sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Voltando o troco - Parte final

Dr. Sebastião ia chegando com o carrão importado, vidros “filmados”, e já no que contornou a rotatória viu a muvuca na porta do condomínio, o mais moderno daquelas bandas de Deltaville XIV:

-Vai lá, Djalma, ver que perereco é esse, que eu tou atrasado pra teleconferência.

O negrão Djalma voltou branco. A confusão era imensa, uma montanha de gente querendo entrar, a segurança segurando, a coisa já estava no nível do bate-boca e os ânimos se esquentando.

- Dotô, o negócio tá feio. Tá lá aquele homem da Tv, o Celio Burroumano, ele tá aprontando o maior banzé. Eu não queria dizer, não, mas eles querem falar é com o Sinhô...

-Tá maluco, Djalma? O que é que esses caras vão querer comigo? Sou um empresário de respeito, ora...

- Sei não, dotô, mas achava melhor a gente voltar só mais tarde.

- Que qué isso, ô Djalma? Não vou entrar na minha casa, agora? Sem chance, meu camarada. Pode pôr a geringonça pra acelerar.

O resignado Djalma fez o que o patrão mandou. E até que eles entraram sem maiores problemas, que o vidro preto não deixava ver dentro nem se tivesse pegando fogo. Mas foi pisar dentro de casa que o Dr. Sebastião não teve mesmo mais sossego. Ligava síndico, ligava vizinho, ligava repórter. Até aquele vereador que lhe havia quebrado o galho no episódio de uns terreninhos invadidos ali na área da sua jurisdição telefonou pra pedir que ele atendesse o tal apresentador. “Afinal, o senhor sabe, o homem agora é o deputado mais votado. E do meu partido! O senhor entende que a gente tem alguns compromissos...” Não teve jeito. Ficou acertado que seria permitida a sua entrada acompanhado de dois clientes queixosos do tratamento que vinham obtendo da Bica D'Água Seguros. E o câmera, naturalmente. Só pra dialogar, ninguém ali queria confusão, que afinal de contas é conversando que a gente se entende. E assim foi feito, ao vivo, diante de milhares e milhares de espectadores ferrados na audiência.

- Seu Jonahtan, qual a reclamação que o senhor tem a dirigir contra a empresa dirigida aí pelo Seu Sebatião?

- Olha, Seu Céllio, o senhor sabe como funciona esse negócio, num sabe? Tem que ser na base da confiança. Ou então não dá. Igual médico, padre, garçom de butiquim...

- Mas, afinal, Seu Jonahtan, o telespectador quer saber o que está havendo na realidade.

- Olha, no início, mil maravilhas. A gente pagava a mensalidade e adeus preocupações, cervejinha no butiquim até meia-noite, portão sem cadeado, carro parado de janela aberta. O cachorro morreu de velhinho e eu nem quis outro, que as meninas já tão grandes e o senhor sabe o que é chegar em casa meia-noite com umas três além da faixa de contenção e dar com aqueles olhos pidões clamando por uma voltinha pra aliviar as necessidades? Até a patroa andava mais relaxada, ficava no carteado na casa da vizinha, nem aparecia mais no Vira Três pra me resgatar. Até o dia em que a minha sogra foi roubada na esquina de casa. Preencheu no site o formulário de reclamação. Três vezes. No telefone, após meia hora, disque dois, disque nove, disque quatro, desistiu. Quis fazer a reclamação pessoalmente, mas em nenhum lugar descobria o endereço da sede da empresa.

- Seu Jonahtan, o senhor estava em dia com o pagamento das suas mensalidades?

- Mais que em dia, seu Célio, a gente pagava até adiantado, que isso aí pra gente era mais sagrado que qualquer coisa. Tenho três filhas moças, Deus o livre! Só uma vez a gente ficou uns mesinhos no atraso, naquele ano que eu perdi o emprego, mais foi a coisa normalizar que a gente não deixou de honrar uma mensalidadezinha. Ando até com o boleto pago na carteira, que é pra qualquer eventualidade.

