sexta-feira, 12 de maio de 2006

Cidade nua

O prefeito gato de São Paulo - aquele que foi alçado ao cargo graças aos otários que votaram na lebre, no estolionato eleitoral mais anunciado do século - encaminhou esta semana à Câmara Municipal projeto de lei contra a proliferação da poluição visual. Basicamente, trata-se da regulamentação da publicidade em outdoors, fachadas, prédios comerciais e espaços públicos em geral, num projeto que tem sido considerado amplo e rigoroso. Aproveito o ensejo para continuar uma série de idéias que venho lançando ao vento neste espaço de tempos para cá, em relação a esta cidade em que, a despeito de com ela pouco me identificar, nasci e morei a vida inteira.

É claro que já não era sem tempo. Não conheço do projeto mais do que os jornais publicaram, mas no ponto em que nos encontramos, qualquer regulação parece a princípio melhor que a barbárie geral; e não é por outro motivo que a proposta encaminhada soa rigorosa. Como, aliás, em geral no que atine à fúria devoradora do capitalismo que, deixada à própria sorte, não deixa pedra sobre pedra. Não obstante, a questão remete a uma outra, mais complicada: o que veremos, de verdade, quando o rei estiver nu? Tiradas as placas, cartazes, faixas, letreiros, luminosos, o que restará para ser visto?

Coloco a indagação porque sinto há anos na pele os efeitos da síndrome autofágica que assola muitos bairros tradicionais da cidade, sobre o que meu irmãozinho Marcão Gramegna poderia melhor discorrer. A especulação imobiliária tem destruído bairros inteiros para erguer os seus monstruosos arranha-céus, varrendo do mapa formas arquitetônicas tão diversas quanto singulares, que exprimem a distinta origem e desenvolvimento dos variados núcleos pré-urbanos da metrópole que acabaram por posteriormente se agrupar. É muito diversa a história social e econômica de bairros como Mooca, Santo Amaro, Penha, Lapa, Santana e tantos outros tão separados entre si como muitas cidades do interior paulista não o são.

Destruindo as formas habitacionais que refletem as formas específicas de sociabilidade que caracterizaram esses lugares, por óbvio também as distroem em si mesmas. Como resultado, os modos tradicionais de convivência, o jeito específico de morar, até os diferentes acentos lingüísticos vão sendo triturados nessa grande máquina de moer gente, transformando tudo numa pasta informe dominada pelas formas mais impessoais e formalizadas do modo de vida da burguesia estúpida que se apropria ilegitimamente desta cidade que não lhe pertence. Ou isso, ou a periferia judiada, abandonada, sem serviços, sem infra-estrutura, sem opções de cultura, lazer ou trabalho: violenta.

Vi isso acontecer com as Perdizes, onde nasci e cresci. Bairro de origem semi-rural, com um núcleo de população negra culturalmente ativo, berço de muitos bambas que fizeram do próximo e famoso Largo da Banana o seu palco. Até os anos oitenta, um lugar de classe média onde as pessoas se encontravam na padaria, na farmácia, no mercado do Seu Godofredo, na esquina de Turiaçu com Ministro Godói – vejam vocês... Hoje, um amontoado de prédios imensos, naquela coleção conhecida de mau gosto que vai do néo-colonial-brega até uns simulacros pseudo-modernistas com seus superapartamentos de noventa metros quadrados e piscinas, academias, xópim center, tudo para o cidadão não ter que sair na rua – esse espaço horroso e hostil (ô, Damatta!). Com a Pompéia, originalmente um bairro operário e da pequena burguesia, Santana, Tatuapé etc. etc. a mesma coisa. E assim será, lamentavelmente com a minha querida Vila Romana, se algo não for feito urgentemente.

Desde que mudei para o bairro há quatro anos, várias fábricas já sucumbiram para dar lugar a edifícios. Na esquina da casa de mamãe, na Rua Fábia com Duílio, um quarteirão inteirinho de pequenas casas de uma antiga vila operária foi posto abaixo. No quadrilátero onde ficava a fábrica da Petybom, da família Matarazzo, que cheirava a biscoito assado a três quarteirões de distância, três torres de trezentos e sessenta (!) apartamentos cada uma, de propriedade de um dos orgulhos da cultura nacional, a grande (o quê mesmo?) Adriane Galisteu. Por causa desse monstro, a feira tradicional da Rua Fábia foi mudada de lugar, obviamente para não atrapalhar a saída dos carros importados da garagem do condomínio. Duas quadras para lá, a fábrica Cardo-Brasil está no chão desde o fim do ano. Em seu lugar teremos o orgulho de contar com o NYC – New York Center, cujas virtudes são anunciadas por um panfleto simulando a diagramação do New York Times: "o charme da Vila Romana com as comodidades de New York"...

Isso tudo, meus caros, é para dizer que não adianta patavina a prefeitura felina de São Paulo preocupar-se com a poluição visual se a cidade acima de qualquer coisa não assumir uma atitude de auto-preservação. Não conheço caso que remotamente se assemelhe ao da capital paulista nas muitas cidades onde andei por esse Brasil e sequer tenho notícia que em outros bastiões do capitalismo avançado permita-se um semelhante genocídio cultural. Senão, o que restará para se ver e preservar quando os ícones da publicidade forem botados abaixo? Ou será simplesmente mais uma jogada dos vilipendiadores da cidade para sobrevalorizar os espaços específicos – lixeiras, pontos de ônibus, relógios de rua etc. - que passam a ser os destinatários exclusivos das peças publicitárias?

