sexta-feira, 27 de abril de 2007

Fernando para Otto*


Rio, 4 de Agosto de 1957.


Otto,

Confesso que sua carta me deixou meio irritado. Como você, talvez eu também esteja deprimido, e, por motivos óbvios – depressão esta cuja existência não lhe pode ocorrer, absorvido que você anda sempre com a sua própria. E os assuntos que você aborda são delicados – mais delicados que sua maneira de abordá-los. Em todo caso, vou tentar responder.

Me desculpe, mas não posso concordar com você em que deus seja apenas “Justiça Punitiva” e que “todo o sentimento de compaixão, de compassividade, de compreensão” seja “puramente demoníaco”. Evidente que eu sei o que você quer dizer, e é verdade que o Deus bonzinho, o Deus camarada, não existe. E eu não estou apelando para Ele, conforme você quis dizer. Nossa concepção da Justiça Divina difere muito, e creio neste ponto que estou mais próximo dos Evangelhos que você.

Para mim, Deus não funciona apenas no sentido negativo, “você vá para o diabo” - “você pode entrar”, porque “você fez o diabo” - e “você não fez nada”. Aí não pode escapar mais da parábola do publicano e do fariseuu – ainda que não façamos dela uma desculpa: não podemos escapar.

Quero dizer o seguinte: para mim, Deus não se limita a mandar para o diabo os que transgrediram a lei e a deixar entrar os que a respeitaram. Há algo mais: há a prática do bem, há o exercício deliberado da virtude – exercício voluntário, macerado e cheio de sacrifícios (e de aparentes contradições, que desencadeiam a contradição alheia). Assim: o critério de julgamento não será apenas negativo, condenando os que praticaram o mal e salvando os que não praticaram. Será afirmativo, pedindo algo mais: a prática do bem – que inclui, por exemplo, não julgar para não ser julgado; e isso é compaixão, compassividade, compreensão. Deus pode não tê-las, no sentido humano da palavra, mas exige que você tenha, por exemplo, para com meus problemas. (O que você, se tem, nunca demonstrou.) E isso exige amor – aqui chegamos na maior das vurtudes, que é a caridade. A que faltou ao fariseu para com o publicano e por isso esse saiu justificado, aquele não. O fariseu não era virtuoso? Não cumpria rigorosamente os mandamentos? E o publicano não era um bandalho que nem tinha coragem de entrar na igreja? Sem esse critério afirmativo que informa o julgamento de Deus, como você explica isso? E o Evangelho de hoje, oitavo domingo depois de Pentecostes? Eu também não explico, mas a minha intransigência para comigo eu não estendo aos outros, privando-os de compassividade, compaixão, compreensão. Quem sou eu para dizer como Deus deve admitir ou expulsar aqueles que vão bater à Sua porta?


E veja a incoerência: preocupado demais em saber como o diabo procede e com suas artimanhas, se esquece que não basta escapar dele para entrar no céu. Você, dentro de sua vida arrumadinha aí em Bruxelas, junto de sua mulher e seus filhos, cercado de conforto espiritual de uma vida realizada e defendida do demônio, passa a ver a presença dele nos outros, como um meirinho anunciando a chegada do Grande Inquisidor. Mas só porque um crítico escreve contra o seu livro, imediatamente você o ofende, insulta, despeja sobre ele os mais indecentes xingamentos. (Neste particular eu não poderia estar com você, porque o Wilson Martins escreveu um excelente artigo sobre o meu livro... Sou suspeito, e eu não li o que ele escreveu sobre o seu.) Na minha opinião, a sua reação é muito pouco canônica, para quem se dispõe a anunciar a presença do demônio na vida dos outros.

Sejamos mais objetivos (coisa que você não foi): a que, exatamente, você se refere? Fala que lhe escreveram dizendo que eu “assento planos de estabelecer-me em bases novas, renunciando a todo o meu passado, corando quem sabe as amarras com o FS de até aqui” etc. E pergunta: “Será possível, fora do chamado caminho cristão, inventar um homem novo, tão novinho em folha?”

