segunda-feira, 19 de abril de 2010

A luta por direitos do povo guarani em São Paulo

 
Na zona oeste da cidade, as aldeias Guarani Tekoá Pyaú e Tekoá Ytú enfrentam problemas como a inserção de grandes projetos na região, carências no atendimento à saúde e educação

Beatriz Catarina Maestri  e  Vanessa Ramos *


Nhanderu (Deus) está triste. Ele quis deixar seu corpo e seu espírito aqui na terra. Mas os juruá (não-indígenas) não estão colaborando com sua obra e estão destruindo tudo. A terra vai ficando pobre, mal cuidada e vai se revoltando. Aí vemos coisas ruins acontecendo como terremotos, enchentes e deslizamentos. As palavras em tom de lamento, ditas por Alísio, liderança Guarani Mbyá, em São Paulo, refletem o sentimento das comunidades indígenas que vivem nas periferias da grande metrópole.

A terra para os Guarani é fonte de vida e sobrevivência e, segundo o subsídio Semana dos Povos Indígenas - 2009, do Conselho Indigenista Missionário, (CIMI) "não é só a base do sustento, mas também o lugar onde jazem os ancestrais, onde se reproduzem a cultura, a identidade e a organização social". Na zona oeste de São Paulo as aldeias Guarani, Tekoá Pyaú e Tekoá Ytú, localizadas perto do Pico do Jaraguá, enfrentam problemas como a inserção de grandes projetos na região, carências no atendimento à saúde e educação. A Tekoá Pyaú está entre as menores aldeias do Brasil que esperam pela demarcação de sua terra de apenas 2,7 hectares, onde vivem mais de 80 famílias. Considerando o aumento da população, esta área exígua será insuficiente para abrigar um número maior de famílias.

Para o Xeramoi (pajé) José Fernandes, da aldeia Tekoá Pyaú "o processo de demarcação da aldeia está indo bem mal, porque os juruá (não-índios) são muitos e não sabem como realizar", afirma. A preocupação maior das lideranças locais advém da morosidade dos órgãos públicos que deveriam agir conforme a Constituição Federal que assegura os direitos dos povos originários.

Porém, os processos são lentos e quase nunca se estabelece um diálogo preciso com as comunidades envolvidas, mesmo sabendo que a não consulta prévia aos povos, fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante este direito aos povos indígenas, quando estes forem afetados. Neste sentido, cabe ao poder público atender as comunidades indígenas no Brasil, expostas à violência por conta da negação de suas terras e interferência de grandes projetos. 


Megaprojetos

Um grande sofrimento destas comunidades no Jaraguá teve início em 1998, ainda no governo Mário Covas (1995- 2001), quando a empresa Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa) iniciou a construção do Rodoanel Mário Covas, cortando parte de aldeias e interferindo em outras. Ainda assim, as propagandas do governo de São Paulo insistem que "O Rodoanel não é apenas a maior obra viária do Brasil. É também a que mais emprega".

As lideranças afirmam que, na época, não foram consultadas sobre este projeto e suas interferências. A empresa propõe atualmente negociações junto à comunidade, através da compra de terras como medida compensatória. A comunidade tem dialogado, mas se posiciona na exigência da demarcação da terra no Jaraguá.

Estes fatos remontam à inserção de projetos pelo Brasil. Vale lembrar as críticas em relação à construção da usina hidrelétrica Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará. Como obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), custará milhões de dólares e afetará toda a população. Dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu e presidente do CIMI, denuncia que a obra terá conseqüências irreversíveis e imprevisíveis, inundando bairros inteiros, afetando 30 mil famílias e causando a destruição de terras indígenas.


Saúde

Para as lideranças do Jaraguá, em sintonia com outros povos que vivem na cidade de São Paulo, este é um assunto preocupante. Em maio de 2009, enquanto lideranças indígenas, incluindo as das aldeias Guarani de São Paulo, no 6º Acampamento Terra Livre, em Brasília, elaboravam uma nova proposta de texto para o novo Estatuto dos Povos Indígenas abrangendo, também, a questão da saúde, outras lideranças deste povo, em conjunto com representantes de 36 aldeias do estado de São Paulo, ocupavam a sede da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) na cidade de São Paulo, reivindicando, entre outras coisas, a demissão do coordenador regional Raze Razek, avaliado por essas comunidades como péssimo gestor na ação efetiva do atendimento médico e sanitário.

Em dezembro de 2009, no Encontro de Articulação das lideranças indígenas de São Paulo, representantes de diversas etnias reuniram-se na aldeia Tekoá Pyaú para retomar os compromissos assumidos após a ocupação, como reclamar do descaso de remédios e de atendimento, tendo presente as necessidades emergenciais que vivem as comunidades. Novamente, se constatou que não ocorreram muitos avanços por parte do poder público no atendimento diferenciado aos povos que vivem na área urbana, considerando suas reais necessidades e reivindicações.


Educação

Uma dificuldade está na preservação da educação tradicional que sempre foi transmitida oralmente, desde seus antepassados, às crianças e jovens e que é "omitida" ou descaracterizada nas escolas públicas. Na aldeia Tekoá Pyaú, um projeto interessante, desde 2001, é o Centro de Educação e Cultura Indígena que nasceu a partir "da necessidade de se fazer frente à influência crescente da cultura não indígena, nas aldeias Guarani existentes na cidade de São Paulo". É um espaço onde as crianças da aldeia contam com ensino bilíngüe.

Na aldeia Tekoá Ytú há também uma escola onde se fala e ensina a língua Guarani, mas, para Davi Martim, professor Guarani, muitos avanços na educação escolar das crianças ainda são necessários. Para ele, faltam recursos pedagógicos para atuar dentro da escola e a educação na aldeia deve ser pensada de forma diferenciada, levando em conta a especificidade cultural de seu povo. Assim, "não há como aplicar, na escola da aldeia, o modelo não indígena que existe nas escolas públicas do estado e do município de São Paulo", enfatiza.

Em São Paulo, uma conquista que pode ser observada nesta área é o Programa Pindorama da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que, em parceria com a Pastoral Indigenista e comunidades indígenas, oferece bolsas de graduação aos indígenas de várias etnias. Davi, por exemplo, é estudante de Ciências Sociais. A universidade torna-se um espaço possível para a atuação desses estudantes, conferindo-lhes a oportunidade de participar na construção de novas formas de pensar.


Descaso do poder público

Grande parte da sociedade reforça a idéia de que a cidade e a periferia, não são espaços para indígenas viverem. Para as lideranças da aldeia no Jaraguá, esse tipo de afirmação é discriminatória. "Os povos indígenas que vivem na área urbana não deixam de ser indígenas por isso", apontam. 
Para eles, é preciso que a sociedade repense seus conceitos e preconceitos, as concepções pejorativas e discriminatórias a que, por séculos, foi levada a pensar. Além do preconceito, o que se evidencia é o descaso dos órgãos públicos na efetivação dos direitos dos povos indígenas, agindo com lentidão e sem reposta às necessidades de demarcação de terras, educação, saúde, moradia e reconhecimento destes povos que vivem na cidade de São Paulo. Mais que urgente, deve-se perceber que os antigos moradores de nossa terra estão esquecidos e reduzidos por interesses econômicos e políticos corruptos. 

[ *originalmente publicado em  Brasil de Fato, 07/04/2010]

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

La Negra vive!

Railídia Carvalho*


Não lembro quando comecei a ouvir os discos da cantora argentina Mercedes Sosa. Sei que estava em Belém e recordo que o impacto foi tremendo como ainda é hoje quando a ouço: canto sem artifícios, emocionado, intenso, cheio de atmosferas. Foi um encanto pra mim que sempre sonhei com a felicidade plena. E creio nesta felicidade até hoje. Agora também sei que ela chega aos poucos e nem sempre se manifesta completamente.

Ouvir o canto e a fala da Mercedes Sosa sempre foi um momento, inédito, de felicidade completa. Canción con todos (Armando Tejada Gómez Y César Isella) em que todas as mãos e vozes estão juntos, unidos pela América; Duerme Negrito (recolhida por Atahualpa Yupanqui) que foi durante muito tempo uma canção que muito me acompanhou e sempre volto a ela:

"Duerme, duerme, Negrito
que tu mamá está en el campo, Negrito...
Trabajando, trabajando duramente
Trabajando si, trabajando y no le pagan...”

Ouvimos tanto falar da integração da América, mas Mercedes entregou sua vida à construção dessa nação unificada, dos irmãos americanos, da nossa américa querida, amada. Há pouco tempo, a convite da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, cantei para muitos americanos e brasileiros Canción con Todos. Cantei com amor, sentimento, senso de justiça e integração. Essa foi a escola da Mercedes, artista esplêndida, humanista e consciente de que nesta vida a solidariedade e a generosidade são imprescindíveis.

Mercedes sonhou, viveu e pagou por este mundo defendido por ela. Quanto estamos dispostos a pagar? “La Negra” partiu neste domingo. Ficamos nós, sonhando e removendo pedras do caminho.


Railídia Carvalho é cantora e jornalista

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O jardim

Desceria agora para a rua e para a noite
E em sua penumbra voltaria adrede
Ao completo desconhecimento que tudo precedeu.

Mas há um jardim a esperar por mim.

Ouço o murmúrio de uma deslembrança
Acenando um convite
Nem sóbrio, nem ardente.
Mas o jardim clama pobremente por que eu fique.
E volte.

Pegaria o último trem
Para o destino incerto que sempre houve
A me consolar.
Mas as flores humildes do jardim
Amarraram aos meus pés mil grilhões
De verdade
E de vergonha

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Espelho

Aníbal Beça*


Para fechar sem chave a minha sina
Clara inversão da jaula das palavras
As vestes da sintaxe que componho
De baixo para cima é que renovo.

Escancarando um solo transmutado
Para o sol da surpresa nas janelas
Ao mesmo pouso de ave renascida
Do fim regresso fera não domada.

Na duração que escorre nessa arena
Lambendo vem a pressa em que me aposto>
Nessa voragem, vaga um mar de calma

Que me alimenta os ossos da memória.
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
O que sobrou de mim são essas sombras



*Aníbal Beça, poeta e compositor amazonense,
foi morar no Orun nesta terça, 25 de agosto.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Os bares morrem numa quarta-feira

Paulo Mendes Campos


Um amigo de Kafka conta que este arquitetava o seguinte: um homem desejando criar uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser convidadas. As pessoas poderiam se ver ou conversar sem se conhecerem. Cada uma faria o que lhe aprouvesse sem chatear o próximo. Ninguém se oporia à entrada ou à saída de ninguém. Não havendo propriamente convidados, não se criariam obrigações especiais para com o anfitrião. E o espinho da solidão doeria mais ou menos.

É possível que Kafka não haja escrito esta alegoria por ter percebido que a mesmo já existia corporificada sob a fora de cafés, restaurantes e bares. Mas o episódio pode levar-nos a considerar com súbita estranheza o mil vezes conhecido: os bares já eram kafkianos quando surgiram no mundo. Ou este, o mundo, é que foi o primeiro bar, quando se encontraram num jardim duas criaturas desconhecidas, e a mulher, buscando comunicação, ofereceu ao homem uma fruta. Foi o primeiro ponto de encontro. E não durou muito.

