Caríssimos, preciso vos contar que no dia de hoje, 23 de maio de 2008, passa-se exatamente um século da vinda à luz, na minha mui querida cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, do cidadão batizado Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas, no coração do glorioso bairro imperial de São Cristóvão. E não preciso apenas porque esse longevo senhor, que se despediu definitivamente dos microfones, depois de tantos ensaios, já há dez anos, foi, na minha modestíssima opinião, o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Nem por dever a ele, acima de qualquer outro, a sacramentação da minha paixão deslavada e incondicional pela música popular que se faz no Brasil desde a década de 1930. É por um motivo mais simples e - estou certo que concordarão – peremptório: comovido por sua arte é que tive, pela primeira vez e para sempre, a vontade de cantar para alguém mais que a saboneteira e o porta-xampus; e, em conseqüência, por sua imagem me ser tão presente a cada vez que me aproximo de um microfone para cantar.
Não que esteja advogando sombra de comparação, ainda que impossível honestamente negar-lhe a decisiva influência. A medida me seria demasiado severa: ninguém, sob este céu anil encimado pelo Cruzeiro, foi mais cantor. Orlando Silva tinha a voz mais bela? Possivelmente, sobretudo pelo que se ouve nos registros realizados entre 1934 e 1942. Depois, sua carreira sabidamente declinou, possivelmente menos abalada pelo comprometimento vocal em si, do que por uma personalidade um tanto acanhada, que talvez se tenha deixado fragilizar pelas luzes (e pela ausência delas, em certo momento) que inevitavelmente se projetam sobre a vida de um artista popular. Francisco Alves foi mais importante para a história da música popular no Brasil? Talvez; pelo momento histórico (era dez anos mais velho), por seu caráter empreendedor, personalidade marcante e imenso carisma pessoal, a aglutinar forças e empresas na consolidação dos mais importantes veículos mercadológicos do nosso produto musical: o rádio e o disco. Carlos Galhardo pode ter sido mais “técnico” e a bossa de Cyro Monteiro insuperável. Mas se fosse possível, num concurso imaginário, atribuir pontuações aos diversos quesitos que importam no julgamento da carreira de um cantor, tenho para mim que Sílvio Caldas faturaria sem dificuldade o “estandarte de ouro”. Senão vejamos.
Em termos de voz, a beleza do timbre e a afinação incontestável falam por si, não havendo um único senão que eu conheça em sua discografia na casa de quatro centenas de fonogramas em 78 rotações, além de quase 20 LP’s. Só isso, que não é a única nem principal medida da grandeza de um intérprete, o coloca muito à frente de cantores como Nelson Gonçalves e o próprio Chico Alves. Se o quesito for repertório, então, a distância vai para vários corpos de vantagem, inclusive em relação a Orlando Silva, que gravou várias peças duvidosas, incluídas versões absolutamente desnecessárias. Diga-se de passagem, enquanto vários cantores recorreram a esse subterfúgio para enfrentar a concorrência crescente dos artistas estrangeiros, sobretudo a partir da década de 40, o “Caboclinho querido” manteve-se aferradamente convicto em sua defesa da canção brasileira por sete décadas a fio. Aliás, falando em longevidade e, sobretudo, regularidade, a excelência do “Seresteiro do Brasil” é digna de nota, observado um declínio no desempenho vocal, compreensivelmente, somente quando já se encontrava na casa das oitenta e tantas primaveras. Quesito versatilidade: Sílvio notabilizou-se como grande intérprete de valsas, fox e canções, no melhor estilo seresteiro, mas sua bossa para interpretar o samba era tamanha que é influência declarada de ícones do gênero, como o próprio Cyro Monteiro e Germano Mathias; despiciendo lembrar as imortais interpretações de marchinhas carnavalescas. Isso tudo para não falar do Sílvio compositor, para valer (não me constam contestações desse fato, ao contrário de muitos intérpretes seus contemporâneos), parceiro do imenso Orestes Barbosa em clássicos absolutos e imorredouros como Chão de Estrelas, Quase que eu disse, Vestido de lágrimas, Arranha-céu entre tantos outros.
