quinta-feira, 4 de novembro de 2004

"Não tive tempo de ter medo"





















Há exatos 35 anos, aqui pertinho, na Al. Casa Branca, tombava sob as botas do aparelho repressivo chefiado pelo nefasto delegado fleury (assim mesmo, com letra minúscula) um grande herói do povo brasileiro: Carlos Marighella. Em homenagem à sua memória e a seus ideais de justiça, paz, dignidade e liberdade para o povo brasileiro, transcrevo aqui dois poemas e um trecho de seu famoso Chamanento ao Povo Brasileiro, que, se chocam pela atualidade, avivam-nos a consciência da tarefa de lutarmos pela Nação que queremos.

O Urubu


Pairando pelo espaço onde quer que pressinta
carniça, podridão, matéria decomposta
essa ave original de cor preta retinta
o cheiro da imundice alegremente arrosta.

Vem descendo depois. Jà não é uma pinta
escura na amplidão do firmamento exposta.
Vem descendo inda mais, cada vez mais distinta,
até que no terreno o corpo feio encosta.

Desde então principia a ceia horripilante
e belisca a esterqueira e grunhe a cada instante,
sacudindo-se toda, inquieta e assustadiça

Assim como o urubu há no alto muita gente
poderosa a fartar que, entanto, moralmente
só consegue viver à custa de carniça

(São Paulo, Presídio Especial, 1939)


Rondó da Liberdade


É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.
Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
O homem deve ser livre...
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

(São Paulo, Presídio Especial, 1939)

Chamamento ao Povo Brasileiro


“...
O governo desnacionalizou o país, entregando-o aos Estados Unidos, o pior inimigo do povo brasileiro; os norte-americanos são os donos das maiores extensões de terra do Brasil, têm em suas mãos uma grande parte da Amazônia e de nossas riquezas minerais, incluindo minerais atômicos.

Possuem bases de foguetes em pontos estratégicos de nosso território. Os agentes de espionagem norte-americanos da CIA, estão dentro do país como se estivessem em sua própria casa, orientando a polícia em caçadas humanas aos patriotas brasileiros, e assessorando o governo na repressão ao povo.

O acordo MEC/USAID ( acordo entre o Ministério da Educação e Cultura e a USAID norte-americana) vem sendo poso em prática pela ditadura, com o propósito de aplicar em nosso país o sistema norte-americano de ensino e de transformar nossa universidade numa instituição de capital privado, onde somente os ricos possam estudar. Enquanto isso, não há vagas e os estudantes são obrigados a enfrentar as balas da polícia militar, disputando com o sangue o direito de estudar.

Para os operários, o que existe é o arrocho salarial e o desemprego. Para os camponeses, os despejos, a ocupação ilegal de terras, os arrendamentos usurários. Para os nordestinos, a fome, a miséria e a doença.

Não existe liberdade no País. A censura é exercida para coibir a atividade intelectual.
...”

(dezembro/1968) 

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Sabino



A preguiça é minha marca de descaráter mais evidente. A vontade somente consegue mover-me rumo ao que me inclino por desejo após duríssima batalha com uma ela, atávica e renitente, que me define como um legítimo homo morgans. A preguiça reduz, por exemplo, a minha cultura cinematográfica a 10% de sua capacidade ociosa e a minha freqüência a exposições a níveis abaixo do humanamente tolerável, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Dos teatros de São Paulo, paulatinamente faz esquecer os caminhos. Balé, há décadas. Mesmo na música, que se salva como gênero de primeira necessidade, já pôs os concertos pra escanteio e contigenciou os shows aos níveis de suporte de vida.

Otto Lara Resende dizia que só não era uma besta completa graças à insônia. Meu xará Fernando Toledo agradece aos céus por gostar de ler nos butiquins... Eu tenho bem mais sono do que gostaria e nos bares normalmente me dedico a tarefas menos nobres. Se escapei da mediocridade completa, devo a meu outro xará, o Sabino.

Suas crônicas me despertaram pra valer o gosto pela leitura, juntamente com as de Drummond, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga – que posteriormente viria a ser uma das minhas maiores influências –, reunidas na coleção sugestivamente intitulada “Para Gostar de Ler”. Isso com uns dez ou onze anos. Tornei-me um devorador desses quatro autores, em verso e prosa, em livro e jornal, em crônica e romance. Do Sabino, todos os livros publicados até o fatídico Zélia, capítulo a se pular. Apaixonei-me definiticamente pela crônica, gênero algo marginalizado pelas academias, que sempre me deu a impressão de no Brasil ganhar um status literário definitivo, indiscutível e único. Talvez pela força dos nossos autores, obrigados ao ofício jornalístico diuturno num país que não reconhece e não paga seus grandes artistas. Ou talvez pela peculiaridade do espírito brasileiro, mais que qualquer outro inclinado a essa espécie de baixa-estética que brota da ironia persistente da sobrevivência. Onde mais poderíamos montar um escrete de cronistas que vai de Machado a Cony, passando por Manuel Bandeira? De Lima Barreto a Aldir, passando por Vinícius? De João do Rio a Veríssimo, passando por Antônio Maria?