Pois os bares nascem, vivem, parecem eternos a um determinado momento, e morrem. Morrem numa quarta-feira, como diria Mário de Andrade. O obituário dessas casas fica registrado no livro de memórias. Recordá-los, os bares mortos, é contar a história de uma cidade. Melhor, é fazer o levantamento das cidades que passaram por dentro de uma única cidade. Mesmo num lugar como Paris, que apesar dos pesares procura preservar a imagem histórica, os cafés de Leon-Paul Fargue não foram os cafés de Alphonse Daudet, e este não respirou a atmosfera dos cafés de Stendhal.

O curioso é que os bares do presente, por seus serviços e por sua freqüência, podem merecer até o nosso entusiasmo, mas não recebem jamais o nosso amor. O bom freguês só ama o bar que se foi. Só na lembrança os bares perdem suas arestas e se sublimam.

João do Rio tinha sete anos e se batia contra um enorme sorvete na Confeitaria Paschoal, quando ouvia a Baronesa de Mamanguape exclamar encantada: “Oh! Senhor Olavo Bilac!”

Esta cena não se passou conosco, mas é como se tivesse sido. Seu conteúdo emocional repetiu-se na existência de todas as pessoas que freqüentaram bares e confeitarias. E repetiu-se para o próprio João do Rio, que num livro de 1912 já escreve sobre a decadência das casas de chope; ou simplesmente chopes, como eram chamadas.

Conta como esses chopes surgiram e morreram, partindo a invenção da Rua da Assembléia, nas mesas de mármore do Jacó, onde estetas, imitando Montmartre. Inauguraram o prazer de discutir literatura e falar mal do próximo. Por esse tempo, uma mulher com voz de barítono, chamada Ivone, montou um cabaré satânico na Rua do Lavradio, com tudo o que havia de mais rive gauche, inclusive recitativos macabros de Baudelaire. Era o Chat Noir que perdeu fôlego por falta de verba.

Outros chopes apareceram nas ruas da Assembléia e Carioca, esmerando-se o proprietário na invenção promocional; seus chamarizes são inventariados nessa ordem cronológica de João do Rio: tenores gringos de colarinho sujo e luva na mão, acompanhados ao piano; grandes orquestrar tocando trechos de óperas e valsas perturbadoras; depois, árias italianas servidas com sanduíches de caviar, um chope chegou a apresentar uma harpista capenga, mas formosa. Foi aí que um empresário genial estreou um cantor de modinhas. Foi de endoidar. “A modinha absorveu o público. Antes para ouvir uma modinha tinha a gente que arriscar a pele em baiúcas equívocas e acompanhar serestas ainda mais equívocas. No chope tomava logo um fartão sem se comprometer. E era de ver os mulatos de beiço grosso berrando tristemente: Eu canto em minha viola ternuras de amor , mas de muito amor... E os pretos barítonos, os Bruants de nanquim, maxixando cateretês apopléticos”.

Na Rua da Assembléia, à meia-noite, Catulo da Paixão Cearense erguia um triste copo de cerveja para soluçar dorme que velo, sedutora imagem.

Tudo isso é narrado já no comecinho do século já em afinação de nostalgia; pois os chopes tinham morrido no início da segunda década. Uns poucos anos antes, só na Rua da Carioca, eram uns dez; na Rua do Lavradio, ficavam de um lado e de outro; alastraram-se pela Riachuelo, pela Cidade Nova, Catumbi, Estácio, Praça Onze. Num relampejar brilharam e sumiram as estrelas daquelas noites, esquecidas pela cidade, “a mais infiel das amantes”.

Mas o chope deu um jeito e conseguiu sobreviver; só mudou de cara e personalidade. Quando cheguei ao Rio, era chope o que se tomava em muitos bares famosos, hoje mortos: Túnel da Lapa, 49, Nacional, Brahma... Aí se misturavam pequenos empregados do comércio, a gente de boa roupa e até os derradeiros malandros. No antigo Vermelhinho, as mesas eram ocupadas por escritores, jornalistas, pintores, gente do palco e estudantes da Escola de Belas-Artes. Suas figuras mais constantes eram Santa Rosa, como cigarro pendurado na boca, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Lúcio Rangel. João Cabral de Melo Neto costumava chegar, conversar um pouco e, já alegando dor de cabeça, dar um pulo à Farmácia Normal. Os artistas pretos – Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Solano Trindade, Abdias Nascimento – sentiam-se em casa nas cadeiras de palhinha do Vermelhinho, assim como os estrangeiros trazidos pela guerra. Carlos Drummond de Andrade, deixando o Ministério da Educação, só passava de fininho pela Rua Araújo Porto Alegre.

Depois, uma parte da turma atravessou a rua, pegou o elevador e se instalou no ajardinado terraço da ABI, passando a tomar uísque de fato escocês, porém milimetricamente dosado pelo garçom Stuckert – o Estuca.

O que não se dava nas mercearias enxertadas de uisquerias . Nessas - Pardellas, Lidador, Grande Ponto, Casa Carvalho, Vilariño - o uísque era generoso, apesar de amplamente discutível sua autenticidade. Grande animador desses bares foi o médico pernambucano Eustáquio Duarte, criador do gabarito fosfórico: pleiteou e conseguiu que a dose chegasse à altura de uma caixa de fósforos colocada em pé ao lado do copo.

Eustáquio (Totó Borum para os íntimos) intitulava-se o proletário e era autor de elaborada classificação psicofísica das mulheres ( a pebologia); essa teoria era o enlevo de todos os freqüentadores notadamente do poeta Vinícius. Era ainda o médico (mas atribuía a paternidade a um tal de Fernando C. Pessoa, gerente de hotel na Bahia) autor de sonetos pornográficos da mais pura linguagem bocagiana.

Andou por esses bares ilustres – falo apenas dos que melhor conheci no centro da cidade – toda uma geração de vários sotaques. Eneida (que, antes do Baile dos Pierrots, criou no Vermelhinho um forró carnavalesco de portas cerradas) era vista a todo momento com seus balangandãs tilitantes, entrando no Instituto Nacional do Livro ou dele saindo. Rosário Fusco era onipresente, deixando à porta de todos os bares um táxi à espera. Hoje esse dom da ubiqüidade pertence ao corretor Luís Antônio Pontual.

Zé Lins do Rego era detectado à distância por sua gargalhada. Com ar de menino levado e lavado, Lamartine Babo já entrava trauteando uma canção amena. Ari Barroso, pelo contrário, turbilhonava para dentro do bar com gestos e gritos homéricos: parecia que a guerra fora declarada ou que um ônibus passara por cima dele; mas não era nada.

Por ali, entre Presidente Wilson e Almirante Barroso, circulou o Rio artístico, do fim da guerra à guerra fria, mas a verdade histórica manda dizer que a falta de transporte no fim da tarde foi também um determinante desse comportamento boêmio.

Em dezembro de 1949 foi inaugurado o Juca's Bar, na Rua Senador Dantas: era o alívio do ar refrigerado que chegava. Lá se instalaram rapidamente assessores do Presidente Juscelino, os irmãos Condé com o Jornal de Letras, os irmãos Chaves, que atraíam os nordestinos itinerantes. Olívio Montenegro era contumaz e Gilberto Freyre costumava dar as caras.

Era uma mistura sensacional, estimulante. Ali todos os setores tinham suas embaixadas. Dou uns poucos exemplos: Rubem Braga representava a prosa, Vinícius de Moraes o verso; Stanislaw Ponte Preta o humorismo; Carlos Leão representava a arquitetura renovadora, passando a noite a desenhar mulheres nuas em bom papel que um bom mineiro comprava na papelaria ao lado; o Coronel Amílcar Dutra de Menezes representava o Estado Novo em geral e o DIP em particular, mas soube tornar-se amigo dos velhos inimigos; Antiógenes Chaves falava em nome das classes empresariais; Zé Lins em nome do Flamengo; o Comandante João Milton Prates representava com elegância a Presidência da República; às vezes aparecia Agildo Barata ou outro representante histórico; Luís Jardim, chupitando o seu uísque com o relógio em cima da mesa era o próprio secretário da UDN; a jornalista Jane Braga vinha em nome do Texas; Di Cavalcanti era o ponto alto das artes visuais, embora só admitisse, como tema de conversa, literatura e mulheres bonitas; estas, por sua, vez, estavam muito bem representadas na pessoa de Tônia Carrrero, enquanto Araci de Almeida era o Samba em pessoa.

Mas algumas brechas iam se abrindo no trânsito compacto do crepúsculo e os boêmios começaram a deixar a cidade mais cedo e a criar alma nova na Zona Sul. Em bares que iam igualmente brilhando, apagando-se e morrendo. Ou pelo menos morriam para eles. É o caso do Alcazar e do Maxim's, em Copacabana; do Jangadeiro e do Zeppelin, em Ipanema; do Clipper, no Leblon. No Alcazar (em cima morava o poeta Augusto Frederico Schmidt) ia o pessoal que não perdia o cinema das dez e muito menos o chope da meia-noite às duas da manhã; o Maxim's, com Sílvio Caldas e Araci de Almeida à frente, absorveu todos os musicais do Vilariño; no Jangadeiro aparecia Lúcio Cardoso; ao Zeppelin afluía aos domingos uma boa torrente das reuniões da casa de Aníbal Machado; no Clipper imperavam Antônio Maria (fragorosamente) e Dorival Caymmi (de mansinho).

Mas esses bares morreram ou mudaram de personalidade como do uísque para a água, o que é mais antipático que a morte. Como morreram muitos outros que eu conheci no breve espaço de um entardecer que durou vinte anos. O bar do Hotel Central, por exemplo, na Praia do Flamengo, que servia rosbife de tira-gosto e era um encanto; a Brasileira, na Cinelândia, que era mais uma confeitaria, mas onde encontrei uma tarde o vigoroso romancista católico Georges Bernanos fazendo um escarcéu de mil diabos porque não podia escrever com o escarcéu que os garçons faziam; o Segunda Frente, em Copacabana, que morreu logo depois que os sócios (um deles era o pintor Raimundo Nogueira) e seus amigos beberam a última gota do estoque antes de entrar dinheiro na caixa.

São muitos outros, mas a História dos Bares do Rio, que deveria ser escrita, precisaria ser contratada por um editor.

Por fim, ultimamente, morreu o famosíssimo Lamas, no Catete. Foi devidamente chorado na imprensa e continuará sendo lacrimejado em centenas de bares em que se espalham hoje os remanescentes dos antigos antros de perdição. Pois agora, quando desaparece também o Bon Marché (Avenida Copacabana, esquina de Siqueira Campos), os boêmios do Rio, tangidos pela demolição imobiliária, vivem pelos descaminhos da diáspora. Agüentou 73 anos de existência. Aquela esquina estava predestinada a libações: em 1892, ao ser inaugurada ali defronte a estação dos bondes houve um auto lunch, com brindes de champagne ao Marechal Floriano Peixoto... à Guarda Nacional... à Armada... ao Exército...à Intendência Municipal... e à diretoria da Companhia do Jardim Botânico. Não, houve mais um, o de honra, erguido pelo Presidente do Senado ao Marechal Floriano Peixoto e ao engrandecimento da República.

No Bon Marché Pixinguinha animou bailes de carnaval. Por ali passaram generais, almirantes, escritores, desembargadores, artistas, jogadores de futebol, milionários, políticos, delegados, sambistas e o sempiterno Gasolina, que aliás não passou e nunca fez nada e não saberá aonde ir quando for removido o último tijolo do prédio.

