sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Noite

Olho para o céu de noite aberta e sem lua. Afasto-me da varanda onde a luz da arandela teimava em me contrair as pupilas ansiosas das estrelas todas. Desde menino, a mesma angústia. Mas não será, mesmo, pela toda vida esse o desassossego? Um querer, assim, que nunca não se farta?

O Velho tanto nos prevenira, mas quem somos nós a dar ouvidos a esses tantos avisos e cuidados? Quem houvera de ter paciência para aqueles sentidos ocultos, para aquelas tramas todas urdidas a despeito e contra as evidências? Tudo sabíamos, tudo podíamos, nossos corpos e olhos e mentes, era só sair por aí devorando a vida, os saberes, os mistérios. Quais segredos nos freariam a sanha toda? Tola... Quanto sofrimento não seria poupado se tivéssemos, pelo menos, aprendido a olhar.

As estrelas muitas outras agora apareceram. O Cruzeiro, as Três Marias, Orion apresentam-se na sua pujança de luzeiros-guias deste lado debaixo do Equador. Ao longe ouço já os tambores em repiques tantos quantos os infinitos pontos de luz que continuam pipocando, mais e melhor descontraio olhos e ouvidos. Evocação de noites outras. Não parece razoável serem outros os batuques se são mesmas as estrelas... Dizem-me que não estão mais ali, que aqueles ecos mortos são tão só uma visita fugaz do passado há muito esvaído. Tempo é igual ao espaço sobre a velocidade, tão evidente. Bem nos dizia o Velho, enquanto houver olhos para ver e ouvidos para ouvir, é em nós que o passado cintila e ressoa, vivo. Muito vivo.

Noite... Que tudo confunde e iguala nas suas sombras; que tanto consolou as injúrias sofridas sob a claridade violenta que tudo distinguia, separava, ordenava. Que tanto assustou os senhores temerosos da vingança da mão negra justificadora, virtuosa. Os senhores temeram a noite e temeram seus baticuns e seus luzeiros exclusivos dos seus sabedores. E os senhores nos quiseram arrancar a noite, pois os sons estacados de sua voz se fizeram insuportáveis aos ouvidos preparados para assimilar e perpetuar a ordem. Os ouvidos que puderam não ouvir o choro e o ranger de dentes não puderam com o batuques das noites quentes prenunciadoras da Grande Noite Negra de todos os atabaques e todas as estrelas.

Por tudo nos quiseram tirar a Noite; trancaram-nos nos cubículos, arrancaram-nos os couros e madeiras, quiseram impedir que os Nossos nos viessem socorrer. Porque os batuques são os mesmos, como as estrelas, e cintilam e ressoam enquanto tivermos olhos e ouvidos. E o passado que vive em nós faria viver os Nossos, com o Raio e a Espada, com o Vento e a Peste a varrer a injustiça da terra dos homens. Entre nós Eles viveriam e nos arrebatariam da claridade que nos tentou massacrar.

Proibidos, trancados, arrancados, vivemos. E vivemos porque viveu em nós, a cada dia, debaixo da claridade mais usurpadora, a nossa Pequena Noite Íntima. Dentro de cada peito negro ela viveu, e ela era toda ela, em cada um, a Grande Noite. Porque na Pequena Noite cada tambor continuou sempre a bater e cada estrela sempre a brilhar, a despeito de toda humilhação, toda violência, toda injustiça, toda... Claridade.

O Velho ensinou. Mesmo que não tenhamos dado ouvidos, agora podemos saber o quanto das noites todas, das Pequenas e da Grande, continuam a nos querer roubar. Os mesmos de sempre. Mesmo que nos tenham feito professar que as luzes que vemos são estrelas mortas e os batuques choram os que não voltarão, hoje podemos saber que é a mesma Noite que nos continuam a querer roubar. Que a sua voz ainda lhes é insuportável e que não querem que vivam os Nossos. Mas nós continuaremos resistindo, continuaremos gritando nossas Pequenas Noites por entre as claridades das horas todas. Até que a Grande Noite venha.

Os tambores já acordaram as estrelas todas, e o céu é agora uma plenitude na qual meus olhos apredidos podem se deixar. Todos os que tombaram estão lá. Estão vivos e brilham e sua voz se faz ouvir na Noite.

[para Nei Lopes]

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