quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

Merry Christmas, Seu Nozinho!

Nei Lopes


- Natal bom era naquele tempo, quando a gente comia do bom e bebia do melhor ainda! Não que durante o ano a gente não bebesse nem comesse. Mas Natal era dia de juntar pé com cabeça, morrer todo mundo abraçado que nem filhote de gambá.

- Ih! Já está Seu Nozinho, de novo naquele papo careca de "meu tempo", naquele caô de bonde Irajá, lotação abaixadinho. Pô, coroa, já era! O esquema agora é outro, tio!

- Naquele tempo, aqui no morro, a gente amarrava cachorro com lingüiça mas tinha respeito. E Natal tinha pastorinha, folia de reis, castanha, rabanada. O vinho era Telefone. Mas a gente tinha dinheiro pra comprar um, dois, três garrafões, daqueles com palhinha..

- Ninguém está mais nessa, não, maluco! O lance hoje é progresso, é pra frente, é vamo que vamo! O que a moçada quer do Natal é grana do bolso da bermuda, um bom "naique" no pé, um namorado ou uma namorada pra ficar... Vaz Lobo hoje é uma cidade. E Natal é uma festa como outra qualquer: negócio de "xópin", mesmo. A diferença é que tem o especial do Roberto Carlos.

- Esse negócio de Papai Noel e árvore de Natal, veio depois, muito depois. O que tinha era presépio, com as figurinhas lá, os santos, os reis magos, os bichos... Era cada um mais bonito que o outro. E quem podia, até fazia com movimento, as figuras mexendo a cabeça. Às vezes tinha até água caindo, fazendo cascata.

- "Presépio"! Nome besta! Lembra "presepada". E Seu Nozinho quando toma uns negócios fica mesmo presepeiro. Presepeiro e cascateiro. Onde já se viu Natal sem árvore nem Papai Noel?

- E digo mais. Lá em casa, onze e meia o Velho sentava na cabeceira da mesa. Aí, é que a gente sentava também, a família toda reunida. A primeira caneca de vinho, que era o sangue de Cristo; a primeira rabanada, que era o pão; e o primeiro bolinho de bacalhau, que era o peixe, isso tudo era dele, que abria os trabalhos. Depois é que a gente caía dentro. Com educação, devagarinho, porque juntar pé com cabeça, mesmo, só depois que o Velho ia dormir. Mas antes de dormir, Ele ficava "alegre". Uma vez por ano. E aí pegava o violão e a gente começava o samba, versando no partido.

- Natal com samba ! Eu, hein!? Coisa de coroa, mesmo! Não dá nem pra pensar no Papai Noel com aquele chapeuzinho de velha-guarda. Tremenda bobeira! E família, maluco ?! Família aqui, sou eu, que sou pai, mãe, avó, tudo ao mesmo tempo...

- Quando veio aqui pra Jaqueira, o Velho quis seguir a tradição lá de Minas. Mas não deu. Lá, como ele dizia, o Natal ia do 25 de dezembro até 6 de janeiro, dia dos Santos Reis. Dia 25 era o aniversário do Menino Jesus; dia 27 se comemorava Nossa Senhora do Rosário; dia 28, São Benedito; e no dia 6 fechava com chave de ouro. Ele contava que era festa de arromba mesmo, nas casas e na rua. Com foguetório, procissão, mastros, bandeiras. E os congos e moçambiques na praça.

- Foguete, aqui a gente sabe que tem utilidade. E é o ano todo. Agora, esse papo de (como é que é?), "congo", "moçambique", parece coisa de macumba. E macumba também é um bagulho da antiga. Aqui no morro, hoje em dia, eu acho que (deixa eu ver) pelo menos uns sessenta por cento do povo é crente. Eu, mesma, recebi Jesus ano passado... Caraca ! Eu era muito doida. Agora, estou numa boa!

- É... era outro Natal!E eu vou nessa! Até mais!

- Hmmm. Seu Nozinho vem vindo pra cá. Não vai falar bobagem pra ele, viu Maicon!? Tem, que respeitar os mais velhos!