Viveram no Bon Marché algumas gerações de bêbados ilustres, de gente que bebia e se entendia e que continuará se entendendo. Pois uma lei rege a harmonia das esferas humanas: Cristo nos convidou a amar o próximo como a nós mesmos; mas a verdade é que só os bêbados aturam os bêbados; e só os sóbrios aturam os sóbrios.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Dois homens


Quem são esses dois homens?
O que são estes quatro olhos que tantas vezes deparei?
O que são essas faces translúcidas de uma verdade que não tem como nem por quê?
Homens dignos. Homens fortes.
Homens-meninos, dilacerados.
Não se vêem
Lágrimas
Rios inundam seus corações apreensivos. Esperançosos...
Eles não entendem.
Eles não agüentam.
Mas resistem.
Em meio ao alarido das vozes e das desimportâncias
Há um silêncio emoldurado por sorrisos esmaecidos
Há um grito de socorro a lhes rebentar no peito

Dois homens tão diferentes
Dois machos
Postados frente a frente
Dois corações outrora apaziguados
Pela Beleza
E sua força avassaladora
De tudo juntar e construir
e pôr a diante
Por sua delicadeza absoluta e dominante
Dois alazões araganos
Arfando ventas de
Deslumbramento. E mansidão

A Beleza está ferida.
As feras então domadas
Estão que não se agüentam
Na sua impotência de meninos atônitos
Dir-se-ia que se bateriam
Suspenso o braço intermediador
Enfraquecido o poder catalizador
a mantê-los lado a lado
Repeitantes.
Mas eles não entendem
E os seus olhos bradam súplicas
De razões:
- Não a Beleza, não ela...

Porque se fizeram cativos dessa imensidão
Porque se despiram da incômoda armadura
Embalados por seus braços
Ninados em seu colo
São homens feridos. Alquebrados.
Sequer podem lutar...
Os anos pesam em suas faces
As barbas maldisfarçam mil rugas
De milhão de gerações
E tormentos

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Dia de São Pixinguinha de Ogum

Se vivo fosse, o compositor Alfredo da Rocha Vianna Filho, o famoso Pixinguinha - apelido surgido, segundo ele, da contração de “Pizindim”, ou “menino bom” como era chamado por sua avó africana Edwiges, com “bexiguinha”, como teria sido alcunhado após contrair bexiga ou varíola - estaria completando hoje, 23 de abril de 2009, 112 anos de idade. Em homenagem a um dos maiores gênios da música brasileira em todos os tempos e um dos pilares do que modernamente entendemos como a nossa música popular nacional, a data em que também se comemora a popularíssima festa de São Jorge (sincretizado no Rio de Janeiro com o orixá Ogum do culto iorubá), foi proclamada pela Lei nº 10.000/2000 como o Dia Nacional do Choro, gênero em que o mestre mais se destacou.

Pixinguinha foi genial em todos os aspectos da música em que atuou. Como compositor, conhecem-se mais de 2000 músicas de sua autoria, entre as quais clássicos imortais da música brasileira como “Carinhoso” (com João de Barro) e “Rosa”. Como arranjador, não só foi o pioneiro das formas orquestrais para os registros fonográficos a partir da década de 30, como lançou e fixou as concepções básicas que dominaram a noção de acompanhamento na música popular até o advento da bossa-nova. Como instrumentista, é considerado um dos três maiores flautistas brasileiros da primeira metade do século passado, ao lado de seu companheiro Benedito Lacerda e do prodigioso Patápio Silva, morto precocemente. Em meados dos anos 40, troca a flauta pelo sax tenor, supostamente devido a dificuldades com a embocadura do antigo instrumento, provocadas pelo abuso do álcool. Porém, a mudança registra também a influência da sonoridade das jazz bands estadunidenses (cujos registros começavam a nos chegar pelos discos e pelo cinema) sobre as concepções musicais do mestre que melhor conheceu e interpretou a tradição da música criada pelas baixas classes médias mestiças da cidade do Rio de Janeiro.

Como figura humana, era conhecida sua humildade e imensa generosidade com todos os que o circundavam. É proverbial neste sentido a história-quase-lenda de que certa vez teria sido abordado por assaltantes, ao voltar para casa altas horas da madrugada. Ao identificar-se, os ladrões teriam desistido do roubo e pedido desculpas ao mestre, tentando justificar seu comportamento em face da fome, da falta de emprego etc. Compadecido da situação, Pixinguinha os teria levado para sua casa, onde juntos comeram, beberam e dormiram, saindo os meliantes só no dia seguinte, agradecidos.

Em 17 de fevereiro de 1973, o coração do mestre parou enquanto participava do batizado de um afilhado. Como registrou o poeta Paulo César Pinheiro no primoroso samba Som de Prata em parceria com o compositor Moacyr Luz:

Só quem morre dentro de uma igreja
Vira orixá, louvado seja,
Senhor, meu Santo Pixinguinha!



Dos barbeiros aos ases

A primeira metade do século XIX viu nascer as primeiras manifestações genuinamente urbanas de uma música instrumental, dissociada da dança e voltada basicamente para o entretenimento dos estratos mais baixos da população. Reunidos por ocasião das festividades associadas ao calendário religioso católico, normalmente no adro das igrejas podiam ouvir o que costumou-se designar a “música de barbeiros”, devido aos conjuntos formados por músicos amadores, basicamente negros (escravos urbanos ou libertos que muitas vezes aprendiam música nas bandas de escravos mantidas nas fazendas) e mulatos, que podiam dedicar-se a um dos únicos ofícios liberais de aprendizado não acadêmico.

Os barbeiros de então praticavam não só os serviços até hoje ligados à profissão, mas uma variada gama de procedimentos para-médicos, como pequenas cirurgias, sangrias e outras atrocidades de nossa vetusta ciência oitocentista. A razoável lucratividade advinda desses misteres permitia justamente a aquisição de instrumentos como o cavaquinho, o violão, a flauta e o oficleide, bem como certo tempo disponível para a prática musical. Os poucos relatos disponíveis parecem dar conta de que o som peculiar desses conjuntos, embora de repertório dedicado a uma certa música ligeira européia (polcas, valsas, mazurcas, schottiches), adviria de uma maneira própria de tocar, evocando um certo “ritmo das senzalas” (na expressão consagrada por Mariza Lira in “A glória do Outeiro na história da cidade”, Rio de Janeiro, Diário de Notícias de 04/08/57).

Essas primeiras manifestações foram ao longo do século XIX progressivamente sendo substituídas pelo advento das bandas militares, nos grandes centros e pelas retretas de coretos, nos lugarejos menores, até desaparecerem completamente pelos idos dos anos 1860. Nos anos seguintes, o progressivo aumento da complexidade social, advindo da falência do modelo escravagista e do desenvolvimento econômico impulsionado basicamente pelo café, vai fazer surgir na cidade do Rio de Janeiro uma baixa classe média algo difusa formada por pequenos funcionários públicos civis e militares e empregados de companhias particulares estrangeiras de comércio e serviços. À imitação empobrecida dos hábitos das elites abastadas e na ausência de consistentes e regulares diversões públicas (os cafés e teatros de revista, por exemplo, só se afirmariam nas primeiras décadas do século seguinte) essas classes populares cultivam o hábito das festas particulares em casa de família, animadas pelos conjuntos musicais a elas mais próximos e acessíveis, formados dos músicos pertencentes a essas mesmas camadas, fortemente marcadas pela mestiçagem.

Neste período, portanto, observa-se o surgimento de uma nova classe formada em grande parte por mulatos com ocupações regulares, morando em casas simples nos bairros populares próximos ao centro, como a Cidade Nova e o Estácio. Concomitantemente, os negros africanos e crioulos continuam, em sua grande maioria, mesmo após o banimento da escravatura, condenados a uma vida marginal, abrigados nos morros e subúrbios distantes, sem ocupação fixa ou relegados aos duros trabalhos braçais da estiva. Se neste ambiente o samba encontra as condições para se tornar a mais importante forma de expressão, o choro nasce naquele incipiente estrato social em que ocupações mais leves permitem aos seus componentes maior dedicação à música e um certo excedente econômico possibilita a aquisição de instrumentos e a promoção de encontros festivos.

Se a origem do termo é algo controvertida, o certo é que o gênero é definido musicalmente não por um elemento rítmico característico e singular, mas pela maneira algo lamuriosa de execução – segundo Tinhorão*, uma leitura tipicamente brasileira do romantismo da música européia – que já agora certamente incorpora a herança sensível daquele já citado “ritmo da senzala”, mais tarde tão perceptível nas composições e execuções de músicos como Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Joaquim Callado.

Rapidamente popularizado e espalhando-se pelos redutos populares da cidade do Rio de Janeiro, o choro torna-se o referencial musical dessa baixa classe média, tomando conta dos quintais de subúrbio e das festas populares. Numa época ainda não marcada pela difusão musical maciça, a virtuosidade musical desses executantes amadores ou semi-amadores se mede pela fama espalhada boca a boca e nos ocasionais “embates” propiciados pelos encontros de músicos renomados. De 1870 a 1919 computam-se mais de 3000 composições conhecidas, de mais de 1400 compositores.


Renascendo das cinzas

É justamente o advento de uma nova era marcada pela popularização do rádio e do disco, a partir da década de 30 do século XX, onde a música popular atinge o status econômico de mercadoria destinada a circulação em massa, que vai gerar a decadência do choro e seu paulatino confinamento a bastiões isolados de resistência. Não obstante se acentuando progressivamente a influência da música estadunidense sobre arranjos e formas de execução, é certo que a origem e formação de muitos executantes populares no ambiente do choro vai acabar por imprimir uma feição indelével que jamais se apartará do seio da música popular brasileira. Porém, enquanto prática destinada ao suprimento das necessidades musicais e de divertimento das camadas populares, o choro entrará em declínio, substituído pela praticidade e economicidade do disco e do rádio.

Os dois maiores arranjadores na chamada “época de ouro” (1930 a 1945, com algumas variações segundo diferentes autores), Pixiguinha e Radamés Gnatalli, incorporaram muitos elementos tipicamente oriundos do choro nos acompanhamentos orquestrais que conceberam para as gravações dos grandes nomes da música popular. Quando o acompanhamento não era orquestral, entravam em cena os chamados regionais, com formação típica dos conjuntos de choro, do qual o mais famoso foi o de Benedito Lacerda, também oriundo dos mesmos ambientes.

Entre as décadas de 30 a 60, embora incorporado às feições da música brasileira, o choro experimenta um longo período de ostracismo, sobrevivendo sobretudo pelos quintais, com gravações e apresentações esporádicas, a despeito do surgimento de grandes compositores/executores do gênero como o cavaquinista Waldir Azevedo, o clarinetista Abel Ferreira, o flautista Altamiro Carrilho e o grande bandolinista Jacob Pick Bittencourt, o Jacob do Bandolin, um dos mais geniais músicos brasileiros de todos os tempos. Igualmente, o gênero sobrevivia em outros lugares do Brasil como Belém do Pará, Fortaleza, Porto Alegre, Recife e, sobretudo, em São Paulo, onde se desenvolveu e ganhou contornos muito particulares.