- O senhor tem alguma coisa a dizer S. Sebastião?

- Olha, eu não posso acompanhar pessoalmente tudo o que se passa no atendimento aos nossos clientes, mas tenho certeza que o problema aí do cidadão deve estar relacionado a uma sobrecarga dos nossos operadores, que pode ser resolvida muito facilmente. Eu pessoalmente vou encaminhar o caso dele.

- Mas e quanto à sogra assaltada?

- Olha, seu deputado, tenho certeza absoluta que deve estar havendo algum engano. Na nossa área a cobertura é total, não existem pontos cegos. Não tem roubo na nossa jurisdição. Mas, assim mesmo, como o caso é especial, pelo trabalho todo que o amizade aí teve com o caso, eu mesmo já ordenarei o ressarcimento imediato de todos os prejuízos declarados e vou verificar o que aconteceu no dia do incidente.

- Está bem pro Senhor?

- Se é assim igual ao que ele tá falando...

- Estando bom para as duas partes, Célio Burroumano pro Jornal Regional.

Mas, contrariamente ao que na hora imaginara, tudo o que não ficou foi bom pro lado do nosso segurador popular. Aquele caso morreu ali mesmo. Sebastião apurou que a desgraçada da velha foi roubada mesmo uma rua pra baixo da linha delimitadora da área de cobertura, que é que ele podia fazer? Mas pra evitar essa gritaria na porta de casa, essa algazarra que o infeliz do apresentador fazia, achou melhor não discutir e pagar o preço da tranqüilidade. Mas qual o quê... Dali pra frente foi um tal de reclamação no rádio, na tevê, o tal do Burroumano marcando em cima que até o vereador se aborreceu (que afinal, devia satisfação também aos seus clientes...), carta pro jornal. Uma delas começava assim: “Eu e minha esposa, cidadãos de bem e pagadores dos nossos impostos, estamos indignados com o tratamento dado pela seguradora Bica D'Água...” Um reclamava do site, o outro, do telefone. Até ação na justiça teve pra obrigar o Tião a se responsabilizar pelos sinistros que não estavam no contrato, cliente seqüestrado fora da jurisdição, vê se pode? As “otoridades” assustadas com a intranqüilidade que começava a se instaurar, baixaram pro malandro uma resolução dizendo que seqüestro relâmpago na área tinha que estar na cobertura. Mas seqüestro normal, dentro e fora, só pra quem tivesse o plano antigo. E a mensalidade? Tinha que ver direito esses reajustes...

A situação do Bica D'Água, malandro perigoso daquele pedaço da antiga vila operária, hoje playground dos especuladores imobiliários, dali pra frente foi só ladeira abaixo: as normatizações todas, os sinistros falsos, o percentual no negócio que ele teve de ceder pro vereador, o outro pro apresentador-deputado. Até concorrência começou a pintar, e ele já não dava conta de zelar pela fidelidade de todos os seus comandados, assediados pelas promessas da abertura de mercado, vejam só. A margem de lucro despencou, uma parte dos clientes se bandiou. Desfez-se das propriedades, voltou pra área pra cuidar de perto dos negócios, ressuscitando o velho três-oito pra comandar pessoalmente umas operações de integralização do capital desvalorizado. Mas ali já não era mais nem sombra da poderosa organização que um dia vendeu o sonho de uma cidade sem violência.

E assim foi que foi que foi. E foi. Até que um dia ninguém mais ouviu falar dele. E até – mais – quando morreu seu Joaquim e os filhos resolveram reformar o Vira Três e transformar numa moderna lanchonete, forrada de uma lajota bem bonita, com letreiro de neon: Help's...

Final borgeano: quando muitos anos depois ainda perguntavam à D. Francisca se era verdade que aquele mendigo da praça, que virava todo dia três maria-moles, se ele tinha mesmo sido um poderoso empresário da contravenção oficial, o olho da velhíssima saloia brilhava de um sorriso assim - como direi? - meio úmido.

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