terça-feira, 22 de agosto de 2006

Cultura de todos os dias

Hoje é dia 22 de agosto, dia de reunir os amigos, contar histórias velhas, botar novidades em dia, como fazemos nós, velhos diretores do outrora querido Centro Acadêmico 22 de Agosto, religiosamente há mais de quinze anos. Dia também que alguém resolveu designar como o dia nacional do folclore. Abro há pouco, por acaso, a página inicial do portal UOL e logo de cara deparo a pérola: "Hoje é dia: celebre tudo o que caracteriza a cultura brasileira". Não poderia haver, com certeza, retrato mais fiel e mais preocupante dos sombrios tempos atravessados por essa nação chamada Brasil.

Fez-se razoavelmente disseminada a distinção o que se convencionou chamar "folclore" e o que se denomina "cultura popular". Não que seja de rigor, mas é útil para o que aqui queremos apresentar. Grosso modo, "folclore" é museu, ou seja, uma tentativa de se preservar um acervo a que se atribui importância histórica e de que, de outra forma, estaria fadado à degeneração. De importância inegável, é certo que se destina à preservação das coisas que já não está encampadas no dia-a-dia, por isso mesmo ameaçadas de extinção caso não se promova uma intervenção direcionada. Essa disposição consciente de preservação tem, portanto, pressupostos subjetivos e objetivos que determinam francamente a dimensão do "corte" que se vai operar na realidade representada, de modo que a referência seja sempre parcial, indireta e, de certo ponto de vista, dirigida.

"Cultura", de outra parte, é algo vivo, que exprime um jeito particular de ser e estar no mundo e de agir sobre ele. No falar, no cantar, nas histórias, na preparação dos alimentos, nos modos de morar, vestir e trabalhar, na sabedoria conselheira ou curativa, em todos os aspectos do fazer humano em que se pode revelar um determinado modo que se pode mais ou menos delinear como peculiar a um determinado grupamento humano. Esses modos de ser e fazer ao mesmo tempo determinam, por um lado, as categorias através das quais os indivíduos interagem com o mundo ao seu redor e, por outro, representam o produto coletivizado dessas interações. O campo da cultura, assim, é onde se opera magistralmente a interação dialética entre indivíduo e coletividade, de um lado, e entre passado, precisamente enquanto conjunto das realizações humanas conquistadas coletivamente, e presente, entendido como arena privilegiada aberta às novas contribuições, constantemente reinterpretada e recriada. A complexidade e a historicidade arraigadas são, pois, marcas profundas e fundamentais. Não há lugar, aqui (a não ser para as interpretações científicas, mas aí estaremos num outro plano do fazer cultural, ou "metacultural"), para as univocidades, para os cortes representativos, para as imobilizações de qualquer ordem, para as ações orientadas a finalidades a priori determinadas, sob pena de negação dessa dinâmica e dessa dialética essencial.

Percebemos, assim, a impropriedade essencial da recomendação de um dos maiores grupos da comunicação privada no país: "celebre tudo o que caracteriza a cultura brasileira". Leia-se, em outras palavras: hoje é dia de lembrar do jeito brasileiro de fazer as coisas, se der um tempinho entre uma passada no xópim, uma lanche no maquidônaldi e um filme da bloquimbuster. No momento em que eu tenho que parar o fluxo do meu dia-a-dia para pensar nas coisas que representam o Brasil, é porque essas coisas já morreram para mim há muito tempo, porque esse "brasil" só faz sentido como uma reminiscência distante que se urge preservar pelo valor histórico, quiçá sentimental. Se comer uma feijoada, ouvir um samba, ir ao futebol ou entrar num butiquim para tomar uma cerveja transformarem-se num ato de grande solenidade em homenagem ao modo brasileiro de comer, beber, cantar, então é porque eles já estarão mortos, farão parte de um passado que só tem sentido para mim como remissão historicista.

Não quero dizer com isto, absolutamente, que não sejam necessárias ações para se preservar o espaço privilegiado da manifestação da cultura popular. Muito pelo contrário, pois estamos num cenário de guerra onde as forças da padronização, do pensamento único, do estabelecimento de padrões de sociabilidade externamente em relação aos indivíduos singularmente considerados, quotidianamente envidam esforços e ações para varrer todos os vestígios de possibilidade de exercício de um fazer singular, criativo, que não aceita a pré-determinação dos modos de vida tão caros à planificação capitalista e que se constituem, é fácil perceber, no domínio por excelência da liberdade. Nessa batalha, os domínios da cultura constituídos de estruturas simbólicas delicadas são presas fáceis para a sanha predadora da univocidade anti-cultural a serviço da lógica da acumulação do capital. As intervenções para equilibrar a batalha, então, são por demais necessárias. Apenas, há que se ter sempre presente a preocupação de não imobilizar a dinâmica complexa dos processos culturais sob pretexto de preservá-los, o que equivaleria a embalsamar o fazer cultural vivo nos folclóricos museus de cera.

Nenhum comentário:

Postar um comentário