Foi de Jacob do Bandolim a semente para o ressurgimento do gênero, com a fundação do conjunto Época de Ouro, reunindo os maiores músicos da época como o violonista Dino e o pandeirista Jorginho. Parcialmente desativado depois da morte de Jacob, em 69, o Época ressurgiu em 1973 quando do espetáculo Sarau, ao lado de Paulinho da Viola. O enorme sucesso da temporada impulsionou as gravações de discos de choro (Camerata Carioca, Isaías e seus Chorões, Naquele Tempo, Regional do Evandro, entre muitos outros) e a fundação de novos grupos como o Galo Preto, Os Carioquinhas (76) e o Nó em Pingo d’Água (79). Ficou famosa na década de 70 a roda de choro do bar Sovaco de Cobra, na Penha, reduto suburbano tradicional do choro carioca, que atraía grandes contingentes de público de variadas regiões da cidade.

Ao longo das décadas seguintes, novos e importantes grupos e músicos foram surgindo, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em finais dos anos 90, o gênero ganha novos e importantes impulsos, com o aparecimento na Internet de uma publicação especializada, a Agenda do Samba & Choro, proporcionando a circulação de informações antes restritas aos quintais e botequins, colaborando decisivamente para a formação de um público fiel que passa a freqüentar assiduamente os circuitos alternativos da música instrumental popular. Surge igualmente um grupo de músicos liderado pelo violonista Maurício Carrilho e pela cavaquinista Luciana Rabello preocupados com a preservação da memória musical do gênero e na formação de novas gerações de chorões (os frutos desse trabalho fazem-se sentir na fundação de um selo especializado em choro, a Acari Records, em trabalhos de pesquisa e recuperação e na organização de oficinas para jovens músicos). Organiza-se o Clube do Choro de Brasília e, em torno deste, a escola de choro Rafael Rabelo, proporcionando uma enorme valorização do gênero na Capital Federal.



Rumo ao futuro

Muitas outras iniciativas poderiam ser citadas, mas estas bastam para a constatação de que o gênero vive um momento de grande efervescência, com rodas de choro em várias cidades brasileiras, clubes de choro, espetáculos e lançamento de discos. Muito ainda falta, entretanto, para se romper a barreira imposta pelo oligopólio da produção e distribuição do produto genuinamente nacional e de boa qualidade na música popular, controladas pelas cinco ou seis gigantes multinacionais do segmento.

A par disso, surge uma outra questão paradoxal. A partir do interesse despertado pelo choro em músicos das mais variadas formações e tradições, o gênero tendeu a sofrer uma enorme sofisticação harmônica e conceitual, com imbricadas relações com a música erudita e a música instrumental estrangeira. Ainda que amadores e profissionais ainda convivam em rodas tão renitentes como distantes, como as promovidas pelo luthier Manoel Andrade e pela loja Contemporânea, em São Paulo, ou no Bar do Gilson, de Belém do Pará; ainda que o espírito das velhas rodas suburbanas de músicos amadores sobreviva na Adega Tudo do Mar, no bairro carioca de Marechal Hermes, no Bar do Gilson, de Belém do Pará, e em quintais e botequins espalhados pelo Brasil, a tendência que se observa em larga escala é de que o choro cada vez mais requeira não somente o virtuosismo espontâneo das antigas gerações, mas o aprofundamento e a sofisticação da formação do executante, com tendências conseqüentes à profissionalização, para não dizer à elitização.

Novos grupos como o carioca Tira a Poeira executam o repertório tradicional do choro, incorporando elementos rítmicos e harmônicos bastante apartados da linhagem musical que classicamente caracterizou o estilo, resultando numa sonoridade bastante diferenciada das execuções mais conhecidas. Mas se o gênero caracterizou-se justamente pela forma de execução, perdidas uma vez tais referências, o que exatamente determinará a sua sobrevivência ou o seu desaparecimento?


* Tinhorão, José Ramos – História social da música popular basileira, São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 197

_______________


Republicação, com mínimas adaptações, da versão original publicada no Portal Vermelho, em 23 de abril de 2004.

domingo, 19 de abril de 2009




Monólogo do índio

Thiago de Mello


Perdido de mim, não sei ser mais o que fui e nunca poderei deixar de ser.

De mim me perco e me esqueço do que sou na precisão que já tenho de imitar
os brancos no que eles são: uma apenas tentativa inútil que me dissolve na
dor que não me devolve o poder de me encontrar.

Já deslembrado da glória radiosa de conviver, já perdido o parentesco com a
água, o fogo e as estrelas, já sem crença, já sem chão, oco e opaco me
converto em depósito dos restos impuros do ser alheio.

Resíduo de mim, a brasa do que já fui me reclama, como a luz que me conhece
de uma estrela agonizante dentro do ser que perdi.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Carta


Amiga,

Chove uma chuva miúda. Saí para ver, contrariado, mas não é que me pareceu leve e fresca, de destampar os velhos frascos das emoções suaves, das lembranças calmas?

Senti ímpetos de telefonar, como há muito não havia. Conteve-me o temor do que achasses despropositado, ou até ridículo. Imaginei-te na fila do supermercado, descarregando o carrinho, sabe-se lá, e um maluco do outro lado, desajeitado de sempre, torturado pelos instantes em que uma resposta naturalmente tardasse... Depois de tantos anos!

Ainda que perdidos nos mundos descaminhos, trilhados com a sinceridade possível e uma objetividade não-sei-onde arranjada...

Ainda que perdida a dimensão da grandeza toda que fora....

Ainda que grandeza nenhuma importasse, se tudo se construiu na simplicidade imensa dos momentos que outrora fundaram tantas possibilidades. Nos momentos em que foram perfeitamente normais e aceitáveis as incredulidades todas, as imprevidências, as grandes e consentidas boutades... E o cansaço. O merecido cansaço.

(São os mesmos momentos que agora me sufocam! Porque no frigir de todos os ovos, na massaroca do bolo geral, tudo se perde na grande falta de sentido, que acaba por nos absolver a todos. De tanto realizar o percurso, o espírito regrado se aquieta numa conformidade fabricada e conveniente. Mas não nos momentos! Essas crateras por onde fumegam os humores menos domados, e por vezes explodem as querências de alguma vida ainda, magma cálido a se petrificar num oceano gelado de mediocridades e presunções.)

Ainda, amiga, que tu estejas achando tudo isso tão estranho...

Saiba que esta tua presença distante, paralela, tem o condão de salvar a minha vida da ameaça das pequenas ruínas (das grandes, lamentavelmente, parecemos a salvo...) que tanto sempre temi. A tua lembrança, suave e fresca, como o vento que esta chuva carrega.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

À procura de Paula




Dois grandes jornais de São Paulo estamparam, há algum tempo, o desespero de um jovem suíço à procura de seu amor brasileiro. Da chamada em letras garrafais, num anúncio de meia página, emprestei o título para esta crônica, logo após do quê raiava despudorada a dupla verve de seu desconsolo: vira-a apenas duas vezes e perdera o número de telefone que ela lhe deixara.

Não vos direi que a fugacidade do momento amoroso seja inversamente proporcional à paixão desencadeada. Soaria demasiado velhaco e já estou em idade em que o estoque de reputação não está para desperdícios. Mas afirmarei sim, ó leitora atenta para os deslizes sentimentais do velho cronista, que a brevidade aguça a impressão deixada na alma pelo objeto do nosso desejo: se a marca foi intensa, sua recordação sempre suscitará um frêmito lamurioso que só faz derramar mais e mais deleites sobre a imagem do amado, corrigindo-lhe pouco a pouco as imperfeições do traço, acentuando-lhe a musicalidade da voz, acetinando a lembrança do toque.

Se, ao contrário, o primeiro impacto foi pífio, o contato efêmero obstará ao tempo seu labor paciente de educador do gosto, da paciência e da tolerância. E como numa antiga fotografia de uma tia-avó que só vimos uma vez, quando criança, a imagem irá se desfazendo, devagar, em meio a uma nostalgia vaga, despejando no coração gotinhas diárias de indiferença, até que se torne candidata a encher o saco de lixo da próxima arrumação das gavetas.

Mas não fosse nada disso, meus caros, a perda do número do telefone é quem dá o inapelável toque à nossa história. Diferente do samba famoso, onde a meia e o sapato ocupam resignadamente o lugar do retrato perdido, o papelzinho desaparecido encheu-lhe o peito de uma obstinação e de uma esperança.

E essa obstinação é que o fez trabalhar durante quatro anos, numa Suíça gelada e distante, a cada dia, em metódica aglutinação dos tostões, em busca da pequena fortuna necessária para apregoar aos quatro ventos a sua paixão. A cada dia se levantava e trabalhava movido pela certeza de que não podia fazer outra coisa, senão ficaria louco. Atormentava-o especialmente, muito mais do que a possibilidade de que estivesse casada ou mesmo morta, a imagem da moça julgando-se desprezada, ante o seu silêncio. Logo ela, a encarnação de todos os seus sonhos. A necessidade de dizer-lhe, dizer ao mundo que fora vítima indefesa do capricho do acaso, impelia-o acima de tudo.

Não sei se Paula apareceu, ou se aparecerá algum dia. O peito desanuviado pelo grito liberto certamente suportará melhor a angústia de sua ausência. E para sempre lhe restará a esperança de que sua amada ouça, no sussurro da última brisa, ou na voz do derradeiro arauto, que Ele a espera.

(março de 1999)

Publicado originalmente em 03 de dezembro de 2004

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Tempos que vão


"Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber" [...]

(Vinícius de Moraes)

sexta-feira, 27 de março de 2009

Modernização


O buteco onde bebia
todo dia
Foi vendido
Pr'uma farmácia.

Continua pedindo
todo dia
Sua dose
Encostado ao balcão.

segunda-feira, 23 de março de 2009

O estrangeiro


Tornado andarilho, esperava reencontrar a Cidade que não via pela janela do carro, enquadrada, conforme uma voz que lhe soava, assim, meio pop. Pois sempre não lhe parecera fascinante a vida que brotava por entre as fachadas desta judiada? A Velha Senhora, recém-desnudada, até parecia querer colaborar. Curiosamente, não era de tantos pudores, como seria de se esperar; um certo constrangimento, que a sua beleza não era senão daquelas que, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais.

Descendo a antiga rua de sua mocidade, pensava no velho Einstein – e só agora, verdadeiramente, o compreendia: o surpreendente não é que conheçamos o mundo, mas que nos seja dado conhecê-lo! Se um dia lhe tivera sido dado conhecer a Cidade onde nasceu e viveu, no sentido plenamente confessional, certamente mais não mais o era.... Onde, meu Deus, a velha galeria? Procurou, em vão, afastar o que julgou uma obsessão de seus cabelos recém-grisalhos. Mas não era possível; dessa vez não se tratava da especulação fastidiosa de hábito. O alheamento realmente o assaltava, como despojamento, como espoliação de suas próprias lembranças. “Não pode ser aqui, devo-me estar confundindo...” O desvelamento que súbito o fazia estrangeiro na rua onde crescera sequer chegava a soar violento, posto que insidioso. E, nisso, acima de tudo, por demais cruel: tudo estava lá, mas não estava! Exílio que se faz no tempo, o que realmente o estarrecia era a constatação da impossibilidade do retorno.