Para princípio de conversa, quem é esse missivista? Se eu tiver de “assentar planos” de alguma coisa, como ele diz, pode ficar tranqüilo que serei o primeiro a lhe comunicar. Se bem que não sei a que vem essa alusão. Ao meu desquite? Quanto a isso, não há nada que você não saiba, isto é, que a despeito de todo o me esforço para evitá-lo, tive de me conformar e ele está em vias de solução amigável, na medida do possível, dentro da cordata e bem sucedida solução. Tudo mais sobre esse assunto, não creio que você seja a pessoa mais indicada para julgá-lo, só agora se preocupando. E depois de um silência seu de dois anos, na espera em fiquei de uma palavra sua, sobre o que você diretamente já sabia que era o meu problema. O quê, agora? Aminha nova relação? Também não entendo bem a sua competência para me falar na “justiça punitiva de Deus” quanto a este assunto. Na próxima carta seja mais explícito. Não sei se nesse pretenso “estabelecimento de novas bases, etc.” parar a minha vida a que você se refere, e que de resto não existe, você está se referindo a isso. Se estiver, é estranhável também, não tendo você nunca demonstrado interesse pela gravidade que o problema representa para mim, como fizeram o Hélio, o Marco Aurélio Mattos, o Castejon Branco e outros amigos. E o problema é o mesmo cuja existência você já sabe, não havendo perspectiva de mudança.

Mais o quê? Meus filhos? Mas se você próprio reconhece que nunca se ineressou por eles senão à distância, genericamente, “na repercussão que tudo isso pode ter na vida deles”, “as crianças são muito sensíveis”, etc. (e nem ao menos se lembra que é padrinho de um deles), não tendo nunca manifestado um interesse mais direto em relação a eles.

Resta o cartório: quanto a este, é verdade que me demiti. Mas esse ponto você também já tinha conhecimento, pois há muitos anos eu lhe dizia que tinha a intenção de deixá-lo assim que tivesse ocasião – e a ocasião chegou. Como você vê, não “assentei plano” nenhum que você não soubesse. Resumindo: o desquite já era de seu conhecimento, minha nova relação passou a ser. A situação de meus filhos também. Porque de súbito, aí de Bruxelas, você se põe a me ameaçar com o demônio de maneira tão furibunda? Minha vida continua a mesma. Não é verdade que eu “ando sumido” (tenho ido ao Pelicano toda santa noite) nem que “não queira ver ninguém”, ou que esteja entregue à “renovação de minha vida”. Você anda mal informado. Não há renovação nenhuma, senão aquela em que sempre me empenhei, e que por fraqueza tenho colhido tão poucos resultados. Fraqueza que você não leva em conta nos que confiam na Misericórdia Divina, mas que Deus talvez leve – na minha suspeita opinião, pelo menos.

Mudando de assunto, fiquei satisfeito de saber que vocês estão devidamente instalados – e que você já comprou cigarros. Aqui corriam notícias, via Ibrahim Sued, de que você estava desgostoso em Bruxelas. Cheguei a pensar em escrever uma peça chamada “OTTO DESGOSTOSO EM BRUXELAS”. Por falar nisso, estou escrevendo uma peça divertissement. (En passant: sua máquina está precisando de uma fita nova. E quando fechar o envelope, cuidado para não colar o papel, de si já meio ordinário, e azul, como a cor da fita.)

Nosso tempo é evidente que acabou. Mas quando você voltar encontrará tudo no mesmo, ou tudo mudado – como no fundo é a triste realidade dos que voltam. Você voltará.

Afinal, ficou amigão do nosso bonzo Juarez Távora? Crises e mais crises – mas de política, mesmo, aqui não há novidade: tudo na mesma. Hoje é dia 4 de agosto, passei por acaso na Rua Toneleros, rezei uma Ave-Maria pelo major Vaz, que morreu mesmo, você lembra? E continua morto. Fui convidado para dirigir a Revista da Semana, não aceitei, indiquei o Ferreira Gullar para secretário, não agüentou o puxado uma semana, saiu. O Diário Carioca em nova fase, Rosário Fusco de crítico. Livro do Dalton Trevisan aqui comigo para entrega definitiva à editora, contos definitivos. Melhorou pra burro, selecionou, cortou, ajeitou. Não me lembro o que te falei sobre o teu “Boca do Inferno”, mas escreva romance. Encontrei Padre Agnaldo no Mosteiro de São Bento (todos lá perguntam muito por você, leram seu livro, Dom Basílio especialmente, Dom Marcos, Dom Justino, comentários apaixonados). Disse (P. Agnaldo) que seu pai ficou arrasado com o Boca, “logo o meu filho, um educador! Que concepção de infância!” Mas ele acabou gostando.

