sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

Epistemologia de buteco


Meus amigos, largar de beber não é o pior. O impossível, mesmo, é largar o butiquim.

Porque o buteco é o templo da nossa religião cujo fim, como nas demais, é construir uma outra vida que não a nossa. Ali residem os oráculos magistrais, as tiradas únicas, a sabedoria curta e grossa, espontânea e maliciosa do descotidiano.

O bar é o laboratório da nossa irrealidade, onde podemos enredar outras histórias, viver outros papéis. Há os fixos e pré-definidos: o dono-do-bar e o garçom (que ao contrário do que muita gente acredita, não são profissões: são funções litúrgicas), o bebum, o humorista, o poeta, o galã, a mais-gostosa. E há os rotativos, que podem ser assumidos, conforme a necessidade e ocasião, por qualquer um: o técnico de futebol, o cientista político, o psicólogo, o sacerdote, o jornalista, o crítico de cinema, o anatomista.

Urge construir-se uma adequada epistemologia do butiquim. O que se discute no bar é produto do descompromisso das relações que nele se tecem. Descompromisso com o porta-afora, em última análise. Porque não importa se o filme é bom, não importa se o escrete nacional está jogando mal ou se o Rodrigues, que estava saindo com a Claudinha, é ou não um canalha. A correspondência com qualquer dado da "realidade" do que se diz ou do que se faz dentro de um bar importa tanto para os objetivos da cerimônia que ali se celebra quanto, para o espetáculo, a dor de barriga do marceneiro que construiu o cenário.

Há outras formas de viver-se realidades alternativas, é certo. Há as brincadeiras de criança, os livros e o cinema. As primeiras, não nos são mais dadas - ao menos da forma necessária a que se produza o efeito a que aqui se alude. Os últimos terão sobre as nossas queridas espeluncas a vantagem de normalmente não legarem náuseas e dores de cabeça no dia seguinte. Em compensação, o final da trama não depende do nosso desempenho.

E haveria também – ai! - o amor. Nele outrossim transportamo-nos para um universo que não o nosso, para um entendimento outro, para ver a vida atrás de outros olhos. Mudamo-nos do conforto das nossas certezas para o néscio das profundidades alheias. E ali da mesma forma importarão bem pouco as objetividades para as quais os amigos insistirão em alertar. A desvantagem, porém, é evidente: a ressaca também é certa e o fim da história depende ainda menos de nós.


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