Não só os lugares não estavam mais: assim também as pessoas. Não algumas, determinadas: as pessoas. Não havia propósito com que pudesse atinar. A Cidade não crescera, mudara-se sem deixar endereço, como aquelas tantas inundadas de pretensão e descaso. Mas o que aqui se poderia represar, senão o ressentimento? Vagou a procura de nenhures. Um estranho silêncio, uma calma perturbadora. Onde estariam os que ali não estavam? Preparando o levante? O que se tramava à espreita, de uma forma tão descaradamente dissimulada? Onde teria estado, enquanto eles vieram e tudo levaram? Mas se caminhara por todos esses anos e não se poupara, a vigiar, até, quando diabos foi que tudo se acabou?

E acima de todas as dores, a única verdadeiramente indizível: a de nunca poder saber, de verdade, se não teria sido ele quem acabara.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Declaração de amor politicamente incorreta

Aldir Blanc


O sujeito olha pra espuma da cerveja mas não vê nada. Não está no buteco, nem em nenhum outro lugar. É uma voz, girando no espaço-tempo, em busca não do que foi perdido, mas dos melhores momentos de sua vida:

- Eu estava sentado na sala, no mesmo lugar de sempre, com o velho copo, tomando a bebida que prefiro há anos e anos, quando ela entra, serena, como se estivesse flutuando. Nós nos conhecemos tanto que eu percebo que a quietude é excessiva, que o sorriso paira no rosto como uma sombra, que a intensidade dos olhos é dolorosa e não tem nada que ver com receitas, presentes, gracinhas dos netos. Meu primeiro pensamento demonstra que eu não presto, nunca prestei: ela conheceu algum palhaço que... Mas os gestos angustiados, os gestos de náufrago, provocam uma sensação estranha em mim, como se escutasse a sirene dos bombeiros chegando cada vez mais perto da casa onde moro. Tentando esconder o nervosismo, finjo uma rispidez que não sinto:

- Qualé, viu passarinho verde?

E ela, quanta calma, murmura com suavidade infinita: não é nada. Fui ao médico. Fiz uma ultra-sonografia e ele pediu outros exames... Minha poltrona cai num alçapão e ela já não está na minha frente, de cabelos curtos, ela está de botas, no apartamento de um amigo meu, pedi a chave emprestada, e os cabelos são uma cascata castanho-ouro. Meio bêbado e complemente apaixonado, tento escapar do fascínio com frases de detetive particular americano: não confie em pilantra metido a intelectual. Ele engana que lê Joyce mas acaba dando com o Ulisses na tua testa. Ela ri. Invento uma senha pra afastar vagabundo. É só um cara encostar com muito lero-lero, você olha duro e avisa: isso aqui tá cheio de Pirata Malaio. Sinal de que ela deve cortar o lance rapidinho ou o pau vai comer. Um dia, cheio de conhaque e de amor pra dar, o nariz sangra em pleno ato sexual. Ela se assusta. Metido a machão, pinto uma tira vermelha com sangue, de face a face, passando pelo nariz e canto marra: sou descendente de apaches. Tantos encontros inesquecíveis: no Ebony, no Lamas, todo o roteiro de bares e motéis percorrido. Versões de Tenderly, de I'll Never Be the Same, de Moonlight Serenade, versos, cartas, minha cara, os sapatos também pisam nos meus, e a cueca, no vasculhante do banheiro, seca sobre a calcinha, como um símbolo, em feitio safado de oração, nem por isso menos profunda. Com o tempo, há mortes compartilhadas, horas de dor, mas, acima de tudo, riso, riso, riso, apesar dos dentes e cabelos caindo em mim, da barriga despontando, ela cada vez mais bonita, os dois de óculos para miopia e astigmatismo quase ao mesmo tempo, se olhando e rindo como Tico e Teco, palpitações, taquicardias, acessos de tosse, varizes, pressão alta, mas, nas horas difíceis, ela encosta a cabeça e só dorme nesse peito aqui, ó, nem lexotan faz o mesmo efeito. Eu sou o macho da relação, certo?, tudo bem?, é por isso que estou prendendo o choro, eu preciso ser forte e dizer aquelas frases: isso é pura rotina, não significa nada, vapt-vupt. Adulto da boca pra fora. Porque a tal da voz interior parece a de um rapazola espinhento que perpetra sonetos melosos, que se masturba por ela, que ainda sonha com situações como a da valsa: e tu não flertaste ninguém, olhavas só para mim... Por aí. Lamartine, meu velho, eu babo. E enquanto John Waine da Zona Norte escande as sílabas, eu mesmo cansei de pedir esses exames, ro-ti-na, o pierrô apaixonado acaba chorando e, como nas histórias de folhetim, fala em cisco no olho, puxa o lenço, engasga e então, convulsamente chora. Chora porque não há a menor chance da vida ter graça se ela sofrer, não é possível, Musa não sofre, ela é a linda suburbana da seresta, com lábios que são tâmaras maduras da flora do coração, ela pisa nos astros, distraída, pra ficar só no Orestes Barbosa, ou não vai caber tudo na edição de domingo do jornal. Ro-ti-na, Porque fora da rotina que construímos, meu amor, eu não durmo, não como, não abro a porta, não atendo o telefone, não ouço música, não consigo ler, não quero assunto, a bebida atravessa, o Vasco é um pé no saco, o mar é um deserto, o Rio parece Assunção do Paraguai e, pra ser sincero - espero que não me neguem o direito a esse singelo depoimento - não sei nem fazer cocô.

[para Stefânia, meu amor]

segunda-feira, 16 de março de 2009

Descamisados


Símbolo máximo da paixão clubística, muito mais que o hino ou a bandeira, ela encarna, metonímea perfeita, a entidade mítica e gigantesca do time de futebol: vestir a camisa; honrar a camisa; o jogador sentiu o peso da camisa; faltou camisa para aquele time. Manto sagrado, encerra em si, além das cores e distintivo de uma nação, a galeria de conquistas, recentes e remotas, nas formas de bravos escudos de guerra ou de constelação de estrelas fulgurantes.

Veja-se o apego quase infantil do torcedor à camisa de seu clube. Uns preferem os últimos modelos, perfilando uniformizados em redor de seus heróis, ou desafiando, terras afora, o infortúnio dos que não foram chamados a fazer parte da casta escolhida. Outros, os panos surrados, sudários purificados no sangue de muitas batalhas vividas, relíquias dos espíritos dos antigos guerreiros.

Não estranhe, amigo leitor. Sei que a linguagem está meio fora de moda. É que as expressões que hoje recheiam as colunas, artigos e reportagens de nossas sessões esportivas são bem diferentes: em vez de camisa, é mais fácil deparar “lay-out”; no lugar de espírito, “marketing”; para guerreiros, preferem “profissionais”; e vamos por aí.

Na era do futebol-negócio, a paixão e a reverência às tradições parecem ter de sucumbir à lógica do capital. Daí o descaso que vimos assistindo nos últimos anos dos times de futebol no Brasil com seus uniformes, muito especialmente após a admissão da estampa das marcas publicitárias nas camisas. Certa vez puseram um amarelo-gasolina na sagrada camisa verde do Palmeiras, que depois ficou verde-clara, ganhou listras, voltou para o verde-escuro, perdeu as listras... A do Corinthians, recentemente recebeu tintas vermelhas e amarelas, sem contar o remendo com que tiveram de se apresentar em plena final de brasileiro, em virtude de uma troca de patrocínio em cima da hora ( já falam, até, em dois patrocinadores na camisa ). Já a saga de derrotas do São Paulo no último Brasileirão foi, por muitos torcedores, atribuída a uma maldição verde salpicada na tradicionalíssima camisa tricolor.

O que falar dos calções, então? Uma ridícula determinação - ao que parece, da FIFA - tornou os últimos campeonatos verdadeiros desfiles de aberrações estilísticas. O Corinthians todo de branco, parecia o Santos. O Santos, de calção preto, parecia o Corinthians, tanto que lhe meteram listras, quadriculados e até estrelas!

Daí que desse insosso e tumultuado Rio - São Paulo 99, sobrou-me a gostosa sensação de ver de volta, intactas, as belíssimas camisas de Vasco, Fluminense e Botafogo, pelo menos. Mesmo sabido que nunca por qualquer consciência cultural, mas por absoluta falta de opção. O certo é que a aquela Estrela, livre das más companhias, desfilando garbosa sua solidão reconquistada, fez-me lembrar e sonhar com um tempo em que profissionais eram, simplesmente, Manés.


(março de 1999)


Originalmente publicado em 30 de março de 2005

quarta-feira, 11 de março de 2009

Sport bretão


Escreve-me uma gentil senhora, para que eu discorra sobre a reforma ortográfica e a (não tão nova) onda de anglicismos que salpicaria de “bizarrices desnecessárias” a pureza de nossa última flor do Lácio. Incrementando a relação de damas que venho decepcionando ao longo da existência, sobre o primeiro tema, apenas uma palavra: ignorarei. Quanto ao outro, além de não vislumbrar nenhuma remota utilidade nos meus palpites, calarei em modesta homenagem à esplendorosa Sorriso-Maracanã, cultora inigualável do idioma de Shakespeare . De mais a mais, a coisa já chegou ao nível do esculacho. Dispensa comentários um sujeito que ouvi outro dia dizer, referindo-se à recente separação, “estar planejando um apigreide na sua vida sentimental”; ou o treinador de uma tradicional agremiação futebolística (ultimamente um tanto em baixa), justificando a duvidosa escalação de Fulano na zaga por “terem sido deletadas as outras opções disponíveis”...

Opiniões a parte, já que a semana rescende mesmo a futebol, eis aí um terreno onde o jargão britânico sempre soou não só natural, como até charmoso, evocador daquele tempo em que violão não era ligado na tomada e fábrica de suspensório dava lucro, como diria o saudoso Moraes Sarmento, a quem ando devendo uma homenagem. Minha paixão pelo futebol é em grande parte imputável ao meu velho e queridíssimo vô Dante, que dizia que o Palmeiras conseguira um bom scorer (com o esse chiado e o erre arranhado do Engenho de Dentro) fora de casa; corner (olha os erres aí de novo!), em vez de escanteio; que chamava goleiro de keaper e volante de center-half (soava “alf”, sem o aspirado e com a de “árvore”, na deliciosa pronúncia então vigente da Estação de São Cristóvão para cima). Isso tudo, claro, num jogo narrado pelo speaker!

Talvez seja mesmo o football (que no Rio se diz “futibol” e em São Paulo “futEbol”) a retina cansada do nossos olhos sentimentais, onde tudo é projetado ao inverso. As alhures esquisitas expressões da língua do cantor-jardineiro Elton John (que não é Shakespeare, diga-se) não provocam nos gramados o estranhamento e a irritação que assomam à rebeliana leitora. Ao contrário, soam naturais, familiares, como um dominus vobiscum em fim de missa, um pas de deux em pleno Quebra Nozes!

Paradoxalmente, portanto, na era do marketing e do delivery, quase ninguém mais diz nem “beque” (aportuguesamento que só perde em autoridade ao insuperável “serve-serve”, aquele restaurante sem garçom onde os candidatos a comensais enfrentam mais filas que em venda de ingressos para o setor 1 da Sapucaí...). “Beque” impunha respeito, era malvado; “zagueiro” parece posto da Cavalaria...

