sexta-feira, 18 de maio de 2007

Como se fora um coração postiço

Rubem Braga


Nasceu, na doce Budapeste, um menino com o coração fora do peito. Porém – diz um Dr. Mereje – não foi o primeiro. Em São Paulo, há sete anos, nasceu também uma criança assim. “Tinha o coração fora do peito, como se fora um coração postiço.”

Como se fora um coração postiço... O menino paulista viveu quatro horas. Vamos supor que tenha nascido às cinco horas. Cinco horas! Cinco horas! Um meu amigo, por nome Carlos, diria:

-... a hora em que os bares fecham e todas as vitudes se negam....

Madrugada paulista. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os postes. Os sinais das esquinas – vermelhos, amarelos, verdes – verdes, amarelos, vermelhos, borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Os olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá, contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém jamais nunca contemplou. Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e brancas. Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento, tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe. Passam homens de cara lavada, pobres, com embrulhos de jornais debaixo do braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas. Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado, com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você devia vir cá fora receber o beijo da madrugada.

Seis horas. O coração fora do peito bae docemente. Sete horas – o coração bate... Oito horas – que sol claro, que barulho na rua! - o coração bate...

Nove horas – morreu o menino do coração fora do peito. Fez bem em morrer, menino. O Dr. Mereje resmunga: "Filho de pais alcoólatras e sifilíticos..." Deixe falar o Dr. Mereje. Ele é um médico, você é o menino do coração fora do peito. Está morto. Os "pais alcoólatras e sifilíticos" fazem o enterro banal do anjinho suburbano. Mas que anjinho engraçado! - diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho está no céu. Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos olham espantados. O que é isso, seu paulista? Mas o menino do coração fora do peito está se rindo. Não responde nada. Podia contar a sua história: "o Dr. Mereje disse que..." - mas não conta. Está rindo, mas está triste. Os anjinhos todos querem saber. Então o menino diz:

- Ora, pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito. Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das moças. Queria que ele vivesse à luz, ao vento, que batesse a descoberto, fora da prisão, da escuridão do peito. Que batesse como uma rosa que o vento balança...

Os anjinhos todos do limbo perguntaram:

- Mas então, paulistinha do coração fora do peito, pra que é que você foi morrer?

O anjinho respondeu:

- Eu vi que não tinha jeito. Lá embaixo todo mundo carrega o coração dentro do peito. Bem escondido, no escuro, com paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne cobrindo. O coração trabalha sem ninguém ver. Se ele ficar fora do peito é logo ferido e morto, não tem defesa.

Os anjinhos todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi falando:

- E às vezes, minha gente, tem paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne, e no fim disso tudo, lá no fundo do peito, no escuro, não tem nada, não tem coração nenhum. E quando eu nasci, o Dr. Mereje olhou meu coração livre, batendo, feito uma rosa que balança ao vento, e disse, sem saber o que dizia: "parece um coração postiço". Os homens todos, minha gente, são assim como o Dr. Mereje.

Os anjinhos estavam cada vez mais espantados. Pouco depois começaram a brincar de bandido e mocinho de cinema e aí, foi, acabou a história. Porém o menino estava aborrecido, foi dormir. Até agora, ele está dormindo. Deixa o anjinho dormir sono sossegado, Dr. Mereje!


in O conde e o passarinho, Rio de Janeiro: Record, 1982, pp 9-12


6 comentários:

  1. Salve Fernando!
    Bem, postiços ou não (deixa quem quiser falar), os nossos, certamente expostos, seguem batendo firme sob a proteção de encontros felizes em nossa trajetória.
    Queria muito ter ido ver vocês com o Wilson. Não deu. Ainda estou devendo, mas pago com gosto brevemente. Abraço

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  2. Grande Douglas Germano, belo sambista, compositor de mão cheíssima (anotem esse nome!). Seja bem chegado, meu velho!
    Abração

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  3. É muito bom reconhecer na multidão pessoas que levam o coração exposto. Nem sempre por coragem, muitas vezes por pura necessidade, impossibilidade de fazer diferente. Lindo texto.
    Abraços.

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  4. Fala Fê!! Eu, em mais uma de minhas andanças internáuticas, não resisti a passar por aqui e dar aquela atualizada nas opiniões, que com os teus subsídios, vou enriquecendo. Junte-se a isso que estou relendo o livro do Edu Goldenberg, morrendo de rir, e já iniciei meu sobrinho nas artes botequísticas, contando a eles as peripécias de Seo Osório e a confraria SEMPRE.
    Ele adorou!
    Saudades, rapaz!
    Beijos na stê e nas duas princesas: a das Águas e a das Flores!

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  5. Fala Fê!! Eu, em mais uma de minhas andanças internáuticas, não resisti a passar por aqui e dar aquela atualizada nas opiniões, que com os teus subsídios, vou enriquecendo. Junte-se a isso que estou relendo o livro do Edu Goldenberg, morrendo de rir, e já iniciei meu sobrinho nas artes botequísticas, contando a eles as peripécias de Seo Osório e a confraria SEMPRE.
    Ele adorou!
    Saudades, rapaz!
    Beijos na stê e nas duas princesas: a das Águas e a das Flores!

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  6. Fala Fê!! Eu, em mais uma de minhas andanças internáuticas, não resisti a passar por aqui e dar aquela atualizada nas opiniões, que com os teus subsídios, vou enriquecendo. Junte-se a isso que estou relendo o livro do Edu Goldenberg, morrendo de rir, e já iniciei meu sobrinho nas artes botequísticas, contando a eles as peripécias de Seo Osório e a confraria SEMPRE.
    Ele adorou!
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    Beijos na stê e nas duas princesas: a das Águas e a das Flores!

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