segunda-feira, 9 de abril de 2007

Fim de feira


Não tenho vontade nem competência para me meter a historiador – sempre tenho, por sorte, o Velho Simas para me socorrer e corrigir - mas importa lembrar, para o que hoje venho dizer, que o costume de se comerciar nas ruas talvez seja tão antigo quanto a própria História. Desde os tempos imemoriais os relatos referentes às formas mais rudimentares do que posteriormente se convencionou chamar civilização dão conta da utilização da via pública, do caminho de passagem como local privilegiado para a atividade fundamental da troca de mercadorias, na forma de escambo ou com o uso do elemento monetário. Conhecidas por quase todas as civilizações da antigüidade, as feiras atravessaram os séculos, tendo representado importante papel quando do renascimento comercial e cultural experimentado pela Europa na chamada Baixa Idade Média.

No Novo Mundo, a tradição urbana do comércio ambulante remonta aos tempos dos povos pré-colombianos, sendo bastante conhecidos, desde o México até o Peru Inca, os chamados tianguis, feiras dos povoados indígenas. A esta forma autóctene expressiva e disseminada de comércio a céu aberto, periódico e móvel, somou-se a contribuição da cultura hispânica de forte influência árabe, dando origem à tradição das feiras tais como conhecemos, que se disseminaram já nos tempos coloniais e sobrevivem fortemente em muitas cidades latino-americanas.

Entre nós, as feiras livres sofreram ainda a infuência decisiva da cultura africana, para a qual os mercados urbanos representam talvez o elemento mais fundamental da sociabilidade, aglutinando o centro das práticas públicas mais expressivas, desde o comércio propriamente dito, até a política, administração da justiça, religião etc. Em toda a África Ocidental, os chamados “Senhores do Mercado” constituíram-se em figuras poderosas e temidas por seu grande poder e influência, muitas vezes assumindo dignidades reais. Talvez por isso a impressão tão forte de que esses mercados ao ar livre tenham assumido no Brasil papéis que vão muito além da troca de víveres e outros artigos. A presença no espaço do mercado livre de fortes elementos simbólicos ligados à intersubjetividade e ao exercício da mediação social (política, religiosa, artística etc.) certamente terá propiciado um notável incremento nas possibilidades de interações mais criativas, menos engessadas, com formas menos pré-definidas. Não é preciso dizer o quanto estas possibilidades estão em consonância com nossos traços culturais originariamente tão marcados pelo encontro e pela comunicação interpessoal, pela informalidade e espontaneidade de muitas relações sociais.

Em algumas localidades brasileiras, os espaços tradicionalmente ocupados por estas feiras foram se fixando, muitas vezes até se transformarem em pólos agregadores de núcleos urbanos incipientes. Assim foi, por exemplo, com a tradicionalíssima feira de Caruaru, anterior à própria cidade que acabou por crescer à sua volta. Fixas também são ou foram outras feiras conhecidas, como o Ver-o-Peso em Belém do Pará ou a extinta feira de Água dos Meninos, em Salvador, ambas surgidas como entrepostos portuários, nos locais de ligação fluvial/marítima às localidades próximas das respectivas capitais, provedoras de pescado e gêneros agrícolas em geral. No Sudeste, ganharam força as feiras periódicas, encontráveis na Capital de São Paulo, por exemplo, desde o século XVII. No Rio, encontrei registros que remontam aos setecentos, mas custo a crer que não sejam mais antigas. Já nos primórdios do século passado, de periódicas aos poucos foram se transformando também em móveis, assumindo a forma que tão bem conhecemos por estas nossas bandas.


Ó “laranxa”, freguêeeesa...

Na minha meninice, ir à feira era misto de diversão, aventura e dedicação. Diversão, é claro, pela profusão de cheiros e sons e cores, festa para os nossos sentidos ainda não afogados na superexposição áudio-visual banalizante das gerações seguintes. Havia brinquedo pra comprar: peão, espingardinha de rolha, marionete, carrinho de rolimã, estilingue, papagaio; fora os sazonais: balão de São João, confete, bisnaga d'água pro Carnaval... Havia a barraca do pastel, do caldo-de-cana e ainda os tabuleiros com aqueles refrescos coloridos (tinha um nome, meu Deus...) em garrafinhas plásticas em forma de Fusca, de motocicleta, avião, barco, cachorro, boneca. A barulheira era infernal, pregoeiros se digladiando na batalha dos preços (“baxô, baxô, baxô o agrião...”), cantadores (“cinco maçã me dá só dez/ cinco maçã me dá só dez”), os bordões conhecidos (óóóóóó laraaaanxa, freguêêêsaaaaa... Tem lima, tem pera e tem seleta!). Mas havia que se ter disposição, porque a feira não era mole, sobretudo para as crianças. Multidão se acotovelando, carrinho de feira passando no dedão, sombrinhas das velhas, sol escaldante na moringa ou (pior!) chuva, o percurso não era bolinho pra quem tinha menos que um metro e trinta! Tinha mãe que amarrava o filho com correia pra não se perder, o que era freqüente (mas sempre achava, porque todo mundo se conhecia, fregueses e feirantes). A minha morria de medo dos punguistas hábeis zanzando pelas gentes, porque as feiras sempre foram também redutos da malandragem, para descolar um troco no lero-lero, no carreto de sacola ou, por que não?, na gatunagem.

