sexta-feira, 21 de julho de 2006

Canto de amor à Bahia

Jorge Amado




















Se gostas do teu marido,
na minha frente não passes...


canta o marinheiro no cais, próximo ao Mercado, em cuja calçada, como lâminas de aço, brilham os peixes ao sol. Ah! Se amas a tua cidade, se tua cidade é o Rio, Paris, Londres, ou Leningrado, Veneza de canais ou Praga de velhas torres, Pequim ou Viena, não deves passar por essa cidade da Bahia, porque um novo amor encherá teu coração. Esplêndida cidade, noiva do mar, enhora do mistério e da beleza. Nesse mar habita Yemanjá, a dos cinco nomes, e o misterioso chamado dos atabaques ressoa nas noites dos casarões sob a lua, das igrejas de ouro, das ladeiras grávidas de passado. O mistério e a beleza da cidade te envolverão, darás teu coração para jamais; jamais poderás esquecer a Bahia, o óleo de sua beleza densa te banhou, sua mágica realidade te perturbou para sempre.

No alto da montanha, na Praça Castro Alves, o poeta vigilante no monumento estende a mão libertária e aponta o mar embaixo, de um traiçoeiro azul subitamente verde, onde as velas dos saveiros se abrem ao vento numa aventura renovada cada manhã. Plantado em meio às águas, o negro forte antigo dorme um sono centenário; há muito se incorporou à paisagem, é paisagem ele mesmo e não praça de guerra. Todas as ladeiras descem para o mar de manhã cedo, mas à noite todas elas se dirigem aos candomblés, atendendo ao insistente bater dos atabaques, aos cantos nagôs saudando os santos. Mas a manhã é a hora do mar no pequeno cais do Mercado iluminado de mangas, abacaxis, abios, cajás, cajaranas, cajus, verdes melancias e das estrelas de sangue das pitangas; no cais da Feira de Água dos Meninos, onde saveiros depositam bilhas, moringas, pratos desenhados e cavalgadas de barro, bois mansos e cavalos azuis, tudo construído pelas mãos ingênuas e sábias de anônimos artesãos: na praia de Itapuão, de onde partem as jangadas de Caymmi, com Pedro Ferreira e Bento para enfrenatar “lá fora os pés-de-vento”. A manhã é a hora do mar quando os búzios dos saviros despertam Janaína cansada da noite na macumba, das dansas rituais, e ela sai de sua morada no Dique e se espalha sobre o mar, dona das águas.

E uma beleza antiga, sólida e envolvente a dessa cidade. Não nasceu de repente, foi construída lentamente e está amassada no sangue dos escravos. No Largo do Pelourinho eles eram castigados, e das janelas dos sobradões imensos as frágeis iaiás espiavam os corpos nus cortados à chibata. Almas penadas habitam os casarões e ficam vagando pelas escadas sujas. Nos sombrios corredores ouvem-se os ais de dor dos negros injustiçados. Libertam-se pela noite de mistérios e sobem pelas ladeiras clamando vingança. É uma beleza que escorre como óleo do casario e das pedras negras de certas ruas, os nomes como poemas: Rua dos Quinze Mistérios, Ladeira do Tabuão, Rua do Cabeça, Largo das Sete Portas, Mirante dos Aflitos, que escorre das igrejas dos santos negros, esculpidos em madeira e ferro, Xangô, Oxóssi, Ogum, Exu amedrontador, a bravia Iansã e o tétrico Omolu, que comanda a varíola. Dessa arte anônima dos santeiros negros nasceu a moderna escultura baiana, Mário Cravo, Agnalso Mirabeau. Em meio à promiscuidade da mais completa pobreza, num velho casarão, surge, inesperada, a riqueza de antigos azulejos, os poucos que ainda não foram levados pelos ricos de outras terras. Como uma figura antiga, a baiana de perfeito colo desabrochado nas rendas da bata, sentada em frente ao tabuleiro de acarajé e abará, de moqueca de aratu, de cocada e beijus. Ela é como a rainha da cidade, essa pobre negra que ganha duramente a vida. De majestosa beleza, de fala mansa e coração de bondade, riso aberto e claro, suas mão criam cada dia a arte do vatapá e do caruru, do efó e do xinxim de galinha. O bordado dos papéis que cobrem os tabuleiros recorda o papel cortado da Polônia ou da China na pureza do desenho.

