quinta-feira, 26 de abril de 2007
Otto por Nelson*
“Muita gente não entende o nome da minha peça. Sujeitos me perguntam, numa amarga perplexidade: '- Por que Otto Lara Resende?' Entendo o espanto, entendo o escândalo. Normalmente só os defuntos, e, ainda assim, só os defuntos monumentais é que entram na ficção. Mas o Otto está aí, escandalosamente vivo e contemporâneo. Nós podemos apalpá-lo, farejá-lo, e, até, pedir-lhe dinheiro emprestado.
Amigos e parentes perguntam ao próprio: 'Você brigou com o Nelson?' Assim é o mundo. Importente de sentimento, o ser humano precisa ver o desamor por toda parte. Ninguém admite que o nome de minha peça é uma homenagem, apenas uma homenagem, uma cândida, límpida, inequívoca homenagem. Sou amigo do Otto. Gosto dele e abro-lhe as portas da ficção. E todo mundo sabe, desde Bulhão Pato, que a ficção é altamente promocional. Entrar numa ópera, num romance, num drama, ou numa simples burleta de Freyre Júnior, mesmo de carregador de bandeja, já vale a pena. Seu nome está nos anúncios, nos cartazes e na fachada do teatro.
Mas a simples amizade não é toda a explicação do título. Tudo, na personalidade do Otto, é um convite à ficção. Ele pertence menos à vida real e muito mais ao romance, à poesia, ao puro e irresponsável folclore. É ume scândal vê-lo no Procuradoria do Estado, a redigir pareceres sobre esgotos e padarias. O justo seria encontrá-lo impresso, em alguma página de Flaubert, ou mesmo de Eça ou, ainda, de Dickens.
Outra coisa que empurra o Otto para a ficção: a angústia. Não se pode imaginar sujeito mais sofrido. As suas depressões são, hoje, famosas, consagradas e, digo mais, invejadas. Explico: 'invejadas' porqe o herói, o santo, o gênio ou o profeta do nosso tempo há de ser neurótico. O sujeito se angustia porque se opõe a um mundo que fracassou. Por vezes o Otto aparece, na Procuradoria, macerado, como um Werther.
Outro elemento folclórico do amigo: a asma. Alguém dirá que a asma não passa de um problema respiratório. Assim pensa também a medicina oficial, com sua miopia crassa e ignara. Mas no caso do Otto, é diferente. Ele sofre de uma asma ética. Quando os brônquios do meu amigo começam a chiar, sabemos que o mundo vai mal. Se cai uma bomba em Hiroshima; ou se há um bloqueio; ou se a China invade a Índia; ou se o vizinho espanca o caçula – lá começa a asma do Otto. É curioso. Diante da iniqüidade, outros saem por aí derrubando bastilhas, decapitando Marias Antonietas, varrendo impérios. O Otto não, o Otto reage com a dispnéia. Mas uma coisa vos digo: no dia em que o homem amar o próximo como a si mesmo, Otto ficará eternamente bom da asma.
É ponto pacífico que muitos dividam de sua existência física. E quando ele se diz Otto Lara Resende, e como tal se apresenta, o sujeito fica entre duas hipóteses – ou da impostura, ou da piada. O seu mito está montado. Outro dia, ele apareceu na TV. As senhoras tomaram um susto. Era como se,d e repente, lá aparecesse a cobra-grande ou qualquer outra figura do folclore fluvial – de sapato, paletó e gravata.
Eu sei, por fim, que não faltará quem denuncie este depoimento como uma 'gozação'. E daí? Só os imbecis não resistem ao ridículo, só os imbecis não sobrevivem à piada. O verdadeiro amigo tem uma ferocidade jocunda e salubérrima. Eu sou esse amigo que não pode ver o Otto sem querer metê-lo numa anedota. Ele próprio faz auto-piadas. Quando soube que ia ser título da minha peça, cochichou para mim, com o olho rútilo: Eu pago o gás néon! Eu pago o gás néon! E assim ele selou a sua radiante simplicidade, com o título da minha peça – Otto Lara Resende.”
*excerto de entrevista de Nelson Rodrigues a Carlos Alberto Barreto, publicada originalmente em O Cruzeiro, edição de 22/12/1962. Apud Arquivinho nº 3 – Otto Lara Resende: Retratos escritos, Ed. Bem-te-vi, 2006
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Fernando, feliz pelo encontro, não obstante as tantas desavenças. Estamos no mesmo barco. Foi muito bacana o samba. Abraço!
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