Final de feira, legumes baratos
Meninos mulatos enrolam nos trapos
Os restos do prato
Que o dia-a-dia deixou pelo chão

Epa, mais vale uma xepa na boca da gente
Que o corpo doído, faminto, doente
E o amor esquecido de um coração

Que alegria
Panela no fogo, barriga vazia!
Que coisa boa
Batata-baroa, chuchu, agrião...
Subiu ladeira, moleque sabido, menino feliz
E quem é que diz
No bolso furado não leva um trocado
Nem vale um tostão..


(A Xepa, samba-de-roda de Ruy Maurity)


Três décadas se passaram, mas a feira ainda é o reduto do apelido, da gozação despreocupada das convenções inventadas pelos colonizados de sempre: de uns tempos pra cá eu sou, indefectivelmente, o “Barba”; mas já fui “Barriga”... O negrão retinto da barraca do tomate é “Alemão” e o banguela do caju é “mil e um”, mas já foi “Lazaroni” (time recuado, só um lá na frente...). Moça bonita, se não paga, não leva, mas se paga... É o palco da pechincha, em que a lábia do freguês e o jogo de cintura do vendedor compõe o preço da mercadoria - versão tão brasileira da lei universal da oferta e procura – com propriedade e justiça a que nenhum código de barra poderá aspirar.

Mas como tudo neste nosso judiado país que diga respeito às nossas formas singulares de existência, ao nosso modo próprio de ser e ver o mundo, as feiras - como o futebol, o carnaval, a música, os butiquins, açougues, padarias, as ruas com casas, entre tantos etcéteras – também viraram presas fáceis do grande capital, por um lado, mas sobretudo de uma psudo-culturazinha pasteurizada, de modelito importado, baseada na assepsia e “praticidade” autosuficientes de uma vida que prescinde do contato com o outro ser humano. Que apegada a falsas demandas por “segurança” e “higiene” constrói uma absoluta e ressentida ojeriza à rua, a tudo o que ela representa, tudo a que ela remete. E é por isso que hoje, com ou sem criança, pode-se andar à vontade pela feira da Vila Romana. Sem atropelo, sem empurra-empurra, sem trombadinha nem medo de perder o filho. Semi-deserta, mas ainda colorida e musical. Pelo menos até a semana passada.

Porque, senhores, os que se arvoram em donos desta triste Cidade não vêem limites para o seu despudor e sua falta de escrúpulo. Nada querem deixar de pé nada que possa remeter ao mundo brasileiro que eles tanto desprezam – e temem. Sequer se satisfazem com a morte lenta e desvalida do que resta de nossa gente e de nossa cultura nestas cinzentas plagas dominadas pela lógica impessoal do dinheiro. Querem o nocaute, a humilhação, a lona. Querem o nosso sangue, impiedosamente, como animais no matadouro. Assim é que o homenzinho que arrumaram pra ocupar a Prefeitura da Cidade no lugar do Mentiroso-mor – aquele que afirmou para quem quisesse ouvir que não se candidataria ao governo do Estado – meteu-se a decretar, acreditem os que quiserem, que a partir de agora, na feira, nenhum feirante mais pode gritar! Nada de barulheira, ora, se vivemos numa cidade civilizada, de primeiro mundo! A feira, daqui por diante, nos delírios higienizadores e aculturados dessa escumalha, terá barraqueiros uniformizados, banheiros químicos obrigatórios e caixotes higienizados. Nada daquela gente desdentada e rota e seus caixotes de pau! E horário, senhores, teremos horário! Hora pra chegar, pra montar, pra desmontar, tudo como manda a nova ditadura calvinista e asséptica dos padrões de existência.

Tudo está consumado. A batalha nos chama e não há como adiar. Mais este ultraje não ficará sem o desagravo à altura. Ora, que o homúnculo que pensa que nos governa enfie os seus decretos de merda no local que lhe der mais prazer! Porque se ele pensa que gritar é privilégio seu, que precisa nos convencer da sua macheza vociferando contra um humilde trabalhador na porta de uma unidade pública de saúde, vá ele ver que tudo tem um limite. Que nós gritaremos, espernearemos e morderemos acima do que a sua soberba autoritária possa supor ser possível, se eles insistirem em querer nos ver morrer como porcos.