O homem é imaginoso e cordial nessa terra de pimenta e brisa do mar, de mariscos e água de coco. Ele sabe as palavras sonoras e por vezes difíceis, sua fala é larga, sua voz cantante. Terra do sangue misturado, mestiça com todos os coloridos do moreno, todas as nuanças entre o branco e o negro. Negras como rainhas de tribos desaparecidas, mulatas de cintura de vespa e onduloso andar, brancas desfalecendo ao falar, nasceram todas de Moema, a que de amor morreu no mar quando a cidade apenas começara. Os pintores vêm de longe para descobrí-las, para recriar as paisagens, as casas e ruas que o homem construiu. Vêm o pintor Pancetti para a praia, a jangada e o mar; o alemão Hansen para o Bar São Miguel, de tímidas rameiras inocentes; outro alemão, Udo, para os arredores do Mercado, Rescala para as igrejas e o casario, e Carybé para a cidade inteira, para nunca mais sair. Viraram baianos, todos eles e para todo o sempre. E por mais longe que estejam, levam consigo o mistério e a beleza da Bahia.

Nem tuo é poesia apenas, e o drama explode nas ruas em enxames de crianças famintas, na multiplicação dos mendigos, na fome em terra tão rica. Nem tudo é grande tampouco, e certos homens, aventureiros vindos de todas as partes, tentam reduzir essa beleza negra e pesada, densa como óleo e profunda de mistério a proporções turísticas, e tudo fica pequeno e triste quando tocado por tais mãos. Existe uma permanente e criminosa tentativa de deformar a beleza da Bahia, sua dramática beleza centenária.

À noite o mistério aumenta. Das encruzilhadas escuras chega o eco da orquestra dos atabaques, agogõs, chocalhos, cabaças, chamando os filhos e filhas-de-santo para a festa da macumba. No céu de estrelas a lua amarela se derrama sobre o mar. Os santos descem nos terreiros, vindos das florestas da África. Os homens vão pedir saúde, dinheiro, longa vida e sobretudo amor, fidelidade de inconstantes corações. O sangue dos galos e dos bodes se derrama sobre Exu, para que ele não venha perturbar a festa dos homens. Nos cantos de rua, feitiços são colocados, afastemos nossos passos desses perigos. Na noite do mar sobe a canção do marinheiro:


Se gostas do teu marido
por que vens na minha frente
tuas ancas rebolar...?


Junto aos tabuleiros das baianas se acomodam os fregueses mais habituais para saborear mingau de puba, de milho e tapioca, sarapatel, bolo de aipim, o que há de mais gostoso para comer. Dorme a cidade baixa, menos o cais; movimenta-se a cidade alta. A música domina os homens, o ritmo negro dos batuques vem de recantos perdidos e atravessa as ruas e avenidas, acompanha os ônibus e automóveis, bate no sabgue de cada habitante. À noite o mistério aumenta e a beleza da Bahia se cobre de luar.

Essa é a minha cidade e em todas as muitas cidades que andei, eu a revi num detalhe de beleza. Nenhuma assim, tão densa e oleosa. Nenhma assim, para viver. Nela quero morrer, quando chegar o dia. Para sentir a brisa que vem do mar, ouvir à noite os atabaques e as canções dos marinheiros. A Cidade da Bahia, plantada sobre a montanha, penetrada de mar.

(in Bahia de todos os Santos: guia de ruas e mistérios, Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 61-65. Ilustração de Carlos Bastos)

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