***

- Como é que foi o Natal, Marli, tudo bem?

- Foi tudo na paz, Seu Nozinho! A gente ficou aqui orando...

- E você, Maicon? Papai Noel chegou junto?

- (...)

- Que cara emburrada é essa, moleque?

- Ah, Seu Nozinho! Esse menino anda impossível. Queria porque queria um "mini-gueime" ou um "páuer-renger"..

- ???

- Eu disse que não ia dar. Depois, cismou com uma pistola. Eu fiz pé firme e ele armou o maior banzé aqui, dizendo que tinha que ganhar pelo menos um revolvinho. Aí, eu falei pra ele que Papai Noel não gosta de menino teimoso.

- Isso mesmo. Papai Noel só gosta de menino sangue bom.

- E sabe o que esse menino, que nem sabe falar direito, me respondeu, seu Nozinho?

- O quê ?

- "Quero que Papai Noel se f...!" . Vê se pode?

- Deixa isso pra lá, minha filha. O Natal já não é mesmo mais aquele!


quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Papai Noel de Camiseta

Ivan Lins e Celso Viáfora


Papai Noel irá chegar de camiseta
Metido num chinelo e de bermuda jeans
Tocando um agogô em vez de uma sineta
Cantando do xará o "Palpite Infeliz"
Aí será Natal, a noite vai ser mais feliz

Estenderá uma toalha na sarjeta
Em qualquer praça de subúrbio do país
Trará cachaça, arroz, feijão e a malagueta
Doce de leite, bala de goma e quindins
Aí será Natal, a noite vai ser mais feliz

E surgirão blocos mirins
Em suas camas de jornal e drag queens
Os solitários da paixão com um tamborim
Alguém trará um violão, um bandolim
E a multidão vai sambar na batida do sino

Aí no morro nascerá mais um menino
E no primeiro sol virão os bem-te-vis
Num dia de Natal a gente pode ser feliz!




quinta-feira, 16 de dezembro de 2004

Lapa


Nestes tempos em que a Nação Brasileira clama por luz e verdade sobre as trevas de sua própria vergonha, exigindo a abertura de todos os arquivos sobre as operações "anti-subversivas" do governo militar, há que se lembrar o 16 de dezembro.

Há exatos vinte e oito anos um rio de sangue e opróbrio inundou a Lapa paulistana, onde moro. A ditadura brasileira cometeria sua última grande covardia, emboscando de maneira vergonhosa, na casa da Rua Pio XI, os dirigentes do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, assassinando os camaradas Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, sobreviventes da Guerrilha do Araguaia.

A repressão à Guerrilha foi uma das mais sangrentas e implacáveis ações estatais de combate a movimentos de sublevação, talvez somente comparáveis, em termos de rancor e violência, à derrota dos Cabanos no Pará e ao massacre de Canudos. A ação pérfida da Rua Pio XI revelou a obstinação do governo brasileiro em exterminar todos os germes e vestígios da mais significativa ação armada de resistência ao regime instaurado manu militari em 1964.

A verdade sobre o Araguaia não pode mais tardar.

Mesmo que o último guerrilheiro na selva hoje caia
Brotará eternamente do chão do Araguaia
A esperança de um povo a traçar seu destino


Viva a liberdade!
Viva o socialismo!
Vivam Ângelo Arroyo e Pedro Pomar
Heróis do povo brasileiro!


quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Os dias que vão


E me perguntas se os dias estão realmente cada vez mais belos, ou seriam só os teus olhos. Mas sou a última pessoa a quem poderias indagá-lo, porque coisas estranhas vêm-me sobrevindo e há causas objetivas para se desconfiar do juízo. E, no fundo, eu torço mesmo para que os dias estejam, na verdade, frios e nublados - como certas almas tristes - e que só eu e tu estejamos a percebê-los assim cálidos e inebriantes. Porque aí saberia que não estou só.

Porque os teus olhos são mesmo a mais linda aurora raiada em sete verões, e vereis os especialistas consultados afirmarem que, sim, os dias têm a estranha ânsia de refletir e rebrilhar acima de toda concorrência. Porque são esses os dias que me estão fazendo comer menos e dormir menos e beber mais. E um beber tão isento de mágoa e desengano, como há muito não se registra.