6 comentários:

  1. Boa Fernandão. O cheiro da Petybon às vezes ainda vem, na forma de saudade... Quando vi os prédios por ali, fiquei abismado.

    Perdizes, Pompéia, Sumaré, até a Vila Madalena já está deixando de ser Vila.

    Mesmo assim, ainda amo este lugar. Talvez até mais que o Rio por ter sido o lugar onde nasci e me criei... Mas só por causa disso...

    ResponderExcluir
  2. Fernandão,


    Fazia uns dias que não vinha ao seu blog, e achei esse texto.

    Um sentido de auto-preservação, como você diz, seria uma ação em prol da própria sanidade mental dos cidadãos dessa cidade enlouquecida. como ter sanidade mental sem referências?

    Não estou a fim de grandes digressões e acho que ninguém está a fim, mas apenas um dado: O IBGE demonstra que os bairros de classe média e até de média-alta paulistanos estão sofrendo uma diminuição de população residente. Então, porque tantos prédios? Estão construindo para quem?

    Para uma micro-burguesia, que representa menos de 1% da população da cidade, agravando nossos problemas sociais, ambientais e urbanísticos e solapando qualquer possibilidade, ainda que remota, de identificação das pessoas com a cidade em que vivem.

    Quanto às outras cidades brasileiras, com raríssimas exceções, não se iluda não: a coisa só não foi tão violenta porque a especulação imobiliária ainda não chegou de forma tão violenta, mas a lógica de desenvolvimento perverso é a mesma.

    Regulamentar propagandas é positivo, mas está muito aquém de por o dedo na ferida, como você bem observou.

    Grande Abraço

    Marcão

    ResponderExcluir
  3. Fernandão,


    Fazia uns dias que não vinha ao seu blog, e achei esse texto.

    Um sentido de auto-preservação, como você diz, seria uma ação em prol da própria sanidade mental dos cidadãos dessa cidade enlouquecida. como ter sanidade mental sem referências?

    Não estou a fim de grandes digressões e acho que ninguém está a fim, mas apenas um dado: O IBGE demonstra que os bairros de classe média e até de média-alta paulistanos estão sofrendo uma diminuição de população residente. Então, porque tantos prédios? Estão construindo para quem?

    Para uma micro-burguesia, que representa menos de 1% da população da cidade, agravando nossos problemas sociais, ambientais e urbanísticos e solapando qualquer possibilidade, ainda que remota, de identificação das pessoas com a cidade em que vivem.

    Quanto às outras cidades brasileiras, com raríssimas exceções, não se iluda não: a coisa só não foi tão violenta porque a especulação imobiliária ainda não chegou de forma tão violenta, mas a lógica de desenvolvimento perverso é a mesma.

    Regulamentar propagandas é positivo, mas está muito aquém de por o dedo na ferida, como você bem observou.

    Grande Abraço

    Marcão

    ResponderExcluir
  4. Seu Sze, gostei do texto, mais uma vez, a enésima. Tu deve estar pagando um IPTU caro pra cacilda nesse pedaço de Nova York onde moras, hein?

    ResponderExcluir
  5. Fernandão, meu cumpadre. Gostei do texto e modestamente pretendo acrescentar: São Paulo, que já não é nenhum Rio de Janeiro, resolveu cultuar a própria feiura e hostilidade.

    Toda cidade que se pretende habitável procura preservar o que tem de bom e melhorar o que tem de ruim. Mesmo o mais abjeto estágio da barbárie não pressupõe o que se faz com essa cidade.

    Explico: São Paulo perdeu a identidade, se é que já teve. Porque antes era feia e desagradável, mas tinha seu lá seu charme. Charme discutível, mas defensável à partir de uma leitura do Marcos Rey, por exemplo, que transformava nosso submundo e nossa feiura em literatura de grandíssima qualidade.

    Mas para isso era preciso identificação com a cidade. E aí está o ponto: não dá mais pra ter identidade com a SP que deseja para si a degradação do Braz (se faz tempo que não passa pelo Braz, vá ver o que é sobrou daquilo), que deseja transformar a Mooca e Santana em bairros de novos ricos etc.

    Felizmente, ainda não chegou com tanta força no meu Jaçanã. Mas, logo, farão do Caga-Sangue um "Habib's", da casa do norte do Edmar uma Blockbuster (nem sei como se escreve), só pra falir a locadora que tem ao lado.

    Triste cidade de São Paulo. De bom, só sobrará o nosso Palmeiras e a rivalidade com o time da Marginal sem número.

    Um abraço,

    Fernando Borgonovi

    ResponderExcluir
  6. "o charme da Vila Romana com as comodidades de New York"????????
    Meu Deus!!!!!! E pensar que cresci nessas ruas da Vila Romana, o bairro mais tranquilo que conheci na minha infância, onde era possível ver os vizinhos conversando sentados em cadeiras nas calçadas, como em "Gente Humilde", jogar bola na rua, assistir a campeonato de balão, etc.

    Descobri, na semana passada, que abriram para os automóveis aquele cruzamento da Rua Cel. Melo de Oliveira com a Av. Pompéia. Estudei minha infância toda num colégio nessa rua, em três unidades diferentes, uma em cada quadra; essa era a única rua do bairro que ainda mantinha as características que tanto me agradavam na infância, arborizada, calma e tranquila, com um impressionante coro de passarinhos. Pelo visto, vai durar pouco, fiquei muito triste.

    O Sergio, da Página da Música, já me convidou pra tocar em alguns eventos na Vila Romana contra a verticalização do bairro, infelizmente não pude ir em nenhum.

    ResponderExcluir