7 comentários:

  1. Fiquei sabendo dessa notícia ontem de tarde. É de uma imbecilidade essa regra que não tem nem por onde começar a xingar.

    E você falou bem, Fernandão. O tal homenzinho, que na feira seria chamado facilmente de Almofada ou Coxinha, pode gritar, espernear e chamar os outros de vagabundo. Mas quer silêncio geral e irrestrito para isso.

    Triste, bem triste o rumo dessa nossa já castigada São Paulo.

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  2. ´cê tá de sacanagem, né?

    Lei? Decreto? Que porra é essa?

    Pode me mandar o texto do excremento?

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  3. Eu apoio essa lei. Acabou a bagunça. Agora o vendedor de verduras vai andar de verde, o vendedor de ovos vai andar de amarelo e branco e o vendedor de tomates vai andar de vermelho. Nada mais sensato.

    Inclusive nosso querido Prefeito nun-Kassab, para dar o exemplo, já foi visto com uma camisa italiana, chiquérrima, cor de goiaba.

    Aliás, a feira não tem "escargot" e o vendedor de vinhos, todos de marcas grosseiras, demonstra desconhecer as regras mais básicas de como um "somelier" deve se comportar.

    E as bananas? hein, hein? E as bananas?

    Já pensou se uma distinta senhora escorrega na casca e estraga seus finíssimos sapatos importados? Nada como uma lei civilizada.

    Sonho com o dia que os cidadãos forem à Subprefeitura mais próxima denunciar os bárbaros feirantes: "Estava passando e ele gritou na minha orelha: "Abacaxiiiiii!!!!". Não pode, é contra a lei e além disso nunca vi nada parecido em Paris ou Quebec.

    Inclusive o autor desse blogue, que ostenta uma barba assustadora para nós, os cidadãos de bem, além de sandálias "kitch", tem essa mania de cultura brasileira e de defender essa gentalha mal vestida e mal ajanbrada. Mas ele não pode negar que o sujeito que frita pastéis na feira desconhece completamente as regras de uma cozinha internacional.

    Vou sugerir uma lei, inclusive, que proíba o consumo de maionese em dia de sol. Isso dá piriri no consumidor e impõe gastos à Prefeitura com limpeza de banheiros públicos, além de consumir mais água limpa nas privadas e pias, e os tempos não são de desperdício, já bastam os superfaturamentos que pagam o nosso sagrado caviar.

    Ah!!! que saudades do Jebão.

    PS. Agora falando sério, essa entrará para a história como a mais escrota lei de todos os tempos. Eu chequei e, por incrível que pareça, é verdade mesmo.

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  4. Decreto Municipal nº 48.172:

    Art. 26 Fica proibido ao feirante:

    ...

    IX - utilizar aparelhos sonoros durante o período de comercialização, bem como apregoar as mercadorias em volume de voz que cause incômodo aos usuários da feira e aos moradores do local;

    ----------------------

    Há lá outras pérolas (clique no liame para ler a íntegra - mas não esqueça do Plasil e da bacia pra vomitar) como a regulamentação do vinagrete do pastel e as cores dos uniformes aludida pelo nobre Marcão, a quem agradeço por me fazer rir de um assunto que já me fez chorar de raiva mais de uma vez.

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  5. MOÇA BONITA NÃO PAGA (RATINHO)
    Vamos homenagear
    A feira livre e o mercado popular
    (E o dito popular)
    Quando vem o amanhecer
    Um pouco antes do sol nascer
    A feira livre está pronta
    E nela desponta
    A cabrocha Lili
    Fazendo o florista sorrir
    E o vendedor ambulante
    Dizer coisa interessante
    Quando passa por aqui
    (Lá vai Lili)
    Vai seguindo seu caminho
    Mas seu semblante se modifica
    A flor se fere no espinho
    Da inflação que se agita
    O vendedor de laranja grita
    "Moça bonita, aqui não paga"
    Pisa na casca de banana, escorrega,
    Aqui não paga mas também não leva
    Compra peixe Lili
    Compra peixe Lili
    É meio-dia
    De bolsa vazia não pode sair.
    Tem zoeira, tem zoeira
    Hora de xepa é no final de feira.
    (GRES Caprichosos de Pilares. Carnaval de 1980 - Grupo de Acesso)

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  6. Fer, essa lei é ridícula, nossa, inacreditável. Escrevi no coisas nossas:
    http://saocoisasnossas.blogspot.com
    beijos

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  7. O Kassab quer entrar pro folclore da política, né, gente?

    Nunca um prefeito foi tão apegado aos não-problemas da cidade como ele.

    Aliás, entendendo o sujeito como o árbitro das querelas e picuinhas, quero ver se pelo menos vai valer pra todo mundo. Faça, prefeito safado, uma lei proibindo as madamas dos Jardins de saírem com seus poodles felpudos para emporcalhar as ruas.

    Abraço de um muito puto Borgonovi

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