quinta-feira, 5 de maio de 2005

A César o que é de César


Quem não é advogado dificilmente pode saber que existe na Ordem que fiscaliza e normatiza a profissão uma espécie de "comissão de desagravos", encarregada de julgar casos onde advogados no exercício de suas prerrogativas profissionais previstas em lei são desrespeitados por juízes, promotores, delegados, autoridades em geral. Se o pedido de desagravo é julgado procedente, acontece uma solenidade na qual o violador é espinafrado publicamente e a categoria, simbolicamente, presta sua solidariedade e apoio ao desacatado.

Foi exatamente essa a dimensão da cerimônia que presenciamos eu e meus bons amigos Augusto Diniz e Capitão Léo Gola, num Bar do Giba lotado e atônito. Meu bom irmão Eduardo Goldenberg, de passagem por São Paulo, foi nos encontrar para matar saudades e entornar umas. Ao chegar ao bar, seus olhos não eram os de sempre. No sorrizinho mal contido, canto de boca, residia uma satisfação íntima cujo motivo eu não podia adivinhar. Antes de me cumprimentar, foi mandando:

- Irmão, eis que o dia é chegado!

Não consegui de imediato perscrutar a profundidade da frase escatológica. Tentei, mas o homem só dizia, abraçado na pasta de trabalho como um menino à bola nova ganhada de Natal:

- Precisei viver pra ver esse dia. E você tinha que estar comigo.

Edu seguiu na bebedeira algo misterioso e mais taciturno do que de hábito. De vez em quando seus olhos rebrilhavam e deixava escapar entre muxoxos:

- Vamos vingá-lo...

- Não perdeu por esperar...

- Finalmente desentalaremos...

E por aí seguia. E o homem agarrado na tal da pasta. Uma certa hora, mais ou menos entre a quarta e quinta rodada de Buchannan's que entremeavam as Brahmas semi-congeladas, abre a pasta, tira dela um velho LP (os mais jovens podem ir ao dicionário ou ao Google, que eu não tenho saco de explicar) e se levanta em tom solene, mãos ao alto segurando o disco acima da cabeça, autêntico Carlos Alberto com sua Julles Rimet particular:

- Senhores e senhoras, paguei por isso que vocês vêem a exata medida da obra e do caráter desse pulha! Um mísero real num sebo fedorento da Boca do Lixo é o que ele vale!

Incontinenti, possuído por uma luminosidade transcendentental, fumegando pelos olhos, meu bom irmão Edu arrebenta o disco sobre a coxa, que se espatifa em estilhaços. Os presentes se levantam. Eu, a essa altura já entendendo perfeitamente o ritual, imediatamente ateio fogo à capa que flameja como uma sarsa no deserto. Garçonetes em polvorosa, o povo da cozinha saindo pra assistir a imolação. Capitão já sapateava sobre os destroços espalhados pelo chão e Augusto golpeava virulentamente a foto do encarte com uma tesoura cega, enquanto a patuléia urrava em delírio:

- Biltre! Patife! Safado!

Súbito, alguém se levantou de uma mesa do fundo, arrancou a foto do Palocci do jornal e a esmigalhou freneticamente, ao que outro gritava: "Pisa no Lula, pisa no Lula". Não tenho bem certeza, mas parece que alguém chegou a gritar: "o Severino é meu!" E foi um tal de tacar fogo em foto, pisotear aliança, arrancar uniforme, que o bar foi tomado de um espírito libertário de catarse coletiva. Edu, lágrimas de ira escorrendo pelo rosto, grunhia entre os dentes semicerrados "por você, Aldir, por você...", enquanto destroçava os últimos pedaços. E foram aplausos, apupos, uivos coletivos quando encerrávamos a cerimônia, abraçados, chorando, sensação reconfortante do dever cumprido.

A vingança, amigos, é um prato frio comido pela História. E não custa mais que um mísero real.

[para Aldir Blanc]

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