segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008
O perigo mora além
A época do Carnaval é – e sempre foi – propícia para reacender na meia dúzia de sempre os ânimos detratores das coisas do Brasil. Parece que essa gente pega carona na licenciosidade diáfana do período e, despida de maiores pudores, põe-se a destilar às claras seu ódio noutrora disfarçado pelo que é mais próprio do nosso povo. Antes, o mais comum era o “é por isso que esse país não vai pra frente”, de um lado, “ópio do povo” de outro. Hoje, está mais para “por que é que para ser brasileiro eu preciso gostar de Carnaval, torcer pela Seleção Brasileira?”, e por aí vai. O fato, é que isso não é de hoje e sempre teve um papel muito específico na construção simbólica do discurso e da prática da elite que se nutre do sangue do povo, como já escrevi outro dia: a rejeição dos padrões da cultura que aqui se formou, da forma de ser, falar, comer, dançar, rezar que se forjou a partir do encontro das tradições e saberes que vieram a dar nestas bandas sempre foi necessária para estabelecer uma divisão nítida entre o “nós” e o “eles”; para garantir privilégios, para manter a estrutura hierárquica e engessada do nosso ser social, para aplacar consciências até.
É claro que essas falas quando assim desavergonhadas de maiores pudores nos acentuam a urgência por que clamam as ruas deste país. Os mais inflamados, como meus manos Edu Goldenberg, Arthur Favela Tirone e Bruno Ribeiro, estão sempre a postos para descarregar suas poderosas baterias em defesa dos nossos brios, com as quais faço sempre coro. Mas eu que sou mais da turma de mestre Luiz Antônio Simas e não sou de acender nem cotoco de vela roubado pra defunto que não se dê ao respeito, acho mesmo que Luís da Câmara Cascudo, Villa-Lobos, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro e alguns outros tantos brasileiros fundamentais já deram conta dessa gente. Nossa missão hoje, guardadas as devidíssimas, não é mais dura nem menos inglória, mas talvez mais sutil. Hoje há gente muito, mas muito mais perigosa a ser combatida.
São muito mais perigosos os que alardeiam seu amor pelo Carnaval, mas não fazem mais do que se apropriar do espaço da festa para promover seus interesses, vaidades e idiossincrasias rastaqüeras; as empresas que montam camarotes milionários cheios de “celebridades”, regados a bebida e comida que o povo não sonha experimentar, mas são incapazes de desembolsar cinco mil reais para financiar uma festa de rua, gratuita, para população brincar e ouvir a melhor música brasileira. São terrivelmente mais nocivos aqueles que defendem a presença da “música brasileira” nas rádios e televisões, mas não fazem senão entupir a população com suas porcarias enlatadas da pior qualidade, mantendo o esquema viciado de produção e divulgação da mesmice auto-replicante. Os que enaltecem as qualidades da “comida de boteco”, mas nada mais fazem que reproduzir bisonhos simulacros onde a cultura genuína das ruas e esquinas só entra após a devida e impiedosa pasteurização, livrando-a, juntamente com gorduras e carboidratos, do que tem de criativa e libertadora, informal e democrática. Os que se esgoelam “torcendo” pelo “Brasil-sil-sil-sil-sil”, mas ajudam a alimentar o esquema imoral do monopólio da informação e do entretenimento de massa, a enaltecer o “profissionalismo” que subjuga os interesses de uma nação sofrida e carente de alegria ao interesse desmedido de meia dúzia de modernos maganos e seus tumbeiros virtuais. Os que fazem do “nacionalismo” uma moda como todas as outras, a reproduzir os mesmíssimos padrões de alienação, submissão e opressão, perda de individualidade e liberdade.
Está na hora de metermos em seus devidos lugares aqueles que usurpam o nome do Brasil, a cultura de seu povo. Porque só é efetivamente nacional o que reafirma não só a singularidade do modo brasileiro de falar, dançar, cantar, comer, trabalhar, rezar, mas o direito desta singularidade se preservar, como condição da nossa existência livre enquanto povo e como indivíduos. Só serão populares de fato as práticas que permitam uma forma de existência despida das predeterminações formalizadas, onde só há espaço para a aceitação passiva, para a interação pré-ordenada; que manifestem o poder dos indivíduos de criar e recriar constantemente suas formas de existência, seus espaços de mediação e interação, sua maneira de ser e estar no mundo, junto com seus semelhantes. Só será popular o que reafirma a especificidade de uma cultura segundo a teia de ligações históricas que a torna tributária de determinadas tradições. Não serão nem nacionais nem populares, no sentido libertário e emancipador que queremos ressaltar, as práticas que reiterem as lógicas utilitaristas regidas pelos princípios da eficiência e da acumulação. Não à eficiência! Sim ao encantamento, à sutileza, à possibilidade! Não à acumulação! Sim ao compartilhamento do conhecimento e da experiência que libertam e emancipam o ser humano.
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Disse tudo! Meus respeitos, hoje e sempre!
ResponderExcluirFernandão, permita-me traçar um paralelo com o que eu li no seguinte link:
ResponderExcluirhttp://forzapalestra.blogspot.com/2008/01/o-esporte-que-vendeu-sua-alma.html
É um achado do amigo meu e de FH, Rodrigo Barneschi, que mostra o processo de profissionalização do futebol inglês.
Veja como em qualquer lugar do mundo, as coisas se repetem na exatidão, variando apenas o bem que é usurpado do povo.
Ah, a globalização...
Abraços!
Belo texto, mesmo, Cráudio. Cito um trecho:
ResponderExcluir“Acontece que o “Man U”, como é conhecido o time, tem dezenas de milhões de torcedores na China, no Japão, na Coréia. Ou seja, não é mais um clube, é uma multinacional do entretenimento esportivo. Vencidos, mas não derrotados, os torcedores ingleses do Manchester viraram as costas para o clube e prometeram nunca mais voltar – e nem assistir aos seus jogos pela televisão. Em 2005, criaram um novo clube, o FC United of Manchester, e começaram tudo de novo, a partir da décima divisão.”
Alguma semelhança com as escolas de samba?
Mano Bruno, esqueci de dizer: esse texto é dedicado a você!
ResponderExcluirPerfeito, meu velho.
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