sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Paramédico


Adorava se vestir de branco. Mulato alinhado, meia-idade, sempre que a ocasião pedia um aprumo no visual, metia logo a fatiota completa, impecável, reluzente de sabão omo, do pisante à camisa de gola engomada. E a sexta-feira, então, essa era sagrada, que há de se respeitar certas coisas, que que há? Por essas coincidências da vida, morava numa travessinha daquela avenida conhecida por concentrar hospitais, clínicas, laboratórios de análises, toda a parafernalha médica. Já viram?

Entrava no táxi, o chofer:

- Troca de plantão, doutor?

No começo, tratava logo de ir esclarecendo, justificando o gosto, sexta-feira e coisa e tal. Com o tempo, foi cansando de muita explicação.

- Nessa época de inverno aumenta muito o movimento, né doutor?

Meneava a cabeça, sorria, conformado. Se estivesse de muito bom humor, ou quando botava pra dentro aquela caracu com ovo logo no café da manhã, arriscava até o seu sarrinho.

- Minha mulher tem uma dor no joelho que não sara, doutor.

- Bolsa de gelo, três vezes por dia.

- Tou que não me agüento da gastrite...

- Omeprazol 10 pela manhã.

Dia desses, de poucos amigos, atrasado nos seus quarenta minutos tradicionais, sem caracu pra amaciar, o chofer:

- Pra onde, doutor?

- Metrô.

- E essa gripe do porco, hein doutor?

- Pra você ver...

- Eu acho que a culpa de tudo é dessa pouca-vergonha, doutor.

-  ...

-  Hoje em dia o mundo tá cheio de abominação, valha-me Deus! Homem com homem, mulher com mulher, entra cachorro, cabra, agora até porco!

-  Olha, eu não... 

-Diga, doutor, o que que eu faço agora, que não tenho nada a ver com a porcaria toda? Máscara, vacina, como é que eu defendo as minhas crianças, doutor? 

- Não sou médico...

-  Médico, enfermeiro, tudo a mesma porcaria também. Até estagiário eu canso de pegar. Não é possível que ninguém vá me ajudar? 

- É que hoje é sexta...

- Sei, sei, a semana já era, né? Fim de semaninha só na vida boa... Meio-dia de sexta e já tá com a vida ganha! Que mamata, hein?

 - Olha aqui, meu chapa...


- Mercenário, como todos. É nessas que vai embora o dinheiro do povo.


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Confusão total no Distrito, três flagrantes pra lavrar, todo mundo se acotovelando na ante-sala da “otoridade”, chofer, passageiro, polícia, testemunha, o cara que bateu atrás. Vem o escrivão:

- Que é que há por aqui?


-  Tava na avenida, o cara do táxi meteu o pé no breque...

-  Meti o pé, não, esse ignorante é que quis meter a mão na minha cara....

-  Eu vi tudo, o doutor aí enfiou a taboca na orelha do motora...

-  Enfiou, não, tentou...

- Onde já se viu um médico...


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Cinco horas depois. A calma de volta ao plantão.

- Ôoooo, Denilson... Vai buscar o tal médico que enfiou o pé no peito da testemunha.





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