A existência da opção pela literatura mais ligeira, aliada à preguiça inderrotável e à influência do Braga, fizeram de mim, à sua semelhança, um “mau leitor de romances”. Sabino escapou. O Encontro Marcado li duas vezes inteiras, uma mais ou menos aos dezessete anos, outra lá pelos vinte e sete ou vinte e oito, quando o choque inicial foi tremendamente reforçado pela década entremeada. Espero pra ler aos trinta e sete, como uma espécie de Pequeno Príncipe melancólico e tupiniquim – se me permitem a redundância - de várias gerações. O Grande Mentecapto foi o romance em que mais vezes e mais intensamente ri e chorei, pantomima caricata desse heterônimo da brasilidade que se construiu nas Gerais. E houve ainda oMenino no Espelho.

Mas a sua herança mais marcante veio-me através dos impagáveisGente e Gente II. Por ali cheguei na poesia, em Bandeira, Neruda, Murilo Mendes e Mário de Andrade. Por ali conheci Jayme Ovalle e Vinícius, Helio Pellegrino e Pedro Nava, Sergio Porto e Augusto Frederico Scmidt. E ali, mais do que tudo, me apaixonei por aquela atmosfera artística e intelectual que durante mais de três décadas reuniu no Rio de Janeiro um núcleo tão poderoso de literatos, músicos, artistas plásticos e pensadores, todos amigos, freqüentando as mesmas festas, as mesmas rodas e os mesmos bares, no Vermelinho ou na casa de Aníbal Machado. Coisa que imaginei para sempre perdida, mas que se preserva numa geração que eu tenho podido acompanhar –dádiva suprema! -, de Moacyr Luz, de Paulinho Pinheiro, Jaguar, Luiz Carlos da Vila, Aldir, Fausto Wolf, Sérgio Cabral, Hermínio Bello. E que há de se levar adiante pelos Toledos e os Goldenbergs.

Sabino também, com Rubem e com vovô, ajudou a montar o pioneiro quebra-cabeça de uma geografia carioca imaginária, idílica, com luares sobre as ondas, com faltas d’água e lotações apertadas, marias-fumaças na Central e tardes douradas de outono. Há algumas semanas, passeava eu por uma noite quente de Ipanema, pela General Osório que sempre me remeteu a ti, Fernando, por aquelas ruas “que vão de Copacabana a Ipanema”, Rubem, e passei pelo prédio do velho xará, apontado por Luise. Comentei que ele devia estar velhinho. Agora, desincumbiu-se do seu ônus de encerrar de vez essa festa brasileira, bater a porta e apagar a luz. Acabaram os mineiros, acabaram os modernos. Acabou o “Para Gostar de Ler”. Acabou o Rio de Janeiro que eu montei só no meu coração.

Cumpre-se, finalmente, naquela desolada colina de Botafogo, o epitáfio talhado em vida: “aqui jaz Fernando Sabino: nasceu homem, morreu menino”. 

Mudar



Nasci na Bela Vista, coração de São Paulo. Meus pais moravam nas Perdizes, Rua Bartira, primeiro endereço para onde me transferi depois de baixar neste terreiro doido. Embora tenha morado ali apenas até os dois anos, guardo uma imagem difusa do apartamento, que a princípio sequer se poderia tratar de memória, mas que minha mãe atesta bater muito com o lugar. De concreta, mesmo, a lembrança doce de subir a escada de cacos de cerâmica vermelha, mão dada com a vovó, contando os degraus em alemão: einz, zwei, drei... Pelos dados disponíveis, acho que fui feliz. E mudei.

Para a casa espaçosa do Sumaré, na Praça Joanópolis, 96. Neste importante ponto do universo, eu pude descobrir que era gente. E que ser gente era correr atrás de passarinho, desobedecer a mãe, ralar o joelho na mureta, ter medo de escuro e de ladrão e do Borges (o vigia-andarilho-mendigo que usava uma capa até a canela, chapéu de couro e óculos escuros e estava sempre de porre), ganhar pintinho colorido, chorar quando o pintinho virasse frango, ter irmã, judiar dela, ter ciúme, se arrepender, ir pra escola, fazer amigo, gostar de menina, soltar balão, andar de triciclo, empinar pipa, assistir a Xênia nos dias de chuva, esperar o vovô chegar do serviço com o saquinho de bala de goma (ou cigarrinho de chocolate Pan - que agora proibiram... - com fósforo de marzipã), ficar desidratado (por causa das gotas de pinho Alabarda, que a Giovana – que era linda e eu me apaixonei por ela – anunciava na televisão), ir pra o hospital, trabalhar com o pai, ser palmeirense. Definitivamente, fui feliz. E mudei.

Em janeiro de 1978, de volta às Perdizes, no 1003 da Rua Monte Alegre. A vizinha PUC havia sido invadida em setembro do ano anterior. As marcas ainda se viam nas paredes externas chamuscadas das bombas, nas histórias dos vizinhos, no muro do estacionamento ao lado do nosso prédio, onde a estudantada era tangida pela reiúna. PUC que foi o meu quintal, onde aprendi a jogar bola com os moleques da rua, onde matava aula do colégio, do primeiro beijo e do primeiro porre. Que foi capela e que foi alcova. Que depois virou casa, com a casa virando sucursal do Centro Acadêmico. Foram dezenove anos irresumíveis. Felizes. Casei e mudei.