Porque dias assim hão de ter o condão de nos fazer trabalhar e beber e dançar e ouvir música e ir ao cinema. Ir ao cinema... Nesses dias não há lugar para a sombra. "O que é o amor? senão o meu desejo iluminado"... Porque nenhum sol pode encandear o vácuo, o espaço puro sem o que lhe reflita o brilho. Porque hoje eu sou a lua nova na carona da luz irradiada desses dias verdes.

Porque a paz roubada não será o caminho para o lamento, o destempero e a prostração. Porque o amor não é um vazio a ser preenchido, não é a ausência da metade. É a plenitude do inteiro a precipitar-se na sua negação e, assim só, engrandecer-se. "Meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo"... Eu só posso amar na afirmação de mim, na multiplicação das minhas possibilidades, na expansão do meu ser. Porque o amor que é carência, necessidade e dependência é buraco negro a tragar a luz, a transformá-la na matéria escura do nosso interior.

E assim me faço mais nu, mais externo, mais homem. E tu és a estrela escancarada se derramando. Que venha todo o calor dos teus dias e dos teus olhos sobre a minha cabeça. E que o reflexo se faça encontro, o encontro se faça desejo e o desejo se faça volúpia. Porque todas as ânsias far-se-ão vida. Porque todas as angústias hão de nos reafirmar.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

Epistemologia de buteco


Meus amigos, largar de beber não é o pior. O impossível, mesmo, é largar o butiquim.

Porque o buteco é o templo da nossa religião cujo fim, como nas demais, é construir uma outra vida que não a nossa. Ali residem os oráculos magistrais, as tiradas únicas, a sabedoria curta e grossa, espontânea e maliciosa do descotidiano.

O bar é o laboratório da nossa irrealidade, onde podemos enredar outras histórias, viver outros papéis. Há os fixos e pré-definidos: o dono-do-bar e o garçom (que ao contrário do que muita gente acredita, não são profissões: são funções litúrgicas), o bebum, o humorista, o poeta, o galã, a mais-gostosa. E há os rotativos, que podem ser assumidos, conforme a necessidade e ocasião, por qualquer um: o técnico de futebol, o cientista político, o psicólogo, o sacerdote, o jornalista, o crítico de cinema, o anatomista.

Urge construir-se uma adequada epistemologia do butiquim. O que se discute no bar é produto do descompromisso das relações que nele se tecem. Descompromisso com o porta-afora, em última análise. Porque não importa se o filme é bom, não importa se o escrete nacional está jogando mal ou se o Rodrigues, que estava saindo com a Claudinha, é ou não um canalha. A correspondência com qualquer dado da "realidade" do que se diz ou do que se faz dentro de um bar importa tanto para os objetivos da cerimônia que ali se celebra quanto, para o espetáculo, a dor de barriga do marceneiro que construiu o cenário.

Há outras formas de viver-se realidades alternativas, é certo. Há as brincadeiras de criança, os livros e o cinema. As primeiras, não nos são mais dadas - ao menos da forma necessária a que se produza o efeito a que aqui se alude. Os últimos terão sobre as nossas queridas espeluncas a vantagem de normalmente não legarem náuseas e dores de cabeça no dia seguinte. Em compensação, o final da trama não depende do nosso desempenho.

E haveria também – ai! - o amor. Nele outrossim transportamo-nos para um universo que não o nosso, para um entendimento outro, para ver a vida atrás de outros olhos. Mudamo-nos do conforto das nossas certezas para o néscio das profundidades alheias. E ali da mesma forma importarão bem pouco as objetividades para as quais os amigos insistirão em alertar. A desvantagem, porém, é evidente: a ressaca também é certa e o fim da história depende ainda menos de nós.


terça-feira, 7 de dezembro de 2004

O resto imortal

Paulo Leminski


Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor de mim ficasse, já que sobre o além sou todo dúvida. Queria deixar aqui neste planeta não apenas um testemunho da minha passagem, pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos onde não crescem mais capim.

Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquina objetiva, fora de mim, sobrevivendo a mim.

Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado.

Um dia, intui. Essa máquina era possível.

Tinha que ser um livro.

Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como os demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse.

Sobretudo, um texto que sentisse como eu.

Ao partir, eu deixaria esse texto como um astronauta solitário deixa um relógio na superfície de um planeta deserto.

Claro que eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno. Mas pessoas não são previsíveis. Um texto é.

A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar na escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua dinâmica, traduzido para o jogo de suas manhas e marés.

Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só poderia ser desejado. Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento.

Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a todos os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto estava vindo ou não.

Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida humana inteira. Na melhor das hipóteses.

Uma questão colocou-se desde o início. A tensão da espera de um tal texto poderia ser o maior obstáculo para seu surgimento. Quanto a isto, não havia solução. A questão teria que ser vivida em nível de enigma e conflito, sigilo e dissimulação.

Evidentemente que o texto que resultasse desse estado deveria, por força, reproduzí-lo em sua essencial perplexidade. A máquina-texto que surgisse não seria um todo harmonioso, já que a harmonia só convém às coisas mortas. O que eu pretendia era uma coisa viva, uma vida que me sobrevivesse. E a vida é contraditória.

Não sei mais de esse texto virá. Ou se já veio.

Tudo o que quero é que, se vier, se lembre de mim tanto quanto eu soube desejá-lo.


(in Gozo fabuloso, São Paulo: Editora DBA, 2004)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

À procura de Paula



Dois grandes jornais de São Paulo estamparam, há algum tempo, o desespero de um jovem suíço à procura de seu amor brasileiro. Da chamada em letras garrafais, num anúncio de meia página, emprestei o título para esta crônica, logo após do quê raiava despudorada a dupla verve de seu desconsolo: vira-a apenas duas vezes e perdera o número de telefone que ela lhe deixara.

Não vos direi que a fugacidade do momento amoroso seja inversamente proporcional à paixão desencadeada. Soaria demasiado velhaco e já estou em idade em que o estoque de reputação não está para desperdícios. Mas afirmarei sim, ó leitora atenta para os deslizes sentimentais do velho cronista, que a brevidade aguça a impressão deixada na alma pelo objeto do nosso desejo: se a marca foi intensa, sua recordação sempre suscitará um frêmito lamurioso que só faz derramar mais e mais deleites sobre a imagem do amado, corrigindo-lhe pouco a pouco as imperfeições do traço, acentuando-lhe a musicalidade da voz, acetinando a lembrança do toque.

Se, ao contrário, o primeiro impacto foi pífio, o contato efêmero obstará ao tempo seu labor paciente de educador do gosto, da paciência e da tolerância. E como numa antiga fotografia de uma tia-avó que só vimos uma vez, quando criança, a imagem irá se desfazendo, devagar, em meio a uma nostalgia vaga, despejando no coração gotinhas diárias de indiferença, até que se torne candidata a encher o saco de lixo da próxima arrumação das gavetas.

Mas não fosse nada disso, meus caros, a perda do número do telefone é quem dá o inapelável toque à nossa história. Diferente do samba famoso, onde a meia e o sapato ocupam resignadamente o lugar do retrato perdido, o papelzinho desaparecido encheu-lhe o peito de uma obstinação e de uma esperança.

E essa obstinação é que o fez trabalhar durante quatro anos, numa Suíça gelada e distante, a cada dia, em metódica aglutinação dos tostões, em busca da pequena fortuna necessária para apregoar aos quatro ventos a sua paixão. A cada dia se levantava e trabalhava movido pela certeza de que não podia fazer outra coisa, senão ficaria louco. Atormentava-o especialmente, muito mais do que a possibilidade de que estivesse casada ou mesmo morta, a imagem da moça julgando-se desprezada, ante o seu silêncio. Logo ela, a encarnação de todos os seus sonhos. A necessidade de dizer-lhe, dizer ao mundo que fora vítima indefesa do capricho do acaso, impelia-o acima de tudo.

