quinta-feira, 23 de abril de 2009

Dia de São Pixinguinha de Ogum

Se vivo fosse, o compositor Alfredo da Rocha Vianna Filho, o famoso Pixinguinha - apelido surgido, segundo ele, da contração de “Pizindim”, ou “menino bom” como era chamado por sua avó africana Edwiges, com “bexiguinha”, como teria sido alcunhado após contrair bexiga ou varíola - estaria completando hoje, 23 de abril de 2009, 112 anos de idade. Em homenagem a um dos maiores gênios da música brasileira em todos os tempos e um dos pilares do que modernamente entendemos como a nossa música popular nacional, a data em que também se comemora a popularíssima festa de São Jorge (sincretizado no Rio de Janeiro com o orixá Ogum do culto iorubá), foi proclamada pela Lei nº 10.000/2000 como o Dia Nacional do Choro, gênero em que o mestre mais se destacou.

Pixinguinha foi genial em todos os aspectos da música em que atuou. Como compositor, conhecem-se mais de 2000 músicas de sua autoria, entre as quais clássicos imortais da música brasileira como “Carinhoso” (com João de Barro) e “Rosa”. Como arranjador, não só foi o pioneiro das formas orquestrais para os registros fonográficos a partir da década de 30, como lançou e fixou as concepções básicas que dominaram a noção de acompanhamento na música popular até o advento da bossa-nova. Como instrumentista, é considerado um dos três maiores flautistas brasileiros da primeira metade do século passado, ao lado de seu companheiro Benedito Lacerda e do prodigioso Patápio Silva, morto precocemente. Em meados dos anos 40, troca a flauta pelo sax tenor, supostamente devido a dificuldades com a embocadura do antigo instrumento, provocadas pelo abuso do álcool. Porém, a mudança registra também a influência da sonoridade das jazz bands estadunidenses (cujos registros começavam a nos chegar pelos discos e pelo cinema) sobre as concepções musicais do mestre que melhor conheceu e interpretou a tradição da música criada pelas baixas classes médias mestiças da cidade do Rio de Janeiro.

Como figura humana, era conhecida sua humildade e imensa generosidade com todos os que o circundavam. É proverbial neste sentido a história-quase-lenda de que certa vez teria sido abordado por assaltantes, ao voltar para casa altas horas da madrugada. Ao identificar-se, os ladrões teriam desistido do roubo e pedido desculpas ao mestre, tentando justificar seu comportamento em face da fome, da falta de emprego etc. Compadecido da situação, Pixinguinha os teria levado para sua casa, onde juntos comeram, beberam e dormiram, saindo os meliantes só no dia seguinte, agradecidos.

Em 17 de fevereiro de 1973, o coração do mestre parou enquanto participava do batizado de um afilhado. Como registrou o poeta Paulo César Pinheiro no primoroso samba Som de Prata em parceria com o compositor Moacyr Luz:

Só quem morre dentro de uma igreja
Vira orixá, louvado seja,
Senhor, meu Santo Pixinguinha!



Dos barbeiros aos ases

A primeira metade do século XIX viu nascer as primeiras manifestações genuinamente urbanas de uma música instrumental, dissociada da dança e voltada basicamente para o entretenimento dos estratos mais baixos da população. Reunidos por ocasião das festividades associadas ao calendário religioso católico, normalmente no adro das igrejas podiam ouvir o que costumou-se designar a “música de barbeiros”, devido aos conjuntos formados por músicos amadores, basicamente negros (escravos urbanos ou libertos que muitas vezes aprendiam música nas bandas de escravos mantidas nas fazendas) e mulatos, que podiam dedicar-se a um dos únicos ofícios liberais de aprendizado não acadêmico.

Os barbeiros de então praticavam não só os serviços até hoje ligados à profissão, mas uma variada gama de procedimentos para-médicos, como pequenas cirurgias, sangrias e outras atrocidades de nossa vetusta ciência oitocentista. A razoável lucratividade advinda desses misteres permitia justamente a aquisição de instrumentos como o cavaquinho, o violão, a flauta e o oficleide, bem como certo tempo disponível para a prática musical. Os poucos relatos disponíveis parecem dar conta de que o som peculiar desses conjuntos, embora de repertório dedicado a uma certa música ligeira européia (polcas, valsas, mazurcas, schottiches), adviria de uma maneira própria de tocar, evocando um certo “ritmo das senzalas” (na expressão consagrada por Mariza Lira in “A glória do Outeiro na história da cidade”, Rio de Janeiro, Diário de Notícias de 04/08/57).