Vou escrever mais a você, serei mais noticioso. E pare com esse negóciod e demônio, que diabo! Depois de “La Part du Diable” do Denis de Rougemon, você não leu mais livro nenhum: “Tudo é o DEMÔNIO...” Não vem com essa! Tudo é Deus, seu capeta. O resto é que é o demônio – que não é nada, ou seja: é o NADA.

Otto, pelo amor de Deus, pense mais em Deus e menos no demônio. Saber que ele existe é tão pouco, melhor que não soubesse. Além das palavras rituais do batismo, sugiro o Sermão da Montanha.

E voltado ao assunto inicial, já tendo passado a minha irritação: não se preocupe, que não se mudou nada de fundamental em mim. Continuo o mesmo, tentando acabar com meus problemas, antes que eles acabem comigo. Você não me ajuda em nada, me ameaçando com a danação eterna. Ajudaria mais tentando entender minhas aflições e não projetando nelas as suas próprias. Afinal de contas, D. Marcos entende mais de demônio do que você, e não me falou nele nenhuma vez. Falou em Deus, que é palavra boa de se ouvir. Mas não um Deus que manda os outros para o diabo, que diz “misericórdia divina uma ova!” Outro Deus, aquele verdadeiro, que não abandona aqueles que não O abandonam. Eu não O abandono.

O livro das “Nove histórias em grupo de três” do Autran é realmente Dourado, ou seja, como se esperava muito bom, tem duas ou três histórias de primeira ordem. Falar nisso, chegou a ver o artigo do Tristão sobre meu livro? Cita você e o Hélio Pellegrini. Tenho estado com ele (Pellegrini), mas não no tom Juiz x Réu que você preconiza. Gostaria que seu tom fosse outro: “Me dê notícias suas. Como vai Elianinha? Já ficou mocinha? Não diga! É ótimo que você dê tanta assistência a ela, se mostre sempre participante, compreensivo, converse sempre com ela... E o desquite? É, realmente essas coisas são chatas, mas com a ajuda de Deus tudo há de terminar bem, você fez o que pôde, não fez? Ou quem sabe se pode fazer ainda alguma coisa? Em que eu posso te ajudar? Enfim, você não é nenhum louco, não está precisando de mim ocmo psiquiatra, deve ter lá suas razões, você sabe o que faz... E sua vida, sua literatura, sua solidão? Seu livro foi bem sucedido, agora é preciso partir para outro. Vai com calma, que a coisa vem. Enquanto isso você vai ganhando a vida com suas crônicas e tudo isso e claro como água, e é límpido como o céu, porque imundo é o que sai do homem não o que nele entra...” Assim é que eu gostaria que você falasse, Otto. Assim é que eu quero que seja a sua próxima carta. Estou cansado da linguagem de belzebu que você assume. Prefiro conversar com minha mãe aqui hospedada comigo e que está me chamando agora. Ela nunca me falou no demônio, mas vive me dando a benção desde menino, vive me falando em Deus.

Fecha a porta do inferno, e me escreva dando notícias de Helena-André-Bruno e de tudo, que responderei com celestial pontualidade.

Abraços a eles, a você, do seu amigo

Fernando

12/8/57 – Esta carta estava escrita há uma semana. Não mandei por falta de envelope. Vai agora, senão teria que escrever outra – que escreverei quando receber resposta sua. É toma lá, dá cá. E nada de novo aconteceu nesta semana. Senão esta coisa estranha e paradoxal: sua carta, afinal, me fez um grande bem... Depois explico. Outro abraço do

F.


*Carta de Fernando Sabino para Otto Lara Resende in Cartas na mesa, Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 187 e ss.

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