De Perdizes, que ficou chata, tumultuada e burguesa demais, para a Pompéia, da Rua Barão do Bananal, 800. A velha Pompeía das ruínas da infância, na casa da minha outra avó, mas que já começava também a ficar chata, tumultuada e burguesa como está hoje. A Pompéia foi dos domingos em casa, com os amigos, comida, samba e cerveja demais. Do presente maior que a vida me deu, chegando em casa embrulhadinha numa mantilha branca de tricô. Das comilanças a dois e das noites em claro, na rua ou cuidando de cólica de neném. Um casamento é um casamento, ora sabeis. Onde, em maior ou menor medida, se é feliz naquela bela fase de quase todos os casamentos. Eu fui demais. E mudei.

Para o meu desterro da Armando Brussolo, na Vila Romana, que acabou virando pátria. Quase não deu tempo de ser feliz nem infeliz, medo maior. Mas a gente puxa o tamborim pra nossa baqueta e povoa a sala de amigos, o quintal de sambas, a cozinha de comida do pai, o banheiro de livros, o quarto de cheiros. Pra tudo se acabar em caixas, sábado agora.

O duro não é encaixotar as centenas de livros e cd’s. É a nudez da casa – que no fundo é a sua própria - escancarada, gritando, indiscreta sob as botas impessoais dos carregadores. Juntar os cacos das felicidades e tristezas para arquivar... O que ainda é nada comparado ao depois, àquele total estranhamento que sucede o ciúme. Àquele exílio de sua própria história.

terça-feira, 21 de setembro de 2004

Rancho das namoradas

(Ary Barroso / Vinícius de Moraes) 

Já vem raiando a madrugada 
Acorda, que lindo! 
Mesmo a tristeza está sorrindo 
Entre as flores da manhã 
Se abrindo nas cores do céu 

O véu das nuvens que esvoaçam 
Que passam pela estrela a morrer 
Parece nos dizer que não existe beleza maior 
Do que o amanhecer 

E no entanto maior 
Bem maior que a do céu 
Bem maior que a do mar 
Maior que toda a natureza 
É a beleza que tem a mulher namorada 
Seu corpo é assim como uma aurora ardente 
Sua alma é uma estrela inocente 
Seu corpo uma rosa fechada 
Em seu seio pudores renascem das dores de antigos amores 
Que vieram, mas não eram o amor que se espera, o amor primavera 
São tantos seus encantos 
Que para os comparar 
Nem mesmo a beleza que têm as auroras do mar 

quarta-feira, 25 de agosto de 2004

Mais que morto

Frase de um morador de rua de São Paulo (cujo nome infelizmente não consegui ainda anotar), hoje cedo na Rádio Jovem Pan, sobre as inomináveis atrocidades cometidas contra essa gente que não faz mal a ninguém e suporta sobre as costas todo o sofrimento que conseguimos produzir: 

Você acha que alguém vai me dar um emprego algum dia? Eu não tenho família, não tenho amigos, não tenho endereço, nem documento. Eu estou mais que morto. Será que ainda preciso ser assassinado?” 

segunda-feira, 16 de agosto de 2004

A morte e a morte de Stella do Patrocínio


Ney Mesquita (*11/12/1966 +09/08/2004)


Não foi por falta de aviso. Ney Mesquita, o meu irmão preto, passou os quase dezoito anos em que eu o conhecia me dizendo que ia morrer cedo. Não sei se era intuição, vontade, ou uma espécie de sina a ser cumprida. E não é que no último dia 09, às 21h00, seu coração imenso e judiado desencumbiu-se do ônus desse fatídico auto-vaticínio?

Neyzinho foi um grande artista em todos os sentidos. Não só pela grandeza da expressão visível de sua arte, de seu talento, que podia ser percebida facilmente por quem o ouvisse cantar ou representar. Mas sobretudo pela capacidade constante de antenar-se com as angústias, dores, alegrias, celebrações e contradições de sua geração, de sua cidade, do seu povo negro. Foi, durante toda a sua carreira, e principalmente durante a sua vida, um canal permanente através do qual as nossas necessidades de expressão puderam-se canalizar, seja em formas sensíveis, seja como mais angústias, alegrias e contradições. Uma grande caixa de ressonância do talento, da beleza, da loucura de uma existência essencial e circunstancialmente inscrita num meio tão inóspito.

Cantor, sambista, ator, professor de música, artesão, pesquisador da cultura popular. Um grande baú de sambas-enredo – muitos agora definitivamente esquecidos - dos carnavais paulistanos de sempre. Conhecedor de jongos e pontos, congos e reisados. De voz e sobretudo afinação privilegiadas, formado nos guetos de samba da paulicéia (alô Pérola Negra!) e pós-graduado na universidade da noite, era no palco que fazia transbordar a exuberância de seu talento performático.