Não sei se Paula apareceu, ou se aparecerá algum dia. O peito desanuviado pelo grito liberto certamente suportará melhor a angústia de sua ausência. E para sempre lhe restará a esperança de que sua amada ouça, no sussurro da última brisa, ou na voz do derradeiro arauto, que Ele a espera.

(março de 1999)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Dia do samba

Há extamente um ano, tive a honra de participar de sessão solene da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo em homenagem ao Dia Nacional do Samba (02 de dezembro), por iniciativa do Deputado Estadual Nivaldo Santana, presidente do PCdoB paulista.

Na ocasião, fui instado a lembrar os 25 anos da morte do grande compositor portelense Candeia. E o fiz nos termos que ora transcrevo:


Exmo. Sr. Presidente:

Hoje é um dia singular na história do samba. Ele já havia penetrado no Municipal, como cantou Cartola. Ele já é cantado na Universidade, como preconizou mestre Candeia. E hoje ele chega à mais importante casa da democracia no Estado de São Paulo. Hoje é Dia de Graça!

Esta solenidade enlaça três datas da maior importância para nossa cultura popular. O Dia Nacional do Samba, que se comemora amanhã. O dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro. E, o dia 16 de novembro, quando se completaram 25 anos da morte de um dos maiores baluartes da história da música popular brasileira, Antônio Candeia Filho.

Essas datas se entrelaçam de maneira indissociável. Porque falar de consciência negra é falar de Candeia. Falar de Candeia é falar de samba. Portanto, falar de samba é falar de consciência negra. E falar na sua dimensão mais profunda, não só na de consciência do direito à igualdade de tratamento e oportunidades para o povo afro-descendente, mas sobretudo na de consciência do papel fundamental, basilar, da cultura do povo negro na formação do modo genuinamente brasileiro de pensar, agir, cantar, dançar, relacionar-se, ver e entender o mundo. Falar de consciência negra, então, é falar de consciência brasileira!

Candeia foi o emblema desta consciência ao mesmo tempo histórica e profundamente engajada. O dia da consciência negra é celebrado em 20 de novembro em memória da morte do herói Zumbi dos Palmares. Mas o dia 16, dia da morte de Candeia, também é dia da consciência negra, da consciência brasileira. Quase 300 anos separam os dois eventos. Zumbi foi o símbolo vivo da resistência a um modo de organização social e a um modelo econômico que estuprou as formas ancestrais de sociabilidade do povo africano, destruindo os laços familiares e de nacionalidade em que se assentam sua cultura e religiosidade. Os quilombos constituíram uma tentativa de reestruturação, em solo brasileiro, de uma identidade violentamente arrasada quando da expatriação dos negros de África. Candeia simboliza a resistência a um modelo econômico e social que não só continua marginalizando a cultura de origem popular, mas apropria-se das formas mais genuínas de sua expressão para submetê-las à lógica viciada do poder e do dinheiro. O grande sambista soube melhor que ninguém denunciar um processo de usurpação dos espaços das escolas de samba por uma elite estranha à cultura do samba, e a imposição da ditadura do luxo, do visual, do “show” televisivo, a oprimir a verdadeira arte de dançar e cantar o samba. Não por outro motivo o espaço em que se organizou essa resistência, fundado por Candeia, recebeu o nome de Grêmio Recreativo de Arte Negra...Quilombo.

"O samba que eu criei tão divino ficou
Agora sei quem sou"

Hoje o samba se afirma, estribado em apoios importantes, como o que se configura nesta seção solene. Mas são muitos ainda os obstáculos a transpor para firmá-lo como forma e espaço privilegiado de afirmação de um modo de viver, pensar e agir diferentes daqueles imposto pelos padrões dominantes, hoje em escala globalizada. Lembrar Candeia-Zumbi é lembrar que o sonho está vivo e que temos a missão de sempre construí-lo.

"A chama não se apagou, nem se apagará
És luz de eterno fulgor, Candeia
O tempo que o samba viver, o sonho não vai acabar
E ninguém irá esquecer Candeia