Poderia passar a noite falando das qualidades do intérprete ou das proezas de sua carreira assombrosa. Mas os cliques e cravos da vida estão aí, com seus meios-acertos de hábito, a socorrer os ávidos pela factualidade cacete e pela objetividade idiota. Prefiro falar de uma noite, em 1995, no Sesc Pompéia, quando o “Poeta da voz”, do alto de seus grisalhíssimos 87 anos, assombrou a platéia com a lucidez de sua memória de personagem-historiador da música popular brasileira e, sobretudo, pela potência e convicção de sua voz, ainda que nitidamente cansada, a tremer o pequeno teatro a pelo menos meio metro de distância do microfone! Ao peito, galhardo, o “companheiro dileto” com que lhe regalara o presidente Juscelino, que constatei ter mesmo o timbre perfeito da voz de seu coração*. Prefiro lembrar outra noite, talvez 1988, ou 89, uma noite imensa. Fora, eu menino, ver a imensidade do mito no pequenino e histórico palco do Vou Vivendo. Espetáculo terminado, senta-se no andar abaixo o “Trovador das madrugadas”, rodeado do pessoal da casa numa mesa redonda não muito grande. A timidez (minha) e a fama (dele) de uma certa rudeza não me conseguiam impedir de literalmente plantar-me ao lado dos bebentes para, também eu, beber daquelas histórias todas. Foi ali que o ouvi dizer: “Ganhei muito dinheiro nessa vida. Não para ter uma ‘boa velhice’, mas para ser rico pra valer. Só tenho, hoje, minha casa em Atibaia. O resto eu torrei tudinho – graças a Deus! - nas madrugadas. E não me arrependo um segundo!” Ali aprendi que as famosas e inúmeras despedidas foram todas de sincero propósito; as “voltas”, porém - ao contrário do apregoado pelo olhar burro do século, que tudo julgando conforme a si próprio, sempre quis fossem “jogadas de márquetim” do velho seresteiro... - quase todas motivadas pelo rareamento do vil metal; sina que, ironicamente, como se vê, iguala tantos e tantos trabalhadores brasileiros menos ou mais afamados. A determinada altura, notando-me ali parado havia séculos - e fazendo jus à fama (pensei de cara) - vira-se pra mim: “Ô, garoto! Que é que tá fazendo aí plantado que nem um dois de paus”. Gelei. Ia quase me arrancando, quando o gigante emendou: “Pega logo uma cadeira e senta aqui, porra!”. E assim fiz, obediente, até as altas horas da madrugada, depois de muita lição de música e de vida.
Mas agora me dêem licença, que vou ali chamar o vô Dante e o Felipinho Cereal e colocar na vitrola uma velha bolacha com a “Deusa da minha rua”. Deixo por aqui, em honra a seu centenário, minha mais profunda reverência a esse monstro da música brasileira. Ao homem, ao compositor e ao intérprete maior: Sílvio Caldas. Que colecionou tantos epítetos quantas despedidas: "Rouxinol da família ideal", "O Cantor que Valoriza as Palavras", "A voz morena da Cidade". Ou simplesmente, como preferia, “Titio”... O Seresteiro do Brasil. O Caboclinho tão meu querido.
* “Meu companheiro”, valsa-canção de Francisco Alves e Orestes Barbosa, gravada por Sílvio em LP Colúmbia, na década de 70.
Fui a uma das numerosas despedidas do Caboclinho Querido. Foi num baile anual dos jornalistas, o Parece que foi hontem, no clube Monte Líbano, na Lagoa. Foi no início dos anos 80 e o vozeirão se impôs, como sempre. Perfeitas as comparações com os outros cantores.
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