Dizia-se parente do libertário José do Patrocínio, o que nunca me foi dado verificar. Sei é que recentemente, encarnava a Stella do Patrocínio, poetiza negra que viveu grande parte de sua vida interna na colônia psiquiátrica Juliano Moreira. Ninguém mais poderia fazer de tal forma reviver a alma universal, errática, contundente e profundamente poética de Stella. Ninguém mais poderá cantar os seus versos (lindamente musicados por Lincoln Antônio) como ele. Ninguém.

Ney Mesquita não se eximiu em nenhum momento de encarar a sua árdua missão de artista e de negro. Como poucos sofreu na pele as injustiças profundas da condenação histórica a que parece eternamente submetido o povo negro em nosso país de tantas desigualdades e preconceitos. E mais uma vez transformou tudo em arte e beleza, muito embora as cicatrizes nunca tenham deixado de determinar os caminhos e descaminhos de sua vida e sua arte inquietas. Um negro verdadeiro, elo da corrente que comunica a trajetória de seus ancestrais à gestação das gerações vindouras. Ninguém me contou. Eu vi as legiões de eguns passeando pelo Teatro São Pedro, quando ele pisou seus pés negros descalços naquele palco de recitais de câmara e árias verdianas.

Por tudo isso, o meu irmão preto Ney Mesquita foi uma pessoa tão fascinante quanto perturbadora. Tão querida quanto querente. Tão indispensável quanto difícil. E vai fazer, meus senhores e minhas senhoras... uma PUTA falta.

Poucas pessoas tiveram na vida tanto carinho para comigo. Foram tantos os incentivos, os cuidados, as puxadas de orelha. Felizmente, nunca deixamos de nos dizer que nos amávamos. E hoje não consigo deixar de ouvir aquela sua voz, quando se enchia de toda pompa e circunstância pra me anunciar uma grande verdade recentemente descoberta: “sabe, Fernando...”. Ou aquela sua gargalhada de saci, pé descalço, fazendo macaquice, judiando do gato da Iara. Vai fazer falta demais nos nossos tantos fundos de quintal, a começar pelo de casa. E não serão mais tão vagabundas as minhas bebedeiras pela cidade.

Mas eu hoje posso cantar – em grande parte graças a ele. E cantarei à sua presença eterna nas nossas rodas e nos nossos corações. Até o dia em que hei de pegá-lo de novo, num redemoinho qualquer, aos pés de um taquaral como os que havia atrás da casa da minha infância, que acabou de morrer um pouco mais. E aí vou roubar sua carapuça, pra ele não poder mais me abandonar.




quinta-feira, 24 de junho de 2004

24 de junho

Foi preciso que numa noite quente 
um raio de lua a iluminasse 
como um spot celestial 
sobre um palco de lençoizinhos coloridos 
pra que me descobrisse, num repente, 
arrebatado pela sua presença de estrela 
Protagonista da representação mais real 
da pantomima fascinante 
da imortalidade 
Ali, encarnada em menos de um metro de gente 

quarta-feira, 23 de junho de 2004

Brizola: homem que amou demais

Julio Vellozo


Brizola foi faca amolada e não esse sonhador bobo, espécie de nacionalista de folhetim, Policarpo Quaresma dos pampas, que andam pintando por aí. Quando soube da morte do Leonel - governador de dois estados, herói da legalidade, sujeito homem - fiquei comovido de verdade. E fiquei puto por ver a forma como pintaram o velho gaudério. Brizola foi homem de discursos e de ação, construiu escolas e pegou em armas, fez mais inimigos do que amigos, foi traído por muitos mas nunca traiu ninguém. Não precisava de retoques: se sua vida foi assim, que o deixassem morrer como viveu.

Homens como Brizola não conhecem meio termo, tem horror a hipocrisia e querem distância dos rapapés da formalidade. Ele não queria terminar a vida como se não tivesse inimigos, recebendo elogio choroso da Miriam Leitão. Tenho certeza de que preferiria um editorial da Globo bem feliz, comemorando a partida de mais um caudilho nacionalista e atrasado. Conhece-se o caráter de um homem pelos inimigos que tem, já dizia um sábio.

O pecado de Brizola foi amar demais, como talvez dissesse o Paulinho da Viola. Amou o Brasil de modo tão violento, tão passional, que fez política como quem defende um filho ou um irmão: com as vísceras. Quando a paixão e a razão se encontraram esteve no lugar certo, mas com o dobro da coragem dos simplesmente racionais. Quando a paixão e a razão se desencontraram esteve do lado errado, encontrou inimigos que não existiam, combateu pessoas a quem deveria se aliar. Acertou quando a vida pedia coragem, e errou onde a coragem não cabia na vida.

O Brasil deveria saber amar Brizola como ele o amou. Dos “filhos teus que não fogem a luta”, ele foi dos mais corajosos, sinceros, passionais e honestos. Ele não temeu quem adora a nossa pátria à própria morte. Estes agora querem transforma-lo em navalha sem corte. Pelo bem da história tomara que não consigam. 

terça-feira, 22 de junho de 2004

Leonel de Moura Brizola




Uma parada cárdio-respiratória aparentemente motivada por infarte fez o que a ditadura militar e o mais poderoso conglomerado de comunicação de massa do planeta juntos não conseguiram: calar a voz do velho caudilho. Sem dúvida, um dos políticos brasileiros mais importantes do século XX e uma das mais populares figuras da esquerda nacional, juntamente com Prestes e Lula. 

