quarta-feira, 23 de julho de 2008
Ai de nós!
Por ocasião da recente repentina sanha de legalidade que se abateu sobre as autoridades brasileiras, ávidas por fazerem cumprir à risca, como todo o mais, a novel legislação sobre as limitações para se dirigir um carro (“lei seca” uma pinóia! A lei não proíbe ninguém de beber: proíbe de dirigir!) , bati os olhos numa notícia que alertava, em tipos incompatíveis: “Comandos policiais visarão os centros da vida boêmia da cidade”. Vida boêmia... Quis o editor, obviamente, referir-se aos bairros com profusão de bares e casas noturnas, muito trânsito, afluxo de pessoas das mais variadas regiões da cidade, turistas, badalação, agito. Em síntese: a negação absoluta e crassa da boemia.
Porque, meus caros, o boêmio é, antes de tudo, um solitário. Não daquela solidão essencial a que todas as almas, incomunicáveis como advertiu o Poeta, estão inapelavelmente condenadas; nem daqueloutra, tão feia, a que são relegados os velhos, os pobres, os órfãos, doentes, desprezados por seus semelhantes, indesejados do convívio das gentes bem falantes e bem comentes, apartados da possibilidade de compartilharem, minimamente que seja, o seu quinhão do sofrimento e da alegria do mundo. A solidão do boêmio é a que dele faz um observador único da vida e do mundo, porque única é a atalaia onde se encerra, como única é a sentinela nela encastelada. Essa solidão incute no boêmio uma fome de ver o mundo e os homens no mundo, que naturalmente é uma fome das ruas e dos bares, porque é nas ruas e nos bares que os homens encenam essa pantomima grotesca, tão de seu agrado, chamada vida.
Então, o boêmio é discreto. Repugnam a ele os lugares barulhentos, onde não se pode ouvir nem falar. Despreza a agitação e a badalação, pois só consegue exercer seu mister na simplicidade e na discrição. Seu lugar por excelência é o bar. Mas o boêmio não é, necessariamente, o bebum. Bebe, claro, porque no bar bebe-se e o beber faz parte do ritual onde se celebra o encontro, o compartilhamento. Conheci grandes boêmios abstêmios, tanto quanto pululam pelos bares, desafortunadamente, os bêbados insuportáveis que não sabem a que vieram. O tempo do boêmio é (ou era) a noite, porque a noite é suave e fresca, adequada a certos temas delicados da vida, e suas sombras sabem temperar as cores às vezes fortes demais do mundo. Mas quando os que se arvoram em donos de todas as coisas chegaram com seus faróis, motores e buzinas, falando alto e alegrando-se em excesso, o boêmio resignadamente passou a fazer do dia um palco para a sua lida e, concomitantemente, um tempo suportável de se viver. Driblando a objetividade canalha da claridade, emprestou-lhe a malícia da ocultação e do desvelamento, essência última da sedução.
O boêmio ama as ruas, mas não mora nelas. O seu flanar é do passante, do peregrino, que tem, se não a consciência, o sentimento da fugacidade das coisas. O boêmio não se demora, não permanece, mesmo que se deixe ficar. Para sintonizar-se com a poesia vagabunda e espontânea das coisas que passam. E o boêmio adora, sobretudo, as mulheres. Porque nelas se exprime em plenitude a essência desse ocultamento, dessa sedução que há na noite e no efêmero. Não as barulhentas, espalhafatosas e que bebem mal. Mas as que se fazem sentir como perfume delicado. As boêmias, claro. Mas não está nas ruas à procura delas. Nem de nada. Porque a essência do seu passar é, precisamente, a não intencionalidade. Se tem um porquê, se há uma expectativa, fenece a imprevisão, a eclosão maravilhosa do súbito; e deixa de ser boemia.
A melancolia do boêmio é a mais funda, mais agônica e, ainda assim, mais indolor. Porque é a melancolia de saber, de alguma forma, que a existência é brusca e sem sentido, explodindo pelos cantos todos do universo em improbabilidades fascinantes, pelas quais ele é apaixonado; mas que não pode – e jamais poderá! – vivenciá-las todas.
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Ahhhhhhh.....Que lindo, mano!!!!!
ResponderExcluir...lembrei tanto do meu pai...
ResponderExcluirBrunão, mudei o título... Acho que só vc viu. Fica, mais uma, só na lembrança. Beijo, mano!
ResponderExcluir"Aqui me tendo de regresso"... Um beijo, querido, amo você.
ResponderExcluirFreqüentadores de baladas, que enchem a cara apenas e tão somente pela zoeira, apreciam o pico bombado e ainda se julgam boêmios. Heresia. Fogo neles!
ResponderExcluir"Vem lá das ruas desertas, dos bares noturnos, dos beiços babados, dos olhos soturnos"
Ai de nós amantes da boemia...
Isso aí, Szegeri.
ResponderExcluir"Ser boêmio é diferente
É viver liricamente
Padecendo com grandeza"
(Paulo Vanzolini)
Que lindo texto. Me fez lembrar dos seus olhos, tao melancolicos, tao profundos...
ResponderExcluirBeijo com saudade.
fê,
ResponderExcluiremocionante...
beijos, tati
Como sempre, dizendo tudo em poucas palavras. O boêmio é exatamente isso, recolhido em sua singular solidão.
ResponderExcluirBeijo, meu camarada.
Eu, que bem conheço meu mano Szegeri (não conheço NADA, mas achei lindo começar assim meu segundo comentário a este texto), sei que ele é, dentre nós todos, o maior filósofo, o maior pensador, o mais sabido quando o assunto é a vida, esse troço que ele domina há séculos, eis que nosso herói não tem idade. Esse seu texto é belíssimo, cheio de verdades que parecem óbvias mas que ele e somente ele decifrou. Os comentários, todos elogiosos, atestam isso. Há apenas um não-exatamente-elogioso, e que refere-se a seus olhos, feito pela Betinha. Entretanto, tenho a ligeira impressão de que o Szegeri NUNCA mais escreverá texto algum, para que esse comentário, justo esse, sobre seus olhos, fique, permanentemente, à vista de todos. Era o que eu tinha a dizer.
ResponderExcluirO homem desatento diante da apropriação indevida das palavras tende a cegueira intelectual. Este texto, que partiu da atenção que captou a distorção profunda do sentido de boemia, simboliza a resistência contra esta cegueira, e nos faz mais vivos, mais alertas.
ResponderExcluirSuas palavras comoveram-me profundamente.
Axé!
Belíssimo!
ResponderExcluirÉ um daqueles textos que deixa a gente tão sem palavras que fica sem graça até mandar um abraço no final.
Perla (do Pará)
Texto maravilhoso!
ResponderExcluirParabéns, Fernando!
Forte abraço,
Everaldo
Everaldo: você é o Everaldo que era do Estadão?
ResponderExcluirOpa, sou eu mesmo. Inclusive tomei a liberdade de publicá-lo em meu blogue. Painel do Zéphir
ResponderExcluirabraço.