quarta-feira, 30 de março de 2005

Descamisados


Símbolo máximo da paixão clubística, muito mais que o hino ou a bandeira, ela encarna, metonímea perfeita, a entidade mítica e gigantesca do time de futebol: vestir a camisa; honrar a camisa; o jogador sentiu o peso da camisa; faltou camisa para aquele time. Manto sagrado, encerra em si, além das cores e distintivo de uma nação, a galeria de conquistas, recentes e remotas, nas formas de bravos escudos de guerra ou de constelação de estrelas fulgurantes.

Veja-se o apego quase infantil do torcedor à camisa de seu clube. Uns preferem os últimos modelos, perfilando uniformizados em redor de seus heróis, ou desafiando, terras afora, o infortúnio dos que não foram chamados a fazer parte da casta escolhida. Outros, os panos surrados, sudários purificados no sangue de muitas batalhas vividas, relíquias dos espíritos dos antigos guerreiros.

Não estranhe, amigo leitor. Sei que a linguagem está meio fora de moda. É que as expressões que hoje recheiam as colunas, artigos e reportagens de nossas sessões esportivas são bem diferentes: em vez de camisa, é mais fácil deparar “lay-out”; no lugar de espírito, “marketing”; para guerreiros, preferem “profissionais”; e vamos por aí.

Na era do futebol-negócio, a paixão e a reverência às tradições parecem ter de sucumbir à lógica do capital. Daí o descaso que vimos assistindo nos últimos anos dos times de futebol no Brasil com seus uniformes, muito especialmente após a admissão da estampa das marcas publicitárias nas camisas. Certa vez puseram um amarelo-gasolina na sagrada camisa verde do Palmeiras, que depois ficou verde-clara, ganhou listras, voltou para o verde-escuro, perdeu as listras... A do Corinthians, recentemente recebeu tintas vermelhas e amarelas, sem contar o remendo com que tiveram de se apresentar em plena final de brasileiro, em virtude de uma troca de patrocínio em cima da hora ( já falam, até, em dois patrocinadores na camisa ). Já a saga de derrotas do São Paulo no último Brasileirão foi, por muitos torcedores, atribuída a uma maldição verde salpicada na tradicionalíssima camisa tricolor.

O que falar dos calções, então? Uma ridícula determinação - ao que parece, da FIFA - tornou os últimos campeonatos verdadeiros desfiles de aberrações estilísticas. O Corinthians todo de branco, parecia o Santos. O Santos, de calção preto, parecia o Corinthians, tanto que lhe meteram listras, quadriculados e até estrelas!

Daí que desse insosso e tumultuado Rio - São Paulo 99, sobrou-me a gostosa sensação de ver de volta, intactas, as belíssimas camisas de Vasco, Fluminense e Botafogo, pelo menos. Mesmo sabido que nunca por qualquer consciência cultural, mas por absoluta falta de opção. O certo é que a aquela Estrela, livre das más companhias, desfilando garbosa sua solidão reconquistada, fez-me lembrar e sonhar com um tempo em que profissionais eram, simplesmente, Manés.


(março de 1999)