Tendo dele discordado um sem número de vezes, mais do que exaltar sua participação fundamental em tantos episódios da história republicana nos últimos 60 anos, deixo aqui a minha homenagem ao homem público que, no meu imaginário, desde as históricas eleições de 1982, sempre representou na política a sobrevivência da dimensão fundamental do sonho. Naquele pleito, impingiu a maior derrota eleitoral às forças políticas conservadoras, elegendo-se na contra-mão de todos os interesses e conspirações, apoiado pelas massas excluídas dos morros e da Baixada Fluminense. Mas vinte e um anos antes, Brizola já liderava a resistência à tentativa de golpe contra Jango requisitando a marcha sobre Porto Alegre de cavaleiros das estâncias riograndenses, com seus ponchos e bombachas, a quem armou com revólveres requisitados à uma grande fábrica gaúcha de armamentos. A atitude à primeira vista quixotesca acabou por engendrar a corrente de legalidade que garantiu a posse de Goulart e postergou por três anos o golpe que viria a instalar a ditadura militar no Brasil. 

Movido pelo mesmo sonho, o velho Leonel pôde dar asas às maravilhosas insanidades de outro sonhador, o saudoso Darcy Ribeiro, e romper pela primeira vez na história brasileira com o estigma de que a educação de qualidade seria prerrogativa dos filhos das classes abastadas. Ainda sonhando com uma sociedade onde a polícia respeitasse os barracos dos morros tanto quanto os apartamentos da Zona Sul carioca, foi criminosamente acusado, com patrocínio da Vênus Platinada, de se aliar aos interesses de traficantes com finalidades eleitoreiras. Raciocínio que, docemente abraçado pelas elites para as quais pé na porta do barraco dos outros é visita, não impediria que Brizola voltasse ao Palácio Guanabara nos braços do eleitorado pobre e politizado das regiões mais oprimidas da metrópole fluminense. Com que outras armas, senão o sonho, o caudilho poderia prometer acabar com a concessão pública ao sistema Globo com uma canetada? Meu Deus, quanto eu mesmo não sonhei com isso?... 

A lembrança que não posso deixar de registrar: eu, com dezenove anos, enfiado até o pescoço na campanha pesidencial de Mário Covas, assistindo ao último debate do primeiro turno das eleições. Minha mãe não entende nada quando, entrando na sala, me pega aos prantos gritando: “eu vou votar no Brizola, mãe... Eu vou votar no Brizola”! Motivo: o mais belo discurso que ouvi do maior dos oradores da política brasileira do meu tempo. Até o último de meus dias, não me sairão da mente as suas palavras: “Não votem em mim; votem em qualquer destes democratas que aqui se encontram”, em alusão às ausências do favorito Fernando Collor e do estapafúrdio Sílvio Santos. E pode ser verdade que a história não seja feita do “se”, mas também me permito imaginar, se não fossem pouco mais de 200 mil votos, o velho Leonel reduzindo a pó o “inspirado” candidato oficial no famoso debate depois torpemente editado pelo Jornal Nacional. 

E é essa a imagem, pois, que transmitirei à minha filha: a do nosso bravo e incansável Dom Quixote, investindo com seu corajosos devaneios contra os moinhos de vento do poder econômico e político exercido historicamente em nosso país em detrimento do interesse dos trabalhadores e de todo o povo. Para que nós possamos levar a diante a preciosa herança que nos legou – o sonho – nestes tempos em que a rude ditadura da realidade dada parece a cada dia mais ofuscar o brilho das nossas últimas esperanças.

quarta-feira, 16 de junho de 2004

25 anos sem Dalcídio Jurandir – 1979/2004



Transcrevo a importante nota abaixo, da parte do Instituto Dalcídio Jurandir, em homenagem aos 25 anos da morte deste grande escritor brasileiro: 


O Instituto Dalcídio Jurandir vem trabalhando com muita determinação a reinserção do nome e da obra do escritor marajoara no horizonte da literatura brasileira e é com grande alegria que já podemos dizer estar quase no prelo, com lançamento previsto para outubro deste ano, o romance Belém do Grão Pará, quarto volume (de 10 romances) do Ciclo do Extremo-Norte que, com o romance Linha do Parque, forma o conjunto da obra que recebeu o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, no ano de 1972. Dalcídio faleceu no dia 16 de junho de 1979, no Rio de Janeiro, cidade que escolheu para viver, desde a publicação de seu primeiro romance, Chove nos campos de Cachoeira, em 1941. 

Belém do Grão Pará é o primeiro relançamento da obra do autor, previsto pela editora Fundação Casa de Rui Barbosa em coedição com a EDUFPa, editora da Universidade Federal do Pará. A FCRB abriga o acervo pessoal do escritor no Arquivo Museu de Literatura Brasileira e prepara-o para que, no menor prazo possível, ele esteja à disposição dos pesquisadores. 

