelo socialismo de estado engendra ela mesma novas negatividades específicas, novas mazelas estruturais (entre as quais pode se destacar a falta de liberdade, a dificuldade na preservação e expressão da singularidade subjetiva etc.), estanca novamente na sua tarefa de construir uma outra existência possível.
Dito assim, por outro modo, sempre que o pensamento abandona o criticismo que busca a negação de uma forma dada da existência pelo cotejamento com uma outra existência racionalmente possível e adota um modelo, um parâmetro específico, um ideal qualquer que seja está renunciando inapelavelmente a ser um instrumento transformador da realidade dada, rumo a uma outra forma possível. Quais os parâmetros, pois, para a razão identificar as negatividades nas formas presentes da existência? O parâmetro é sempre o da outra existência possível! Há alguma liberdade na forma presente da existência social, mas há uma outra liberdade racionalmente dimensionável? Há bons ganhos numa determinada forma social instaurada, mas é possível conceber racionalmente uma outra forma onde as mazelas presentes não estejam intrinsecamente atreladas à estrutura desta forma presente?
Não seríamos tolos em negar que no âmbito estrito de uma dada forma social são possíveis graus diferenciados de liberdades, igualdades, possibilidades etc. e que o atingimento desses máximos possíveis nos limites estruturais definíveis de uma forma dada da existência depende do padrão de eficiência do gerenciamento dos mecanismos próprios inerentes ao modelo, vale dizer, que a correção de desvios, a adequação gerencial propiciará ganhos na comparação entre esse máximo possível diagnosticado e a situação circunstanciadamente considerada. Este não é o problema. A eficiência gerencial não é má em si mesma, pelo contrário. Só não podemos, em nome deste processo menor que representa a otimização das condições presentes em vista a um máximo que se inscreve no limite daquela estrutura abrirmos mão do processo maior e mais ambicioso de ampliação destes próprios limites! Ou seja, nem sempre é preciso derrubar toda uma estrutura para se obter um ganho na supressão das mazelas da vida, mas há que se ter em mente que este ganho geralmente não ultrapassa o caráter quantitativo. Os ganhos qualitativos implicam na negação de toda uma trama de estruturas que opera no sentido da construção daquele limite referido, ou acacianamente, o limite estrutural.
Dado este ponto de vista, nenhuma estrutura do mundo presente, nenhuma forma de organização, nenhum modelo, nenhum valor político ou ideologia é imune ao pensamento crítico, pois esse não se limita à comparação das formas presentes da existência aos limites reconhecido justamente a partir da aceitação apriorística da excelência dessas estruturas, valores, modelos etc. Ele vai além, denunciando extrinsecamente ao âmbito estreito das formas aceitas os limites que essas mesmas formas impingem à possibilidade de outra existência! Para o pensamento crítico, só a realização máxima da existência humana em seu universo infinito de possibilidades é parâmetro para a crítica racional. Por isso a dialética não cessa nunca, a negação permanece para sempre, enquanto não encontrarmos os termos derradeiros do desenvolvimento de todas as nossas capacidades. A negatividade permeará as formas dadas da existência sempre que à razão crítica for possível conceber uma forma superior, com limites mais dilargados para o exercício das potencialidades humanas.
Sempre que permanecer possível uma existência mais plena em liberdade, igualdade, justiça, conhecimento e todas as formas de realização humana, o pensamento crítico será o instrumento de superação das negatividades da existência presente. E como não nos é dado conhecer os limites dessa progressão, não nos é dado eleger de antemão o modelo ideal da existência humana possível. Compare-se, por exemplo, no conjunto de todo o conhecimento humano coletivo acumulado hoje e há 150 anos, quando muitos acreditavam ter a humanidade chegado ao ápice do domínio tecnológico e científico!!! Da mesmíssima forma como o pensamento hegeliano pôde enxergar no estado prussiano o ápice da realização da liberdade política e social...
Puta merda hein Chefe! Que saudade que eu tava de ler o que tu escreve. Beleza pura. Precisamos tomar uma gelada juntos hein, mermão. Abraço pra vcs!
ResponderExcluirMano: quando eu leio um troço desses, e nem preciso ler o texto todo, não, basta ler o primeiro parágrafo, me sinto exatamente como sou: um verme diante de sua inteligência descomunal.
ResponderExcluirO pequeno, barbudo, sou eu.
Beijo.