Hoje pela manhã vim para o trabalho ouvindo a antológica gravação da deslumbrante ária Cantilena da Bachiana nº 05 de Villa-Lobos pela soprano brasileira Bidu Sayão, que hoje completaria 104 anos. Ela que arrancou suspiros até de Mário de Andrade, crítico implacável do jeito lírico de se cantar destruindo a característica fônica de cada idioma, particularmente detestável em relação ao português brasileiro, cuja sonoridade sabidamente deslumbrava o grande pensador: "Ela tem uma voz admirável, de encanto impregnante. Que frágil tenuidade vibra tão frágil e intensa no seu cantar. Prova que uma alma de ave pode escalar na paixão". E realmente parece não haver dúvida de que a grande sedução exercida pela cantora sobre platéias exigentes do mundo inteiro deva ser creditada menos à sua exuberância técnica do que a uma certa suavidade brasileira que ela conseguiu magistralmente preservar.
Não sou mais, definitivamente, um fã ardoroso do bel-canto e nem tenho pretensão a qualquer julgamento mais autorizado. Mas essas divagações remeteram-me a uma conversa recente sobre a nova geração de cantoras populares brasileiras, que parece não ter mais fim. Em cada giro pela noite, em cada ligada de rádio (nas pouquíssimas estações decentes, por óbvio), em cada visita às lojas de disco, em cada conversa com os amigos atentos, novas descobertas. Entre surpresas boas, outras nem tanto, espanta sobretudo a quantidade. Não me atreveria fazer uma estatística, mas a impressão que fica é que para cada cantor, surgem cem moças competentes em maior ou menor grau.
É claro que o barateamento dos custos de produção, aliado ao desenvolvimento dos meios de comunicação independentes, sobretudo a Internet (questão que já tratei em outras oportunidades), permitiram um acesso muito mais "democrático" ao registro fonográfico. Por outro lado, a bárbara evolução das técnicas de gravação permite aparar muito mais facilmente as arestas de quem não tem a capacidade de uma Elisete de gravar um disco com doze faixas de fio a pavio sem errar um compasso; de modo que é no palco que a gente acaba tendo melhor oportunidade de separar o joio do trigo. Com tudo isso, o que me chama mais a atenção é que num universo tão vasto somente umas poucas vozes acabam por nos tocar mais fundo. Porque, ao fim e ao cabo, tudo vai ficando muito parecido, as vozes, as técnicas (sobretudo), as interpretações. Espantosamente, é o reflexo do que acontece, muito mais acintosa e deliberadamente, é claro, no segmento mais - digo para ser delicado - comercial. No campo sério e honesto os repertórios podem ser bons, os arranjos corretos, as execuções bem feitas. Mas tem faltado alma. Uma espécie de versão canora de uma burocratização generalizada das formas sociais que, se já era denunciada há mais de cem anos nas fronteiras mais avançadas do capitalismo, parece ter chegado pra ficar entre nós desde a década passada, a destroçar o que nos resta de singularidade resistente. E assim a gente vai reunindo as moças segundo a "escola" a que vão se filiando: escola Mônica Salmaso, escola Marisa Monte e por aí vai.
Difícil precisar em termos objetivos o que diferencia essas poucas intérpretes. Certamente não são quesitos aferíveis tecnicamente como afinação ou divisão, nem sequer escolha de repertório, como já disse. Arriscaria que é mais um "querer dizer algo", que logicamente pressupõe que se tenha efetivamente algo a dizer. Algo que compreende uma sensibilidade específica não somente para o que materialmente se ouve e reproduz, mas para toda a gama de significações que enreda uma obra de arte musical num sem fim de relações mutuamente imbrincadas e determinantes que compõe o universo cultural em que se insere; aliada, obviamente, a uma capacidade de traduzir essas percepções no ato de cantar.
Graças a Deus, tem gente por aí com muita coisa a dizer, querendo e sabendo como. Algumas tem e sabem como, mas ainda não resolveram de verdade se querem. Outras tem e querem e estão procurando a forma justa - e hão de chegar lá, sem dúvida. Mas temos que ficar atentos. Salve Dorina, Andréa Pinheiro, Maria Martha, Carminha Queiroz e tantas outras que, na estrada há um pouco mais de tempo, tiveram a coragem de nadar contra a corrente da mesmice e instalaram seu canto no pódio alto que o fará ressoar através do tempo. Que venham Fabiana Cozza, Iracema Monteiro, Juliana Amaral, Railídia, Graça Braga, Karina Ninni – só pra não ir muito longe – com as suas verdades tão diferentes, tão ncecessárias. E que venham elisetes, elzas, elises, claras, que o Brasil precisa de suas mulheres.
Eu amei o CD da Karina Ninni, vc já ouviu? Achei o máximo, estou há séculos pra falar sobre isso com vc... beijos
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