Com uma edição no Brasil e outra em Portugal, esse romance marca sensivelmente as letras cariocas porque conquistou, em 1960, o prêmio Paula Brito da Biblioteca do Estado da Guanabara (em sua última edição) e também o prêmio Luiza Cláudio de Souza, do Pen Club.

O trabalho de preparação textual - com inclusão de notas, introdução e glossário de termos regionais – foi realizado pelas pesquisadoras Marta de Senna e Soraia Farias Reolon Pereira, da FCRB. A programação de relançamento inclui a realização de um seminário inter-regional, que contará com a participação de professores-pesquisadores do norte e do sudeste, para discutir a obra e os temas sempre atuais que ela suscita. 

A seguir, trecho do ensaio crítico Os inocentes da passagem, do professor e filósofo Benedito Nunes, sobre a obra e sobre o romance Belém do Grão Pará: 

“(...)Com paisagens urbanas recorrentes – Cachoeira do Arari e Belém, o vilarejo na ilha do Marajó e a Metrópole, que se personificam na memória de Alfredo, um dos seus principais personagens, se não for a sua figura central como ligação entre os romances componentes, e que mais visceralmente próximo está do narrador, com um estilo indireto livre tendendo ao monólogo – o Ciclo do Extremo-Norte, enxerto da introspecção proustiana na árvore frondosa do realismo, afasta-se das práticas narrativas do romance dos anos 30 - como uma certa construção do meio ambiente e a tendência objetivista documental, afinadas com a herança naturalista - graças à força da auto-análise do personagem e à poetização da paisagem. De maneira precisa, esse afastamento, já marcante em Belém do Grão Pará, se tornará definitivo em Passagem dos inocentes. Este romance se volta, de novo, para Belém, que aquele primeiro abrira num largo panorama urbano, e onde Alfredo já estivera 

Cumpre-nos abrir um parêntese sobre esse panorama. Quem lê Belém do Grão Pará, como o romance dos Alcântara (o casal seu Virgílio/D. Inácia e a filha Emilinha), lê a inteira cidade dos anos vinte, tal como a tinha deixado, após o início da decadência econômica, conseqüente à crise da borracha, que culminara em 1912, as reformas do Intendente (prefeito) Antônio Lemos. O drama daquela família, com a qual vivia Alfredo, drama todo exterior, de perda de status, levando a uma mudança de casa e de rua, está relacionado com aquela decadência. Mas só o curioso Alfredo, dono de mágico carocinho, vê a cidade com olhos poéticos: as ruas sombreadas de mangueiras, o Largo da Pólvora sonolento, com o Teatro da Paz, neoclássico, no meio da verdura, as casas baixas ajaneladas, de corredor ou puxadinha, os sobrados revestidos de azulejos que brilham ao sol (...)” 

A delícia do chorinho e a vergonha de ser brasileiro


André Azevedo da Fonseca*


O chorinho diz tudo sobre nossa alma.
Por isso mesmo, morremos medo dele


A apresentação que o grupo Chorocultura realizou durante os eventos da calourada na Universidade de Uberaba de 2002 foi tão assustadoramente autêntica que nos fez lamentar a vergonha que temos de nós mesmos.
Não é que não gostamos de ser brasileiros – lá no fundo, existe até um certo orgulho, assim meio constrangido – mas somos acanhados, vacilantes; dificilmente temos coragem de confessar que o chorinho é a coisa mais certa e mais gostosa para acender alguma coisa indefinível dentro da gente.

A cadência maliciosa de vai-não-vai em que o chorinho se esbalda é uma delícia porque representa todas as características de nossa alma brasileira. Está tudo lá. O bandolim tropeça feito bêbado em uma escala e, através de malabarismos impossíveis, faz tudo dar certo quando o improviso parecia desembestar para a mais tremenda confusão. O sax finge sua manha elegante enquanto o pandeiro disfarça em uma cadência hipnótica. O cavaquinho, naquela de quem não quer nada, cutuca o violão que de repente descamba para a gafieira e o pau come solto.

Mas é por isso que temos medo de gostar do chorinho. Como em um espelho mágico, nos vemos nus, enxergamos nossa alma tal qual, sem ornamentos, sem maquiagem.
O seresteiro canta como se estivesse nos convencendo que todas as suas estórias de sedutor são verdadeiras. Mas ele sabe que não são, mente até mandar parar! Nós sabemos que é tudo papo, mas fingimos acreditar, só pra dar corda. Ele sabe que nós sabemos disso, mas continua fingindo que acredita que nós não sabemos. Nos trata como se estivéssemos fascinados com seus causos fajutos. E o pior é que a gente acaba ficando!

O saxofone ali atrás, amigo da onça, finge contentar-se com seu humilde papel de figurante, mas logo dá um suspiro e admite melancólico, num gemido malicioso (de lágrimas de crocodilo), que estava na verdade era tramando uma estratégia para passar a perna no cantor e roubar a cena, comovendo a todos com um solo irresistivelmente encantador.