Só restou mesmo o insuperável “GOL”, devidamente grafado, a despeito de toda privatização. Até porque nem mesmo o mais tinhorano dos rebelos conseguiria explodir num grito de “TEEEEEEEEEEEEEEEEEENTO” do Palmeiras...

segunda-feira, 9 de março de 2009

Curtas do dérbi


* Um jogo que, na prática, não valia nada. Palmeiras ganhando não seria mais líder do que é. Corinthians ganhando continuaria em segundo, pelo número de vitórias. O empate também não alterou nenhuma posição na tabela, visto que o São Paulo está três pontos atrás. E, afinal de contas, classificam quatro. Prova absoluta e cabal que a tal “prática” não vale nada no futebol. Valem a honra, a coragem, o sofrimento, o heroísmo, o drama, a tragédia, a superação, os simbolismos universalmente transcendentais.

* Parabéns às diretorias desses dois colossos do futebol brasileiro. Organização, senso de oportunidade, promoção, tudo na medida certa para alavancar a nossa combalida paixão nacional. Sobrou, em tudo o que eu disse aí em cima, o que faltou no futebolzinho mixo que os times jogaram em 90% do tempo da peleja. E é isso que importa! Viva a rivalidade! Abaixo as babaquices não-me-toques, abaixo a selvageria imbecilizante.

* Quem, definitivamente, não se conforma com as proporções que o clássico tomou é o São Paulo Futebol Clube (sem negrito, pelos próximos 70 anos). Não importa quantos títulos ganhem, a incontestável hegemonia, o crescimento numérico da torcida; não importa o poder econômico, a arrogância, as picuinhas: eles jamais saberão o que á o sabor de um Palmeiras x Corinthians, Corinthians x Palmeiras. Não sabem o que é uma rivalidade como esta, limitam-se a espiar de fora... E babar.

* Agora, pensando somente no quanto de futebol que se joga hoje no Brasil, digam lá, sem pensar, o que é mais deprimente: um time que toma um gol aos 47 minutos do segundo tempo de um jogador indiscutivelmente sem o menor resquício de condição física para a prática de qualquer esporte profissional, ou outro que precisa se valer do sacrifício (beirando a irresponsabilidade...) do mesmo jogador para fazer, de bola parada, o que todos os demais não fizeram em 92 minutos de jogo rolando?

* Ronaldo provou mais uma vez que é, definitivamente, um grande jogador de futebol. Aliás, é só o que ele é - e já é muitíssimo, num país de tantos monstros das quatro linhas. Justamente por essa grandeza de craque, não precisa que façam dele o que não é, nem maior que coisa alguma. Não é maior, por exemplo, que o grande Corinthians que ora paga o seu salário, nem que o imenso Palmeiras, que sobrevalorizou muitíssimo a dimensão de seu tento epilogal. Nem muito menos que Palmeiras x Corinthians, Corinthians x Palmeiras, um dos maiores clássicos do futebol mundial. Não foi Ronaldo que fez a grandeza do clássico, mas o clássico que proporcionou a grandeza do momento que o jogador pôde protagonizar. Mas isso, carísssimos, a minúscula rede globo e seus lacaios não vão entender (ou admitir) jamais.

* Como palmeirense, torço muito para que os efeitos ditos secundários da bem sucedida estréia precoce do Fenômeno protraiam-se o mais possível. A cortina de fumaça tende a fazer com que torcida, imprensa e diretoria aliviem a pressão sobre a comissão técnica pela bolinha que o time vem jogando. Bem como sobre atletas que, nitidamente, não têm condição de envergar a poderosa camisa alvi-negra.

* Questão matemática: enquanto o time do Palmeiras precisar de três zagueiros, dois volantes, e dois alas para tentar fazer (mal) o que uma dupla decente de beques deveria dar conta, sobrarão apenas três jogadores para armar, lançar e atacar. Será que isso explica alguma coisa?

quarta-feira, 4 de março de 2009

À guisa de satisfação


Esta página, a despeito de sua fatual insignificância, completou no último dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, cinco anos completos no ar. Alternando fases de alguma produção e considerável ostracismo, a verdade é que, aos trancos e barrancos, vai agregando conteúdo. Para quê, exatamente, não sei. Sei é que são poucos os diários cibernéticos, ditos blogues, a manterem-se ativos por um tão grande interstício. A publicação é mais antiga, por exemplo, que as infinitamente mais interessantes e produtivamente insuperáveis páginas de meus queridos Eduardo Goldenberg e Bruno Ribeiro. Durou bem mais que o blogue da madrinha Christiane Assis Pacheco, de quem herdamos a idéia, não o talento. Só perde em longevidade - e em todos quesitos imagináveis, diga-se - para o Pentimento, do incansável Marcelo Moutinho; mas que é escritor, muito diferentemente do autor destas mal traçadas.

Tudo isso para dizer aos nossos três leitores (já foram quatro, acreditem...) que, deixando de lado alguns pudores, e à falta de muita disposição de acrescer novas desimportâncias às tantas aqui juntadas, passaremos a republicar, vez por outra, como discretamente já vimos fazendo, alguns textos antigos. O principal motivo é a aparente saída do ar do antigo provedor weblogger, que abrigou os primeiros dois anos da revista. Muitos dos textos já se encontravam transportados, mas diversos aguardam paciência, tempo e disposição para o “restauro” (por algum motivo, os arquivos gravados como “espelhos” das páginas do antigo blogue eliminam todas as formatações e acentuação – auxílios técnicos são bem vindos...). Esse esforço, portanto, obriga-me a uma revisão do quanto publicado, bem como à necessária e já demasiadamente adiada tarefa de transportar os textos para cá, o que vai continuar sendo feito aos poucos. Os muito datados e demais que perderam, por qualquer motivo, o reduzidíssimo interesse que pudessem originalmente despertar, restarão para sempre sepultos na vastidão infinita do esquecimento.

Às versões republicadas acrescento um liame que não direciona diretamente para a o endereço original, mas para o conjunto das publicações daquele mês. Tudo para que vocês possam não ler outra vez toda a coleção de babozeiras aqui reunida.

Juntando em um só endereço os encaminhamentos que os portais de pesquisa apresentavam para as duas versões do Só dói, o departamento comercial entendeu possível incrementar os acessos chamados aleatórios e, com isso, sobrevalorizar a negociação de nosso espaço publicitário para todas as empresas nacionais e multinacionais interessadas, a exemplo do que recentemente aprendemos com a diretoria do Sport Club Corinthians Paulista.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Feliz ano (de) novo

Hoje começa o ano. Navegante de rio, apavora-me o mar aberto, total. Nenhuma margem, nenhuma praia. Só o mar pela frente, a completa indiferenciação.

Nada mais se pode adiar. Tomaram-nos o grande curinga, a panacéia para todas as coisas que não se queria ou podia encarar: “depois do carnaval a gente vê”, “depois do carnaval a gente senta”... De repente, não mais que de repente (embora a gente já soubesse...), sobra-nos na mão esse infalível mico-preto do dia-a-dia. Todo o turbilhão de aborrecimentos, sobretudo os mais banais – esses insuperáveis - , parece precipitar-se sem licença, como se até agora só estivessem pacientemente esperando o seu fatal anti-jubileu: todo o perdão desaparece, toda condenação é inapelável, todas as dívidas são exigíveis.

Hoje acordei na hora, o despertador nem chegou a tocar. Sem perceber, eis-me de sapato, pasta e blusão (nem estava frio) olhando no espelho pateticamente, como a tentar saber afinal o que aconteceu. Onde foi parar meu vestido de chita? Mas se há alguns instantes Ela me puxava pela mão no meio do largo... Cadê a baiana que agora mesmo ajudei a vestir? Vejo que sumiu de vez a tinta preta atrás das orelhas... A bandeirinha da Vila ainda tremula naquela janela e eu cheguei adiantado quinze minutos no serviço.

O Carnaval na sua euforia esfuziante carrega uma inegável dimensão de morte, de imolação, atualizada nos rituais de libação. O delírio do folião encerra um abandono, uma entrega da própria vida à sua causa-crença. A sofreguidão dessa vivência é a negação de nossa não-vida de filas, reuniões, contas para pagar, telefonemas a dar, imêious a responder.

Vamos, pois, adiante, singrando marços e abris, oh Braga, nessa inescapável certeza do que não somos, rumo a uma visãozinha de margem que não negará a trajetória. Não sou eu quem me navega, quem me navega é o bar. Que nos valha o Senhor dos Navegantes até qualquer praia possível.


Nota: Publicado originalmente em 1º de março de 2004

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Um dia de rei

Daniel Santos e Noca da Portela


Eu fiquei emocionado
Em ver minha escola
Com meu samba desfilar
Já vinha clareando o dia
Minha escola em euforia
Fazia a platéia vibrar
Não sei se chorava ou sorria
Era tanta alegria
Que a batida do meu coração
Se igualava ao compasso da harmonia
No mundo da fantasia
Eu fui rei por um dia

E findou o carnaval
Tudo voltou ao normal
Terminou o meu reinado
Mas o meu nome
Ficou marcado
Pelo povo aclamado
E agradeço ao meu samba...

[para Bruno Ribeiro]

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Cinzas

Então da poesia fez-se a vida
explodida nas possibilidades reinventadas
E a Incerteza imperou no fluido
Tríduo em que tudo brota
de outra razão

E então do dado fez-se o nada
no Interstício todo prenhe de volúpias
de vir

O horror deste dia não mora no silêncio:
o coração ainda banzeia de melodias rodopiadas;
os confetes despedaçam-se aos poucos da alma
E mesmo guardada a fantasia exalará auspícios

A tristeza não cinzenta de saudade:
a Colombina ainda esparge seu perfumoso delírio
E nunca houve um tão Pierrô
Engolido pela lágrima única e própria

As náuseas quartas habitam a realidade
furiosa de certezas.
Vomitam-se reticências sobre as cinzas
de um possível que morre
Mesmo.


Nota: publicado originalmente em 11 de fevereiro de 2005

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Até quarta-feira


E enfim é chegada a hora, uma vez mais, de arrastarmos pelas ruas nossas solidões, do esforço - a cada ano maior - em disfarçar a lágrima sob a máscara. Os joelhos, mais cansados, de novo terão de suportar meu corpo, mais gordo e mais pesado, de um fardo de dores e tristezas e medos. As sapatilhas ainda mais rotas, de tanta lama de tanta estrada, sofrerão novamente para me conduzir por uma jornada errante à procura do que a gente toda julga evidente, mas, em verdade, a cada dia mais se esgueira pelas vielas estreitas e becos recônditos.

Porque o Carnaval, senhores, não é isso que está aí jazendo sob os olhos. Por mais que nos regozijemos, por tanto que nos tenhamos para isso empenhado, não é possível nos deixarmos enganar tão facilmente! Assim eles querem, assim eles agem. Querem nos fazer crer que vencemos, que se renderam; que as ruas tomadas de gente e de música são a coroa da nossa vitória. Mas posso eu acreditar num Carnaval que não seja negação? Que se tenha sob tantas formas oficializado, vá lá! Transformou-se, aqui e ali, em coisas outras que guardam, indiscutivelmente, parte da beleza e força de sua origem popular, a despeito de não serem mais o Grande Carnaval! Este, ao contrário, continua tendo o poder imenso e perfeitamente ordenado (de uma ordem outra, por certo) de transformar e subverter. E por isso não se deixa colher em qualquer esquina repleta de barulho e animação. Refugia-se nos pequenos gestos de gentileza, na cumplicidade dançante, nos sorrisos envelhecidos.

