sexta-feira, 4 de maio de 2007
No elo Noël
Eu ia deixar passar. Sabia que fariam melhor que eu. Mas o texto do meu amigo Luiz Antonio Simas inspirou-me a um pitaco rápido pelos setenta anos completos que o nosso querido Poeta da Vila foi morar no Orun.
Noel foi um homem de seu lugar e de seu tempo. Não é preciso dizer do quanto ele incorporou do espírito coletivo da cidade do Rio de Janeiro e como soube, como pouquíssimos mais, transformar tudo em arte. Arte que cumpre a tarefa fundamental de ritualmente colocar em relevo e possibilitar a celebração do que, de outro modo, ficaria perdido no turbilhão quotidiano que tudo traga. Mas foi fundamentalmente um homem de seu tempo, um tempo de transformação dos traços remanescentes da organização colonial da sociedade brasileira rumo à tão propalada "modernização". Entendendo e dominando a incipiente linguagem de massa então representada pelo disco e pelo rádio, sua personalidade despida dos preconceitos típicos da elite e dos estratos médios brasileiros, dada à comunicação e ao encontro, pôde ir ao encontro das fontes mais populares de nossa cultura musical. Com sensibilidade para perceber seu papel de “ponte” e a generosidade - que tanto outros não tiveram – para não simplesmente se apropriar do que colhia, foi figura fundamental para a consolidação de uma forma de samba que seria predominante nos meios de comunicação a partir de então. Percebendo que a forma dominante do samba então feito nos morros e demais redutos de compositores - compostos primordialmente para a roda, só com refrão, para que os versos fossem tirados na hora de improviso – não se adequava a um produto destinado à comercialização, demandando a fixação de sua forma definitiva, especializou-se em escrever as chamadas segundas partes para tantos sambas de compositores ditos “do morro”, como Ismael, Cartola, Canuto, entre outros. Assim, possibilitava que o samba brotado dessas fontes chegassem aos ouvidos do grande público, preservada a identidade de seus compositores e superada a diluição da identidade criadora que sempre caracterizou as formas tradicionais da criação popular.
Que Noël esteja conosco, em nossos sambas, em nossos bares, neste final de semana e sempre, e nos possa ajudar a entender que a nossa missão não é mais do que isso: sintonizados com o nosso tempo, fazermos a ponte entre o que nos foi legado e o que a nós sobreviverá. Porque tudo estará perdido no dia em que um elo da cadeia se romper completamente. Que nos ajude, enfim, a entender, de uma vez por todas, a despeito de todos os hermanos vianas que teimam em nos confundir, que a originalidade da forma brasileira de estar e agir no mundo não está em outro lugar senão nessa privilegiada capacidade de promover dialeticamente o encontro e a comunicação (em seu mais forte sentido), a integração e a preservação, a criação e a continuidade. E que tudo mais não passa dos frutos abençoados desse ventre generoso.
E com a vossa licença, vou ali tomar uma gelada na Visconde de Abaeté, camisa aberta, ventre livre, chinelo nos pés, por entre as notas das calçadas musicais, assobiando “Vila Isabel veste luto...”
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Legal de tudo isso é que, mesmo com aqueles tentando brecar essa continuidade, esse elo com o que é sagrado, há os teimosos que firulam entre as barreiras.
ResponderExcluirE por caminhos tortos as coisas vão andando.
Salve Noel!
Ê, Vila Isabel. Visconde de Abaeté com Torres Homem, onde o Bar do Costa evidencia o "elo".
ResponderExcluirQue beleza!
ResponderExcluirLembrou-me a frase magnífica do samba do Zé Ramos:
"Da cidade alta da Mangueira
Avisto a Vila,
sinto saudade de alguém..."