terça-feira, 20 de março de 2007

Pára, que eu quero descer! (II)


Contei semana passada meu encontro com o bêbado do ônibus, em plena Avenida Paulista.

Centenas de cartas e mensagens chegaram à redação do Só dói nestes últimos dias. Impressionante como são ubíquas estas entidades do imaginário coletivo brasileiro. Falta, aliás, quem, despreocupado com o aparente paradoxo, seriamente se proponha a estudar o corpus mítico composto pelo vasto anedotário brasileiro - isso, é claro, enquanto a tropa de choque colonizada do politicamente correto, a mesma que quer acabar com o modo próprio de existir do brasileiro, não conseguir abolir a piada. Porque, salvo engano, nenhum outro povo cultiva, como nós, o gosto pelo inusitado, pelo desconsertante, pelo chiste e pela galhofa. Os personagens que habitam esse universo – o bêbado do ônibus, o português, o louco, a bichinha – com suas venturas e desventuras falam muito de nós e sobretudo da auto-imagem que pintamos. Dos diversos relatos recebidos, nenhum melhor do que o que segue. A entidade, agora, não é mais o bêbado, é a bichinha do ônibus. Acompanhem.

Estava meu amigo num final de bloco de carnaval, ali entre os velhos armazéns da Zona Portuária feitos de barracões; a turba reunida dava cabo do chope oferecido por conta do Abreu. A morena era um pedaço e não parava mesmo de olhar. Ria, até. Superou a insegurança adolescente e chegou junto num momento em que ela deu um tempo da turminha que até então não descolara. Sorridente, a beldade foi-se desculpando:

- Você pode até me telefonar – estendendo o papelzinho adrede preparado. Mas não posso sair com você hoje daqui. Meu amigo ali, ó – e apontou o mulato muito esguio que já lhes acenava, mãozinha desmunhecada à altura do rosto, cotovelo apoiado sobre a outra; a faixa vermelha repuxando a carapinha pro alto fazia sua testa asustadoramente comprida, escorrendo suor – tá apaixonado por você!

“Era o que me faltava”. Tentou ainda superar a incomodidade, mas ainda era um pouco mais do que sua recém-não-meninice podia dar conta. Tentou se convencer de que o telefone descolado era mais que nada, a noite não fora perdida de todo, e foi-se esperar o ônibus na Leopoldina. Madrugada alta, condução demorada, um tanto afogado entre chopes e pensamentos, só deu conta da figura que o seguia quando a distância já impedia uma manobra evasiva eficaz. Ficou ali, entre incrédulo e conformado, aturando o papo furado que, não demorou, já se transmutava em derramadas declarações de amor. Malgrado o incômodo, a semi-frustração e a cediça incapacidade juvenil para lidar com o inusitado, não queria também destroçar o coração da donzela, ora essa! O único ímpeto que não conteve foi quando viu a figura subir no coletivo, atrás de si:

- Ah, não! Tu tá te sacanagem! Tu num mora na Ilha do Governador nem por um caralho!

Pra quê... O carrro já um tanto cheio, sentou-se propositadamente num assento já meio-ocupado, sacomé?, pra evitar maiores intimidades. A bicha se postou umas quatro fileiras atrás e mandou, às lágrimas:

- Olha você me desprezou à noite inteira! Não tem importância, viu? Mesmo assim, vou cantar uma música par você nunca mais se esquecer de mim...

Pressentiu o pior, quis duvidar do realismo pouco crível da situação, mas foi beliscado de volta ao seu pesadelo, a voz afetada, entre palminhas:

Nada do que foi [clap] será
De novo [clap] do jeito que já foi
[clap] um dia
Tudo passa [clap], tudo sempre
[clap] passará...

E como praga de bichinha pega mil vezes mais que de cigano (só perde pra de mãe), não é que até hoje, homem feitíssimo, ao ouvir qualquer gaiato entabular o infalível hit heraclitiano de revéillon, depara nítidas na lembrança as fuças impávidas do sujeito, com o criouléo em delírio a apavorá-lo:

- Malvado, destruidor de coração!

- Fez mal, agora casa!

- Não embrulha, não, come enquanto tá quentinha!

Um troço.

4 comentários:

  1. Fernandão...
    Não poderia deixar incólume tal postagem, que faz juz ao nome deste blog - Só dói quando eu Rio... eu com a gripe tardia que vem com as chuvas de verão, cabeça zunindo, soltei gargalhadas ao som particular e singelo das palminhas tão bem marcadas pelo [clap] [clap].
    Aproveito pra pedir que nos perdoe (a mim e ao Vandré) por ainda não termos visitado a pequena Rosa, que a esta altura já deve estar bem grandinha. Vou pedir pra ele combinar algo contigo.
    Grande beijo

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  2. Hehehehe. Que beleza. Rapaz, se for então praga de bichinha de candomblé, a coisa é muito pior!
    Abração

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  3. Muito boa! Já vi coisa parecida no metrô, só que a música era "diz pra eu ficar muda (clap), faz cara de mistério (clap), tira essa bermuda (clap), que eu quero você sério (clap)... Abraço, JP.

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  4. Pra vc ver, JP, como é fato de que as entidades andam se manifestando por aí. Só não vê quem não quer.

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