Envelhecidos, sim, porque não posso crer num Carnaval que seja jovem! Já o foi, quando a juventude, recolhida à sua devida condição observante, não era mais que um grande ímpeto reprimido de vozes e humores. Mas não pode mais sê-lo, quando tudo quer se ditar pelas diretrizes da vitalidade, da disposição, da boa saúde. Pois não é o Carnaval o filho dileto da pulsão de morte? Poderia um tamanho caudal, a movimentar tantas comportas, senão pela força do represamento?

Ouço a entrevista de uma cantora que anda na moda: “Vou para o Rio, desfilar na Portela e no Cordão da Bola Preta”. Temo pelo Carnaval toda vez que se põe a reafirmar os padrões que, a fórceps, nos governam. Quando se rende desmedidamente às exigências da oficialidade ou do padrão “civilizado”. Rezo pelo Carnaval, quando percebo que toda nossa admiração pelos pioneiros que plantaram as sementes dessa árvore frondosa não foi capaz de nos transmitir sua coragem de enfrentar a repressão, seu destemor de desafiar a ordem constituída. Choro pelo Carnaval que não prescinde do carro de som, da autorização da prefeitura e do cordão de isolamento.

E chorarei e rezarei e temerei ainda mais e de novo - e sempre -, mas só a partir da quarta-feira. Que agora não são mais horas, não há mais tempo para depravações. Havemos de nos perder na multidão, a cantar um samba do Elton e do Hermínio:

Vou buscar aquilo que foi meu
E que no mundo se perdeu
Qual folhas que o vento soprou no ar...
Ter a mesma paz de antigamente
Sair cantando por cantar
Qualquer canção sob qualquer luar


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Está inteiramente desvirtuada a coreografia dos mestres-salas

Jota Efegê





O mestre-sala, antes denominado baliza, era uma das figuras de destaque nos ranchos. E continua sendo. As embaixadas, os grupos de sambistas precedidos de suas baianas no reboleio cadenciado ao ritmo de um conjunto de percussão que, evoluindo, vieram a se designar escolas e, hoje, faustosamente, são a principal atração do Carnaval carioca (salvo melhor análise, talvez a única), não o incluíam em seus cortejos.

A Deixa Falar, tida e havida como primeira escola de samba, só incorporou o personagem do mestre-sala (que foi o Benedecto Trindade) quando tentou se tornar em rancho e fez um único e decepcionante desfile.

Numa reportagem publicada n'O Globo, em 21 de maio de 1973, quando da morte de Maçu (Marcelino José Claudino), que havia acontecido a oito do mesmo mês, no depoimento exato, preciso do Cartola, do Carlos Cachaça e outros iniciadores da Escola de Samba Estação Primeira, do Morro da Mangueira, foi afirmado ter sido ele, o velho Maçu, quem introduziu o mestre-sala nas escolas de samba e quem também primeiro o figurou. Aprendeu com o famoso Hilário Jovio Ferrreira (Lalau de Ouro), Getúli Marinho (Amor), Maria Adamastor, Theodoro (Massada) e outros, todos peritos na coreografia com que esbanjando elegância em filigranas e arabescos conduzem a porta-estandarte carregando seu pequeno e delicado estandarte.

Personagem que nos ranchos sempre se apresentava elegantemente trajada como figura destacada, ou principal, do enredo, calçando sapatos de salto alto, cabeleira empoada e, na mão, um lenço alvo, seguro displicentemente, ou, se preferia, um delicado leque com que abanava graciosamente a porta-bandeira, seu porte, sua linha de fidalguia, sugeria uma figura buscada em qualquer corte, lembrava uma figura palaciana. A sua dança, a evolução coreográfica feitas ao ritmos das bonitas e pomposas marchas que davam cadência ao desfile dos ranchos (Ameno Resedá, Flor do Abacate, Lírio do Amor, Recreio das Flores e seus coirmãos) era sóbria, de finura sempre observada.

Os mestres-salas de agora, os que seguindo a trilha do mangueirense Maçu, o pioneiro, estão ao lado das porta-bandeiras e são vistos em todas as escolas de samba, ainda capricham no vestuário, ainda ostentam vistosas perucas, calçam sapatos delicados, mantém com a melhor observância o personagem que o sempre lembrado Hilário Jovino Ferreira trouxe como figura de destaque dos graciosos ranchos de sua terra, a Bahia, e lançou-os no Carnaval de Sebastianópolis integrando-se em vários deles: A Jardineira, Filha da Jardineira (lembrar “Ó, Jardineira, por que estás tão triste?”...), Ameno Resedá, Reino das Magnólias, Riso Leal, e mais alguns.

Fugiram, porém, da elegante e discreta coreografia que os antigos mestres-salas dos ranchos, os seguidores do estilo do professor Hilário, exibiram ufanosamente nos desfiles da avenida Rio Branco conduzindo suas bonitas porta-estandartes. Nenhum deles, da antiga estirpe (Getúlio Marinho, Theodoro, João Paiva, Olympio, Piraquê, Bull-Dog, João Borodó e Camarão, citados no caso), iam além de desenhos coreográficos. Eram, apenas, passos semelhantes aos de um balé, discretos, mas que na leveza da sua execução provocavam aplausos, arrancavam palmas.

As evoluções acrobáticas de agora, a coreografia desenvolta, espetacular, compromete a elegância do mestre-sala, não é condicionante com o seu vestir. Embora seja aceita nos concursos, nas competições nas quais as escolas de samba disputam prêmios e eles, os mestres-salas, em muitos desses certames são a atração, são o realce, tal coreografia que executam com predominância de lances acrobáticos distanciou-se, e muito, do que mestre Hilário ensinou a seus alunos.

(in Figuras e coisas do Carnaval carioca, Rio deJaneiro: Funarte, 1982, pp 270-272. Publicado originalmente em O Globo, edição de 02 de fevereiro de 1979)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Marcha do Ó

Ildo Silva e Fernando Szegeri


Toda essa gente espalhada na Cidade
Ouve o chamado dedilhado no bordão
Desperta do torpor da sobriedade
por um canto de verdade a ecoar no coração
Se ajunta numa imensa fantasia
tecida de melodias, costurada num refrão:

Eu quero mesmo me perder nesse meu canto
onde a dor pra longe espanto
e jamais me sinto só
Se quer receita para ter felicidade
E afogar toda saudade
Não tem nada como o Ó

E então de terno chegam arlequins
Pierrôs de calça jeans
Colombinas de além-mar
Em braços no papel de serpentinas
Desastradas bailarinas
Se desmancham a sambar
Boêmios conduzindo o estandarte
Se entregam à sua arte
De beber e conversar

Choro rasgado rompe o peito dessa gente
Inimigos do batente rebatendo todo mal
Ouço um pau d'água cochichando meio atônito
Em tom afromacarrônico em louvor ao Carnaval

Se quer receita para ter felicidade
E afogar toda saudade
Como o Ó não tem igual

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Pierrô


Ele nasceu italiano, lá pelos mil e quinhentos, entre os tantos personagens da Commedia del'Arte, título genérico pelo qual ficaram conhecidas inúmeras pantomimas burlescas e itinerantes, de enredos variados sobre uma gama de personagens arquetípicos mais ou menos constantes, caricatamente representativos da tessitura social renascentista. Freqüentemente descrito como o servo correto, leal e um tanto ingênuo, em oposição à rebeldia malandra e um tanto calhorda dos também servos arlequim e colombina, não era contado entre os personagens principais, nem ao menos entre os mais interessantes ou complexos. Destituído da malícia e picardia de seus pares, sem as aberrações morais caricatas dos velhacos pantaleão, capitão, doutor, briguela entre outros, petrolino ia aparecendo aqui e ali no exercício de seu papel coadjuvante.

O italiano petrolino apresenta-se como o francês pierrot possivelmente a partir do Don Juan de Molière, mas só tomará os contornos solitário e melancólico no florescer do romântico século XIX, quando o ator franco-boêmio Jean-Gaspar Debureau reelabora e incorpora definitivamente o personagem (como fará Chaplin com seu Carlitos, quase um século depois), inclusive fixando as características físicas e morais que povoam nosso imaginário até os dias que correm.

É claro que esse ingênuo sentimentalismo, aliado à condição de preterido, de perdedor potencial, bem como à sua aura um tanto ausente e avoada, seria um prato cheio para a atávica melancolia de nosso coração tupiniquim, que imediatamente incorpora o triste palhaço com a força e a representatividade que não possuia na origem. O grande Nelson Rodrigues, que talvez como ninguém mais tenha sabido dissecar o caráter do brasileiro de seu tempo, conhecedor maior de nossa alma de vira-latas, sintetizou com a maestria verbal que lhe era característica:

”[Sou] o sujeito mais romântico que alguém já viu. Desde garotinho sonho com o amor eterno. Na minha infância profunda, os casais não se separavam. Havia brigas, agressões de parte a parte, insultos pesadíssimos, mas o casal não se separava. A separação era uma tragédia. Em último caso, a mulher apelava para o adultério. Sou romântico como um pierrô suburbano”.

(in: RODRIGUES, Nelson. Entrevista concedida a VAN STEEN, Edla. Viver e escrever. Vol.3./ 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. apud Aeronauta)

Romântico, ingênuo, sentimental, avoado e trágico. Lembra alguém?


***

Sabemos que nada mesmo há no espírito brasileiro que não vá desaguar inapelavelmente no Carnaval! Olha lá o pierrô, acompanhado de colombina e arlequim, espalhando-se pelos bailes, préstitos e concursos de fantasias por toda a imensidão desse torrão tropical. Mas é claro que nos estamos dando a liberdade de inverter poeticamente os fatos. A transposição se processa possivelmente a partir do carnaval veneziano, onde as máscaras de baile são herdeiras diretas da tradição teatral que lança suas raízes até os tempos qinhentistas da Commedia del'Arte. Desde os salões brasileiros, onde a elite tupiniquim a partir do séc. XIX revela especial dedicação em macaquear os hábitos sociais da burguesia européia, é que as tradicionais figuras vão ganhar as ruas e o coração do povo. Ainda que entre o céu e a terra haja tanta coisa mais...

O fato é que se Debureau encarnou tão francesamente o personagem burlesco da renascença, nós cá também tivemos quem sintetizasse nosso definitivo, nosso emblemático pierrô. Atendia, na vida civil, por Zacharias do Rego Monteiro, irmão do conhecido radialista Gastão do Rego Monteiro, locutor celebrizado na Rádio Record e Rádio Clube do Brasil. No intuito de substituir o sisudo e tão pouco carnavalesco smoking, a fim de quebrar a formalidade dos bailes do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o carioquíssimo folião exibiu seu primeiro pierrô no carnaval de 1950. A novidade e o impacto da beleza dos costumes que desfilava rapidamente celebrizaram sua figura como identificada ao tradicionalíssimo clown saltimbanco. Dos bailes do Municipal, Zacharias passou, anos depois, a reinar soberano nos concursos de fantasias, ao lado dos não menos incensados Clovis Bornay e Evandro de Castro Lima. Ao contrário de seus pares, quis antecipar-se à decadência física, trajando seu último pierrô durante os dias de folia do ano da graça de 1965. Muito antes do ocaso dos famosos certames, entre os quais se destacaram o do próprio Teatro Municipal, os do Hotel Glória e do Clube Federal, já se houvera retirado oficialmente das passarelas.