Enquanto isso, o cavaquinho e o bandolim, como dois moleques de rua, fingiam se esconder para então nos surpreender em uma, duas, cinco, dez notinhas coloridas, uma após a outra. Subitamente, o bandolim e o cavaquinho param! …e tocam a bola para o sax que mata no peito mas, como Garrincha, não faz logo o gol: enrola, sacaneia, dribla todo mundo, dá chapéu, joga entre as pernas, colocando a partida em risco, enfartando a torcida, descabelando técnico, adiando o gol só pelo prazer de jogar gostoso. E suspira num sol metálico, e a gente suspira junto.

A conversa de cordas da composição de Jacó do Bandolim, lindamente interpretada pelo Chorocultura, é a própria balbúrdia de uma cambada de feirantes tagarelas negociando aos gritos seus hortifrutigranjeiros. Dessa vez, todas as notas parecem querer passar a perna uma nas outras. Evidentemente, é fácil perceber que, neste caso, trata-se daqueles encontros fortuitos de velhos amigos que brincam de ofender-se entre si com todos aqueles nomes sujos que aprenderam na adolescência nos anos 40.

Para terminar, a malandragem come-quieta do cavaquinho abriu as comportas para uma torrente de notinhas de "Brasileirinho", o hino nacional dos chorões que, apesar de arroz-de-festa em qualquer evento cívico, sempre dá água na boca, pois tem uma melodiazinha muito é esperta e saborosa.

Entretanto, quem observou o comportamento do público durante a apresentação percebeu um fenômeno que, por si só, diz quase tudo que essa crônica pretende fazer: que inibição neurótica é essa que nos impede de sair dançando e pulando e se esfregando e esfolando os sovacos feito loucos nessa gafieira canalha? Em vez disso, todos ficaram lá, parados, braços cruzados, como se assistissem a uma palestra ou estivessem esperando o ônibus. No palco, o pau comendo, o cavaquinho alucinado, o pandeiro pegando fogo, o sax mandando ver, e a turma lá de baixo naquela pose de guarda de trânsito. O chorinho é entusiástico, contagiante, mas ninguém se deixou levar pelo inevitável arrasta-pé. O chorinho é enternecedor. Um professor chorou – de verdade! – em "Saudade". Mas ninguém teve coragem de pegar uma dama nos braços e levá-la para as alcovas da suavidade da música... só os dois... esquecendo o mundo… esquecendo até da banda… ninguém!

Por que somos tão travados assim? O que aconteceu conosco que ficamos com vergonha de coreografar todas aquelas verdades sobre nós mesmos, que o chorinho expressa lindamente? Não há nenhuma dignidade nessa timidez mórbida – se é que alguém considera indigno sair dançando e se esfregando feito patife nas gafieiras da vida. A festança do Chorocultura tem toda a força e autenticidade para provocar uma catarse, uma epifania, mas não aconteceu. Ficamos lá, maravilhados por dentro, mas estacionados, parados feito besta, com cara de hidrante. Que insegurança é essa que nos faz ter vergonha de nossa própria alma? Uma das respostas eu sei, mas, evidentemente, não vou dizer pra qualquer um, assim de graça...

[publicado originalmente no sítio Portfólio]

terça-feira, 15 de junho de 2004

Era uma vez um país


Vou contar para vocês uma história passada num país (do qual tenho apenas esparsas lembranças) chamado Organismo, dividido em muitas regiões e habitado por indivíduos chamados células. A política naquele país um belo dia desandou, porque o Partido das Células do Coração (PCCor) advogava medidas para amenizar o que considerava os efeitos nefastos do sistema econômico então vigente sobre a parcela dos indivíduos que habitava a região que representava. Anote-se, para melhor compreensão da História, que aquele país andava fragilizado na comunidade das nações, porque não conseguia produzir mercadorias com alta cotação no comércio internacional: vanidade, sordidez, sede de poder. Em compensação, o estoque de produtos subvalorizados como a dignidade, a coerência e a compaixão andava gerando danos perniciosos ao país, produzindo um excedente de melancolia (espécie de inflação das capacidades produtivas) que estava a paralisar várias atividades consideradas, por muitos, essenciais para a sobrevivência da nação. 

Era justamente esse excesso de melancolia que o PCCor procurava combater, propondo medidas como o estreitamento das relações com outras nações radicalmente amigas e a importação em larga escala de um produto raro chamado poesia. E como o governo do Organismo era particularmente fraco e susceptível às pressões que vinham da região do Coração, as reivindicações eram atendidas amiúde. O problema é que esse estreitamento acabava por gerar, num processo de, digamos, abertura econômica, a entrada em grandes quantidades no Organismo de álcool, substâncias gordurosas e outros agentes nocivos. Isso passou a aliviar significativamente as duras condições de vida das células que habitavam o Coração, mas começou a gerar insatisfação em outras regiões da nação. A situação começou a ficar mais tensa quando nem o incremento das importações de itens fundamentais para regiões carentes, como o Omeprazol, o Legalon 70 e a Colchicina, conseguiam acalmar os descontentes. 