Essas primeiras manifestações foram ao longo do século XIX progressivamente sendo substituídas pelo advento das bandas militares, nos grandes centros e pelas retretas de coretos, nos lugarejos menores, até desaparecerem completamente pelos idos dos anos 1860. Nos anos seguintes, o progressivo aumento da complexidade social, advindo da falência do modelo escravagista e do desenvolvimento econômico impulsionado basicamente pelo café, vai fazer surgir na cidade do Rio de Janeiro uma baixa classe média algo difusa formada por pequenos funcionários públicos civis e militares e empregados de companhias particulares estrangeiras de comércio e serviços. À imitação empobrecida dos hábitos das elites abastadas e na ausência de consistentes e regulares diversões públicas (os cafés e teatros de revista, por exemplo, só se afirmariam nas primeiras décadas do século seguinte) essas classes populares cultivam o hábito das festas particulares em casa de família, animadas pelos conjuntos musicais a elas mais próximos e acessíveis, formados dos músicos pertencentes a essas mesmas camadas, fortemente marcadas pela mestiçagem.

Neste período, portanto, observa-se o surgimento de uma nova classe formada em grande parte por mulatos com ocupações regulares, morando em casas simples nos bairros populares próximos ao centro, como a Cidade Nova e o Estácio. Concomitantemente, os negros africanos e crioulos continuam, em sua grande maioria, mesmo após o banimento da escravatura, condenados a uma vida marginal, abrigados nos morros e subúrbios distantes, sem ocupação fixa ou relegados aos duros trabalhos braçais da estiva. Se neste ambiente o samba encontra as condições para se tornar a mais importante forma de expressão, o choro nasce naquele incipiente estrato social em que ocupações mais leves permitem aos seus componentes maior dedicação à música e um certo excedente econômico possibilita a aquisição de instrumentos e a promoção de encontros festivos.

Se a origem do termo é algo controvertida, o certo é que o gênero é definido musicalmente não por um elemento rítmico característico e singular, mas pela maneira algo lamuriosa de execução – segundo Tinhorão*, uma leitura tipicamente brasileira do romantismo da música européia – que já agora certamente incorpora a herança sensível daquele já citado “ritmo da senzala”, mais tarde tão perceptível nas composições e execuções de músicos como Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Joaquim Callado.

Rapidamente popularizado e espalhando-se pelos redutos populares da cidade do Rio de Janeiro, o choro torna-se o referencial musical dessa baixa classe média, tomando conta dos quintais de subúrbio e das festas populares. Numa época ainda não marcada pela difusão musical maciça, a virtuosidade musical desses executantes amadores ou semi-amadores se mede pela fama espalhada boca a boca e nos ocasionais “embates” propiciados pelos encontros de músicos renomados. De 1870 a 1919 computam-se mais de 3000 composições conhecidas, de mais de 1400 compositores.


Renascendo das cinzas

É justamente o advento de uma nova era marcada pela popularização do rádio e do disco, a partir da década de 30 do século XX, onde a música popular atinge o status econômico de mercadoria destinada a circulação em massa, que vai gerar a decadência do choro e seu paulatino confinamento a bastiões isolados de resistência. Não obstante se acentuando progressivamente a influência da música estadunidense sobre arranjos e formas de execução, é certo que a origem e formação de muitos executantes populares no ambiente do choro vai acabar por imprimir uma feição indelével que jamais se apartará do seio da música popular brasileira. Porém, enquanto prática destinada ao suprimento das necessidades musicais e de divertimento das camadas populares, o choro entrará em declínio, substituído pela praticidade e economicidade do disco e do rádio.

Os dois maiores arranjadores na chamada “época de ouro” (1930 a 1945, com algumas variações segundo diferentes autores), Pixiguinha e Radamés Gnatalli, incorporaram muitos elementos tipicamente oriundos do choro nos acompanhamentos orquestrais que conceberam para as gravações dos grandes nomes da música popular. Quando o acompanhamento não era orquestral, entravam em cena os chamados regionais, com formação típica dos conjuntos de choro, do qual o mais famoso foi o de Benedito Lacerda, também oriundo dos mesmos ambientes.

