Aldir Blanc
O sujeito olha pra espuma da cerveja mas não vê nada. Não está no buteco, nem em nenhum outro lugar. É uma voz, girando no espaço-tempo, em busca não do que foi perdido, mas dos melhores momentos de sua vida:
- Eu estava sentado na sala, no mesmo lugar de sempre, com o velho copo, tomando a bebida que prefiro há anos e anos, quando ela entra, serena, como se estivesse flutuando. Nós nos conhecemos tanto que eu percebo que a quietude é excessiva, que o sorriso paira no rosto como uma sombra, que a intensidade dos olhos é dolorosa e não tem nada que ver com receitas, presentes, gracinhas dos netos. Meu primeiro pensamento demonstra que eu não presto, nunca prestei: ela conheceu algum palhaço que... Mas os gestos angustiados, os gestos de náufrago, provocam uma sensação estranha em mim, como se escutasse a sirene dos bombeiros chegando cada vez mais perto da casa onde moro. Tentando esconder o nervosismo, finjo uma rispidez que não sinto:
- Qualé, viu passarinho verde?
E ela, quanta calma, murmura com suavidade infinita: não é nada. Fui ao médico. Fiz uma ultra-sonografia e ele pediu outros exames... Minha poltrona cai num alçapão e ela já não está na minha frente, de cabelos curtos, ela está de botas, no apartamento de um amigo meu, pedi a chave emprestada, e os cabelos são uma cascata castanho-ouro. Meio bêbado e complemente apaixonado, tento escapar do fascínio com frases de detetive particular americano: não confie em pilantra metido a intelectual. Ele engana que lê Joyce mas acaba dando com o Ulisses na tua testa. Ela ri. Invento uma senha pra afastar vagabundo. É só um cara encostar com muito lero-lero, você olha duro e avisa: isso aqui tá cheio de Pirata Malaio. Sinal de que ela deve cortar o lance rapidinho ou o pau vai comer. Um dia, cheio de conhaque e de amor pra dar, o nariz sangra em pleno ato sexual. Ela se assusta. Metido a machão, pinto uma tira vermelha com sangue, de face a face, passando pelo nariz e canto marra: sou descendente de apaches. Tantos encontros inesquecíveis: no Ebony, no Lamas, todo o roteiro de bares e motéis percorrido. Versões de Tenderly, de I'll Never Be the Same, de Moonlight Serenade, versos, cartas, minha cara, os sapatos também pisam nos meus, e a cueca, no vasculhante do banheiro, seca sobre a calcinha, como um símbolo, em feitio safado de oração, nem por isso menos profunda. Com o tempo, há mortes compartilhadas, horas de dor, mas, acima de tudo, riso, riso, riso, apesar dos dentes e cabelos caindo em mim, da barriga despontando, ela cada vez mais bonita, os dois de óculos para miopia e astigmatismo quase ao mesmo tempo, se olhando e rindo como Tico e Teco, palpitações, taquicardias, acessos de tosse, varizes, pressão alta, mas, nas horas difíceis, ela encosta a cabeça e só dorme nesse peito aqui, ó, nem lexotan faz o mesmo efeito. Eu sou o macho da relação, certo?, tudo bem?, é por isso que estou prendendo o choro, eu preciso ser forte e dizer aquelas frases: isso é pura rotina, não significa nada, vapt-vupt. Adulto da boca pra fora. Porque a tal da voz interior parece a de um rapazola espinhento que perpetra sonetos melosos, que se masturba por ela, que ainda sonha com situações como a da valsa: e tu não flertaste ninguém, olhavas só para mim... Por aí. Lamartine, meu velho, eu babo. E enquanto John Waine da Zona Norte escande as sílabas, eu mesmo cansei de pedir esses exames, ro-ti-na, o pierrô apaixonado acaba chorando e, como nas histórias de folhetim, fala em cisco no olho, puxa o lenço, engasga e então, convulsamente chora. Chora porque não há a menor chance da vida ter graça se ela sofrer, não é possível, Musa não sofre, ela é a linda suburbana da seresta, com lábios que são tâmaras maduras da flora do coração, ela pisa nos astros, distraída, pra ficar só no Orestes Barbosa, ou não vai caber tudo na edição de domingo do jornal. Ro-ti-na, Porque fora da rotina que construímos, meu amor, eu não durmo, não como, não abro a porta, não atendo o telefone, não ouço música, não consigo ler, não quero assunto, a bebida atravessa, o Vasco é um pé no saco, o mar é um deserto, o Rio parece Assunção do Paraguai e, pra ser sincero - espero que não me neguem o direito a esse singelo depoimento - não sei nem fazer cocô.
[para Stefânia, meu amor]
LINDO texto! Depois disso, não resta nada a ser dito...
ResponderExcluirBeijos.
A mais bonita declaração de amor dos tempos modernos, sem dúvida!
ResponderExcluirChorei.
ResponderExcluirQue amor, rapaz. Salve a Stê.
ResponderExcluirBeijo para dois.
E não é que a enamorada Stê merece isso e tudo o mais....!!!!!:!:!:! vida longa a essa cúmplice amorosa parceria... que dá rosa, que dá samba, prosa e poesia, e tanto tanto mais ! beijo, lela
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