Como os mercados andavam voláteis e as medidas de controle de fluxo ainda eram polêmicas, em um determinado fim de semana em que houve intensa aproximação com nações amigas do continente Carioca, o Organismo foi invadido por doses estratosféricas das substâncias referidas, como se pode ler nos mais abalizados historiadores, para gáudio do PCCor. Aí foi que o Partido das Células Hepáticas (PCH) se insurgiu contra o sobreacúmulo de trabalho a que seus individuos estavam sendo submetidos. Uniram-se a ele indivíduos das regiões dos Rins, do Intestino e até mesmo dos Pés - atingidos pela invasão de criaturas alienígenas conhecidas como Cristais de Ácido Úrico – e sublevaram-se todos contra o governo, que chegou a achar que perderia o controle da situação. 

A situação de momento, informa o correspondente especialmente enviado, é de negociação. O governo prometeu que fechará o fluxo de álcool e gorduras por alguns dias e anunciou medidas de enxugamento da máquina adiposa (embora boatos ouvidos nos mercados desmintam, o que causou forte agitação e conseqüente oscilação do índice de pressão arterial). A região dos Intestinos continua sofrendo atos de sabotagem dos insurgentes (não pode haver outra explicação) e à operação padrão dos Hepáticos juntaram-se os Neurônios, espécie de conselheiros rebeldes do governo. Este limitou-se, até agora, a esta lacônica nota: “só dói quando eu rio”. 

O PCCor informa em nota oficial aos governos das nações amigas que os estoques de prazer e alegria encontram-se substancialmente reforçados, o que tende a diminuir a taxa de melancolia circulante e aparentemente corroborar as medidas por ele propostas. Por isso mesmo as reivindicações serão, por ora, arrefecidas, em nome da governabilidade. 


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A história acima é homenagem a três figuras com quem pude neste final-de-semana exercer a arte maior da Convivência: Dani-sorriso-maracanã, Eduardo e Fefê. E aos atores que participaram desse filme de maneira nada coadjuvante, pelo bolão que bateram: Papai, Dani Boaventura, Sérgio Barreto, Railídia e Iara (a rainha de todas as minhas águas). 

A todos e como lembrança permanente desse momento, cravo aí ao lado (na coluna verde), com atraso, a punhalada primorosa de meu ídolo Aldir, em parceria com o grande Paulo Emílio (aí, se o Aldir me processar, que seja por duplo motivo). Une o sorriso de Dani, a generosidade de Fefê (que me devolveu o Aldir cantando junto com o meu Gordo), a amada podridão de Edu, os rios das minhas mágoas todas e esse nosso lindo monumental porre de 72 horas do qual ainda me refaço, física e emocionalmente. 

sexta-feira, 11 de junho de 2004






Luz Valenciana 

(Paulo César Feital) 


Dizem que Deus, 
Cansado do Divino Ofício 
Redigiu um armistício 
Deu um tempo a Satanás 
Se vestiu de jardineiro 
Um velho bem brasileiro 
Pra ter dois dias de paz 

Vasculho a criação 
Com pá e ancinho na mão 
Despiu-se da Onipresença 
Sentou-se numa nuvem imensa... 
De repente achou, enfim, 
Um lugar pro seu jardim: 
A cidade de Valença! 

E como o Senhor é Deus 
E Deus é surpreendente 
Resolveu criar pra Ele 
Um jardim bem diferente: 
Plantou notas musicais, 
Alguns bemóis, sustenidos 
Ao invés de plantar sementes 
Um dó, um ré, um mi, um fá... 
E o chão Ele orvalhou 
Ao som de um choro dolente 

E no centro do jardim 
Deus, estranhamente, plantou 
Uma só roseira 
Que tão delicadamente 
Concebeu uma só Rosa: 
Uma Rosa violeira! 
E o som vindo da flor 
Tocou, enquanto tocou, 
Toda a nação brasileira 
Um dia ela adormeceu 
E nunca mais despertou 
E dizem que Deus voltou 
Vestiu-se da Onipresença 
E todo dia ele chora 
Todo dia à mesma hora 
Sentado na nuvem imensa 

Quem sabe cantando agora 
Não possamos emanar 
Um canto pra despertar 
A nossa Rosinha de Valença! 


Valsa pra Rosinha 

(Jorge Simas / Paulo César Feital) 

Acorda 
Prima bachiana 
Viola essa cama 
Sente a emanação 
Volta, Luz Valenciana, 
Rosa, te chama o bordão 
Sinta o cheiro do absinto 
Sai do labirinto 
Dessa escuridão 
Tua alma ‘inda se engana 
Ronda a forma humana 
Na interrogação 

Sei, talvez, concretizaste 
O sonho que sonhaste 
E foste até o céu 
E, quem sabe até, formaste 
Um duo de chorinho: 
Rosa e Rafael! 

Mas volta ao corpo 
Pois no quarto 
Pulsa em dois por quatro 
O teu coração 

Ah...Rosinha 
Volta prosa, 
Volta Rosa 
Sonha não! 

Dormes, Rosa 
Eu bem sei que dormes 
No “Abismo das Rosas” 
Como na canção 
Abre os olhos 
Como abrem as rosas 
Que o Brasil precisa 
Do teu violão! 

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Não há mais interrogação. Depois de tão longa noite, Rosinha ontem finalmente despertou. Num outro jardim. Tocando só para o Senhor, que nunca mais há de chorar.