Afastado dos desfiles, mas não do ti-ti-ti do raisoçáite carioca, até sua morte em 1986, o eterno pierrô manteve-se ativo, como uma espécie de “consultor” para assuntos de carnaval e relações públicas de uma famosa cadeia de joalherias. Virava e mexia, aparecia um pitaco seu nas páginas do Cruzeiro, ou da Manchete, sucedâneos sessentistas das atuais (?) caras e vejas (a minúscula é proposital: pioraram as revistas ou piorou o país?). Sua última declaração pública conhecida: “Apesar de carnavalesco, sou tristonho e sonhador por natureza”. Pudera haver outro assim tão... pierrô?



Nota: Ora direis que esta página não se costuma dedicar a personagens das colunas sociais. É fato. A homenagem singela que aqui prestamos ao famoso carnavalesco justificar-se-ia tão só pelo meu pessoal fascínio (talvez atávico) pela figura do pierrô, que encarna tão poeticamente a antítese necessária da alegria desmesurada que cada vez mais se procura fingir nos dias de Momo. O Carnaval pertence por definição aos tristes e aos melancólicos, aos oprimidos e impotentes, e não é senão o grito máximo de sua miserável condição. Aqueloutros – os “alegres” - simplesmente não entenderam nada. De mais a mais, Zacharias foi uma figura emblemática da história do Carnaval da minha mui amada cidade de São Sebastião, que empresta nome a este canto, ainda que não seja da faceta da festa que mais nos seduza, que nos empolgue. Os desfiles de fantasia e os bailes elegantes são peças que compõem o mosaico complexo e fascinante do Carnaval, juntamente com as escolas de samba, grandes sociedades, ranchos etc., independentemente do papel que ocupem na sua grandeza, dignidade e potencial libertário.

Mas a verdadeira e mais poderosa razão desta lembrança é que Zacharias era filho de João Batista do Rego Monteiro; este, por sua vez, filho de Jesuíno Rodolfo do Rego Monteiro e Maria Inácia Fernandes de Oliveira, que vêm a ser bisavós de minha avó materna, meus tataravós, portanto. Daí, que o que o imortal pierrô seja meu primo em sétimo grau. Feliz o homem que conhece o nome de seu pai, de seu avô e de seu bisavô; para saber que nome dar a seus filhos, netos e bisnetos.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Carnaval (II)



Então será assim um tão Carnaval
De repente liberto daqueles
uns quatro dias
Liberto mesmo dos dias todos
E das todas vidas - e lidas
E culpas
Num Carnaval que haverá

Só no espaço
Só no encontro

E seremos uns só travestidos
Das fantasias que a marra tanta
Teimamos
Que a tanta incúria
Deixamos

Sós no espaço
Sós no esconso

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Sentinela


Uma tarde abafada de 31 de dezembro, à beira de um lacunoso mar de pequenos pesqueiros coloridos, só se pode aplacar satisfatoriamente à base de muita conversa fiada e alguma cerveja. De repente alguém emerge da modorra e a mudeza se quebra por uma voz invisível, naufragada em franjas de uma grande rede branca:

- Quem será que ganhou a São Silvestre?

O riso, muito mais que a Filosofia, é a verdadeira medida do espanto! Um riso assim tão geral quanto frouxo, a denunciar a falta de perspectiva daquela dúvida tão deslocada no tempo-espaço. Eu mesmo, escolado na faina de tourear canoas dissidentes, achei graça da desimportância da informação esperada.

Mas não era assim, na verdade, na São Paulo de antigamente. A corrida que ficou famosa pelo nome do santo que se celebra na última féria de dezembro era um acontecimento, uma festa, pra um povo de uma cidade tão despojada de motivos para celebrar. Na falta das ondas para se pular, de batuques para Iemanjá, como se podia divertir, no fim de ano, a gente operária dos bairros centrais de uma cidade garoenta que já então se acinzentava? Concentrar-se ao longo do trajeto, interessar-se pelos concorrentes, torcer até, era uma maneira do paulistano arrumar assunto para integrar os bebentes e motivo para não ficar em casa. Para as “famílias”, o remédio para não ficar fora do assunto do dia seguinte era acompanhar as transmissões preto-e-brancas, cheias de chuviscos (não estou com paciência para explicar para a geração teveacabo o que eram os chuviscos...), da indefectível TV Gazeta, vejam vocês...

Depois passaram a corrida para a tarde - porque afinal as coisas tem que ir para seus devidos lugares, e o canal de televisão que põe dinheiro para a prova não morrer (que não é mais a TV Gazeta, vocês já devem imaginar...) tem seus interesses em faustões e xuxas, não se pode deter por uns ítalo-nordestinos bebuns e desocupados – e acabou-se o sentido e a graça da história.

Mas não era da São Silvestre que eu queria falar. A enrolação do intróito foi só para recomendar, uma vez mais e vivíssimamente, a leitura do indispensável blogue Anhangüera (com trema, por coerência), em que meu irmão Arthur Favela Tirone desfila um sem número de histórias comoventes de uma cidade – particularizada num pedaço tão eloqüente, a sua velha Barra Funda – que insiste em resistir e respirar, a despeito de toda lava que por sobre ela vomitam incessantemente os vulcões da mercantilização, do individualismo, da banalidade. Como esta recente, justamente sobre a corrida famosa, que li nos primeiros dias deste ano, tamanhamente vexado da minha dessintonizada irreverência de dias antes. Uma narrativa regada a melancolia e sensibilidade, fruto de uma atenção cuidadosa com as coisas importantes e verdadeiras da vida.

E para falar dele, do homem que não precisa de areia, nem de mar: sua praia é o México! A este sentinela do espírito mais recôndito – mas pulsante! - desta digna e aviltada cidade, neste dia, meu melhor brinde. Bem como ao homem com quem passou inacreditáveis nove meses abraçado, e que nasceu com nome de anjo.


[para Mimi e Denise]

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Simplesmente Denise


“Denise era o nome de uma ótima cantora que eu gostava muito de ouvir nos finais da década de 80 em bares saudosos como o Clube do Choro e o Bar da Virada, muitas vezes em companhia do não menos saudoso Jorge Costa, um dos melhores e menos lembrados compositores do samba de São Paulo (embora fosse, de origem, alagoano e tivesse sido criado na Mangueira). Bela voz, com aquela bossa e versatilidade bem “noite”, que lhe permitiam transitar sem sustos de um samba-canção bem “alaíde” até um sacolejo mais “alcione”, passando por “ademildes” e “beths”.
Ano passado descubro uma outra Denise, assinalando presença marcante numa das faixas do primeiro CD dos rapazes do Quinteto em Branco e Preto, dedicada aos sambas da Velha Guarda do Camisa Verde-e-Branco. Soube também, na época que ela comandava a função num local onde se reuniam vários dos integrantes da ala mais nobre da escola da Barra Funda (sobre o qual vou escrever para vocês na próxima semana). Mas minha maior e melhor surpresa foi descobrir, noutro dia, que as duas Denises são, na verdade... a mesma! E pela canja que ouvi na oportunidade, sem falar na própria gravação citada, parece que está mesmo em plena forma.”


Escrevi este texto em junho de 2001, quando editava a seção paulistana das notícias da Agenda do Samba & Choro. Na ocasião, ninguém menos que mestre Nei Lopes tascou lá na Agenda o seguinte comentário: “Denise é uma das maiores cantoras de samba do momento. E já está mais do que na hora de ela gravar um disco só dela. Alô, gravadoras descompromissadas com o pop e com o jabá!!!!!”. Passados, pois, oito anos, o primeiro disco dessa estupenda intérprete finalmente foi gravado e só está esperando a mixagem para sair. A grande Denise Camargo confidenciou semana passada à minha querida Railídia, outra grande intérprete do samba de São Paulo, que a única coisa com que ainda sonhava era poder ver seu tão esperado trabalho finalmente na rua. Talvez uma estranha premonição. Na madrugada de sexta-feira para sábado, depois de se apresentar numa roda de samba na quadra do Camisa Verde-e-Branco, na festa de escolha dos novos Cidadãos Samba da cidade, Denise sofreu um enfarte fulminante. Morreu, na flor de seus 59 anos, como todo sambista aspira: “numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”.

Convivi com ela em dois períodos distintos das nossas vidas. Na época citada no trecho acima, do final dos anos 80 até meados de 1994, quando a morte de Jorge Costa, o fechamento de alguns importantes redutos do samba e outras cositas que não merecem vir à baila, começaram a afastar-me do ambiente das rodas e escolas. A mocidade era risonha e franca, e nós bebíamos, cantávamos, falávamos de samba e da vida, como convém a bons companheiros de noite. Anos depois, reaproximado das coisas e da gente do samba, reencontramo-nos por ocasião da apresentação a que a notícia se referia. Só então comecei a conhecer pra valer a grandeza desse ser humano excepcional e sua importância na história das escolas de samba da cidade de São Paulo. Vi poucas pessoas tão unanimemente queridas; sobretudo num ambiente onde a competição, a rivalidade e - por que não dizer? – as vaidades muitas vezes sobrepõe-se ao valor pessoal de um artista. Tive a honra de tornar-me seu amigo, conhecer sua belíssima família, sua casa. Nunca mais deixamos de nos encontrar, numa roda aqui, num evento ali, sem os mesmos descompromissos notívagos do passado, mas aprofundando um respeito e um bem-querer mútuos que me orgulham como poucas coisas nesta vida.

Denise foi uma intérprete excepcional, uma amiga querida, um baluarte do samba paulistano. Comandou históricas reuniões de sambistas, como no Em cima da hora, no Bairro do Limão, e o “angu da Denise”, no tradicional “Cantinho do Peruche”. Integrava a Velha Guarda de sua gloriosa Unidos do Peruche, escola das mais queridas e respeitadas nesse chão de Piratininga. As traiçoeiras águas de janeiro e fevereiro, que são misteriosamente pródigas em carregar sambistas para a grande batucada que nunca termina, já tinham-nos levado este ano o grande Xangô da Mangueira, Casemiro da Cuíca, Dona Edith e a queridíssima Doca. Agora, foi-se a nossa amada Denise. Choram Portela, Estação Primeira, Peruche. Chora o Camisa Verde-e-Branco, Mocidade Alegre, Unidos de Vila Maria, Rosas de Ouro. Caudalosos prantos correram pelas ruas da cidade, neste sábado, para desaguar na quadra histórica, ali na Ponte do Limão. Os inúmeros bambas que ali estiveram puderam reverenciar a memória de Denise num grande pagode-homenagem, como ela sempre quis que fosse. Quase podíamos ouvir no meio da noite quente sua voz inconfundível a nos consolar, no samba de Ideval e Zelão que ela consagrou pelos quatro cantos da cidade:

A lua vem surgindo
sereno do céu vem caindo:
É madrugada!
Eu já afinei a minha viola
peguei paletó vou me embora
pra batucada!
É lá que eu esqueço a saudade
e sonho com a felicidade
que eu desejei
E canto no meio da moçada
Esqueço aquela malvada
que eu tanto amei
Não sei por quê
Não sei por quê
Felicidade dura pouco para mim
Não sei por quê
Tristeza so no samba é que tem fim...