Hoje começa o ano. Navegante de rio, apavora-me o mar aberto, total. Nenhuma margem, nenhuma praia. Só o mar pela frente, a completa indiferenciação.
Nada mais se pode adiar. Tomaram-nos o grande curinga, a panacéia para todas as coisas que não se queria ou podia encarar: “depois do carnaval a gente vê”, “depois do carnaval a gente senta”... De repente, não mais que de repente (embora a gente já soubesse...), sobra-nos na mão esse infalível mico-preto do dia-a-dia. Todo o turbilhão de aborrecimentos, sobretudo os mais banais – esses insuperáveis - , parece precipitar-se sem licença, como se até agora só estivessem pacientemente esperando o seu fatal anti-jubileu: todo o perdão desaparece, toda condenação é inapelável, todas as dívidas são exigíveis.
Hoje acordei na hora, o despertador nem chegou a tocar. Sem perceber, eis-me de sapato, pasta e blusão (nem estava frio) olhando no espelho pateticamente, como a tentar saber afinal o que aconteceu. Onde foi parar meu vestido de chita? Mas se há alguns instantes Ela me puxava pela mão no meio do largo... Cadê a baiana que agora mesmo ajudei a vestir? Vejo que sumiu de vez a tinta preta atrás das orelhas... A bandeirinha da Vila ainda tremula naquela janela e eu cheguei adiantado quinze minutos no serviço.
O Carnaval na sua euforia esfuziante carrega uma inegável dimensão de morte, de imolação, atualizada nos rituais de libação. O delírio do folião encerra um abandono, uma entrega da própria vida à sua causa-crença. A sofreguidão dessa vivência é a negação de nossa não-vida de filas, reuniões, contas para pagar, telefonemas a dar, imêious a responder.
Vamos, pois, adiante, singrando marços e abris, oh Braga, nessa inescapável certeza do que não somos, rumo a uma visãozinha de margem que não negará a trajetória. Não sou eu quem me navega, quem me navega é o bar. Que nos valha o Senhor dos Navegantes até qualquer praia possível.
Nota: Publicado originalmente em 1º de março de 2004
Propício texto querido, e dou um salve para mais um ano que vai recomeçar pra mim de alguma maneira agora também... "vou imprimir novos rumos, ao barco agitado que foi minha vida..."
ResponderExcluire que nos navegue esse mar... beijo lelinha