Entre as décadas de 30 a 60, embora incorporado às feições da música brasileira, o choro experimenta um longo período de ostracismo, sobrevivendo sobretudo pelos quintais, com gravações e apresentações esporádicas, a despeito do surgimento de grandes compositores/executores do gênero como o cavaquinista Waldir Azevedo, o clarinetista Abel Ferreira, o flautista Altamiro Carrilho e o grande bandolinista Jacob Pick Bittencourt, o Jacob do Bandolin, um dos mais geniais músicos brasileiros de todos os tempos. Igualmente, o gênero sobrevivia em outros lugares do Brasil como Belém do Pará, Fortaleza, Porto Alegre, Recife e, sobretudo, em São Paulo, onde se desenvolveu e ganhou contornos muito particulares.

Foi de Jacob do Bandolim a semente para o ressurgimento do gênero, com a fundação do conjunto Época de Ouro, reunindo os maiores músicos da época como o violonista Dino e o pandeirista Jorginho. Parcialmente desativado depois da morte de Jacob, em 69, o Época ressurgiu em 1973 quando do espetáculo Sarau, ao lado de Paulinho da Viola. O enorme sucesso da temporada impulsionou as gravações de discos de choro (Camerata Carioca, Isaías e seus Chorões, Naquele Tempo, Regional do Evandro, entre muitos outros) e a fundação de novos grupos como o Galo Preto, Os Carioquinhas (76) e o Nó em Pingo d’Água (79). Ficou famosa na década de 70 a roda de choro do bar Sovaco de Cobra, na Penha, reduto suburbano tradicional do choro carioca, que atraía grandes contingentes de público de variadas regiões da cidade.

Ao longo das décadas seguintes, novos e importantes grupos e músicos foram surgindo, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em finais dos anos 90, o gênero ganha novos e importantes impulsos, com o aparecimento na Internet de uma publicação especializada, a Agenda do Samba & Choro, proporcionando a circulação de informações antes restritas aos quintais e botequins, colaborando decisivamente para a formação de um público fiel que passa a freqüentar assiduamente os circuitos alternativos da música instrumental popular. Surge igualmente um grupo de músicos liderado pelo violonista Maurício Carrilho e pela cavaquinista Luciana Rabello preocupados com a preservação da memória musical do gênero e na formação de novas gerações de chorões (os frutos desse trabalho fazem-se sentir na fundação de um selo especializado em choro, a Acari Records, em trabalhos de pesquisa e recuperação e na organização de oficinas para jovens músicos). Organiza-se o Clube do Choro de Brasília e, em torno deste, a escola de choro Rafael Rabelo, proporcionando uma enorme valorização do gênero na Capital Federal.



Rumo ao futuro

Muitas outras iniciativas poderiam ser citadas, mas estas bastam para a constatação de que o gênero vive um momento de grande efervescência, com rodas de choro em várias cidades brasileiras, clubes de choro, espetáculos e lançamento de discos. Muito ainda falta, entretanto, para se romper a barreira imposta pelo oligopólio da produção e distribuição do produto genuinamente nacional e de boa qualidade na música popular, controladas pelas cinco ou seis gigantes multinacionais do segmento.

A par disso, surge uma outra questão paradoxal. A partir do interesse despertado pelo choro em músicos das mais variadas formações e tradições, o gênero tendeu a sofrer uma enorme sofisticação harmônica e conceitual, com imbricadas relações com a música erudita e a música instrumental estrangeira. Ainda que amadores e profissionais ainda convivam em rodas tão renitentes como distantes, como as promovidas pelo luthier Manoel Andrade e pela loja Contemporânea, em São Paulo, ou no Bar do Gilson, de Belém do Pará; ainda que o espírito das velhas rodas suburbanas de músicos amadores sobreviva na Adega Tudo do Mar, no bairro carioca de Marechal Hermes, no Bar do Gilson, de Belém do Pará, e em quintais e botequins espalhados pelo Brasil, a tendência que se observa em larga escala é de que o choro cada vez mais requeira não somente o virtuosismo espontâneo das antigas gerações, mas o aprofundamento e a sofisticação da formação do executante, com tendências conseqüentes à profissionalização, para não dizer à elitização.

Novos grupos como o carioca Tira a Poeira executam o repertório tradicional do choro, incorporando elementos rítmicos e harmônicos bastante apartados da linhagem musical que classicamente caracterizou o estilo, resultando numa sonoridade bastante diferenciada das execuções mais conhecidas. Mas se o gênero caracterizou-se justamente pela forma de execução, perdidas uma vez tais referências, o que exatamente determinará a sua sobrevivência ou o seu desaparecimento?


* Tinhorão, José Ramos – História social da música popular basileira, São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 197

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Republicação, com mínimas adaptações, da versão original publicada no Portal Vermelho, em 23 de abril de 2004.

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