terça-feira, 9 de maio de 2006

Vô Laurindo

Laurindo sobe o morro gritando:
- Não acabou! A Praça Onze não acabou!
Vamos esquentar os nossos tamborins!
Procura a porta-bandeira
E põe a turma em fileira
E marca o ensaio pra quarta-feira


(Laurindo, samba de Herivelto Martins
para o carnaval de 1943)


Quero hoje vos falar de uma outra São Paulo. Não sobre aquela "estranha senhora, que hoje sorri e amanhã te devora", como diria o Chico, mas sobre esta mãe afável - fumante, é verdade; boêmia, é verdade - que bem ou mal nos nina e alimenta, malgrado sufoque e envenene, desde as próprias entranhas. Não desse gigante de obsessões e eficiências impessoais, tão paradoxalmente ciosa da aparência e destruidora de si mesma; esquizofrênica, coitadinha. Uma cidade que agoniza nos seus butiquins e padarias, nas suas vendas e freguesias, de Ó a Z. Com seus personagens reais, vivos (sim!) e dignos do nosso respeito, da nossa audiência.

Assim ele foi. Na verdade, o vi uma única vez, assim "cos' óio". Mas soube dele demais, pela boca de seu neto, camarada do peito, madeira de lei daquela cepa bem veiada, doçura sem bestagem, fibra sem arrogância. Apaixonado pelo velho, pudera: personagem daqueles que não se fabrica, respeitado pela vizinhança - rei da Cachucha! - mais conhecido que nota de um, bom tomador, gozador da vida, pai de família e trabalhador, na medida exata que faz dessa gente de verdade o arreio que não deixa esta terra de Piratininga descer de vez a ladeira.

Esta besta que vos escreve mil e uma vezes ficou de tomar umas cachaças com o "Vô", lá na Parada Pinto, no mesmo butiquim de anos, mas por qualquer coisa se enrolava e não aparecia. Um belo dia, no Jaçanã, não teve jeito: batendo o bolão dos craques, o véio Laurindo ia ali, devagar, tomando as suas, soltando das suas, exercendo aquele estágio da convivência que a sabidice ensina a não deixar passar. Assim como a gente vai tentando não deixar passar a bola que nos foi enfiada, passe milimétrico entre os zagueiros. E vai vendo que, nem que a gente não queira, os passantes vão nos colocando na cara do gol, graças a Deus!

Na devoção do meu parceirinho Fernando pelo seu vô Laurindo reconheço minha paixão derramada pelos meus velhos, minha dependência que hoje é saudade, herança e "responsa" cotidianas. Vendo o quanto eles vivem e revivem dia-a-dia em nós, naquele encontro marcado de gerações do qual nos falam o Benjamin e o Sabino. E num butiquim improvável que é ao mesmo tempo na Cachoeirinha e no Bom Retiro e na Santa Ifigênia é que vou me reconciliar com a cidade que me escorre pelas chagas, entre um trago de cachaça, uma conversa na moça e um tapa na orelha de um desavisado qualquer.

Pois é. O "camarada Laurindo", como o chamaram Wilson Batista e Haroldo Lobo (acho que ele não ia achar ruim e o neto certamente vai gostar) num outro samba, foi convocado semana passada pro ensaio lá do G.R.E.S Unidos do Firmamento. E com tanta gente boa reunida pro furdunço, não seria logo ele a fazer forfait, né? E por esses mistérios costurados por uma outra História, enquanto a gente fica por aqui se segurando, negando o que nos é negado, foi pra tendinha do terreiro celestial tomar uma com o vô Amigo, enquanto o vô Dante metia uma sete na caçapa do fundo. Saravá!

2 comentários:

  1. Belo texto Szegeri!

    Também já ouvi muitas histórias desse "Vô", que não conheci. A partida de gente assim, deixa o mundo carente de sabedoria, que é uma palavra que significa muito mais do que conhecimento, é aquele saber do vivido, pro Guimarães Rosa, uma "sabença das coisas". E o diabo é que quando a gente vai falando assim do "Vô" dos outros, acabamos pensando nos nossos, ê vida ...

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  2. Porra, cumpadre. Eu que só fui ler agora seu belíssimo texto, te agradeço com o coração na mão e um travo na garganta.

    Eu que fui - e serei sempre - o neto e discípulo do "vô" em questão, não conseguiria prestar homenagem tão bonita. Bonita pela singeleza que o que é simples traz. Ele foi um simples. Mas "o belo simples será", já diria o nosso também simples, e certeiro, João.

    Um abraço de amizade e agradecimento.

    Fernando Borgonovi

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