André Azevedo da Fonseca*
O chorinho diz tudo sobre nossa alma.
Por isso mesmo, morremos medo dele
A apresentação que o grupo Chorocultura realizou durante os eventos da calourada na Universidade de Uberaba de 2002 foi tão assustadoramente autêntica que nos fez lamentar a vergonha que temos de nós mesmos.
Não é que não gostamos de ser brasileiros – lá no fundo, existe até um certo orgulho, assim meio constrangido – mas somos acanhados, vacilantes; dificilmente temos coragem de confessar que o chorinho é a coisa mais certa e mais gostosa para acender alguma coisa indefinível dentro da gente.
A cadência maliciosa de vai-não-vai em que o chorinho se esbalda é uma delícia porque representa todas as características de nossa alma brasileira. Está tudo lá. O bandolim tropeça feito bêbado em uma escala e, através de malabarismos impossíveis, faz tudo dar certo quando o improviso parecia desembestar para a mais tremenda confusão. O sax finge sua manha elegante enquanto o pandeiro disfarça em uma cadência hipnótica. O cavaquinho, naquela de quem não quer nada, cutuca o violão que de repente descamba para a gafieira e o pau come solto.
Mas é por isso que temos medo de gostar do chorinho. Como em um espelho mágico, nos vemos nus, enxergamos nossa alma tal qual, sem ornamentos, sem maquiagem.
O seresteiro canta como se estivesse nos convencendo que todas as suas estórias de sedutor são verdadeiras. Mas ele sabe que não são, mente até mandar parar! Nós sabemos que é tudo papo, mas fingimos acreditar, só pra dar corda. Ele sabe que nós sabemos disso, mas continua fingindo que acredita que nós não sabemos. Nos trata como se estivéssemos fascinados com seus causos fajutos. E o pior é que a gente acaba ficando!
O saxofone ali atrás, amigo da onça, finge contentar-se com seu humilde papel de figurante, mas logo dá um suspiro e admite melancólico, num gemido malicioso (de lágrimas de crocodilo), que estava na verdade era tramando uma estratégia para passar a perna no cantor e roubar a cena, comovendo a todos com um solo irresistivelmente encantador.
Enquanto isso, o cavaquinho e o bandolim, como dois moleques de rua, fingiam se esconder para então nos surpreender em uma, duas, cinco, dez notinhas coloridas, uma após a outra. Subitamente, o bandolim e o cavaquinho param! …e tocam a bola para o sax que mata no peito mas, como Garrincha, não faz logo o gol: enrola, sacaneia, dribla todo mundo, dá chapéu, joga entre as pernas, colocando a partida em risco, enfartando a torcida, descabelando técnico, adiando o gol só pelo prazer de jogar gostoso. E suspira num sol metálico, e a gente suspira junto.
A conversa de cordas da composição de Jacó do Bandolim, lindamente interpretada pelo Chorocultura, é a própria balbúrdia de uma cambada de feirantes tagarelas negociando aos gritos seus hortifrutigranjeiros. Dessa vez, todas as notas parecem querer passar a perna uma nas outras. Evidentemente, é fácil perceber que, neste caso, trata-se daqueles encontros fortuitos de velhos amigos que brincam de ofender-se entre si com todos aqueles nomes sujos que aprenderam na adolescência nos anos 40.
Para terminar, a malandragem come-quieta do cavaquinho abriu as comportas para uma torrente de notinhas de "Brasileirinho", o hino nacional dos chorões que, apesar de arroz-de-festa em qualquer evento cívico, sempre dá água na boca, pois tem uma melodiazinha muito é esperta e saborosa.
Entretanto, quem observou o comportamento do público durante a apresentação percebeu um fenômeno que, por si só, diz quase tudo que essa crônica pretende fazer: que inibição neurótica é essa que nos impede de sair dançando e pulando e se esfregando e esfolando os sovacos feito loucos nessa gafieira canalha? Em vez disso, todos ficaram lá, parados, braços cruzados, como se assistissem a uma palestra ou estivessem esperando o ônibus. No palco, o pau comendo, o cavaquinho alucinado, o pandeiro pegando fogo, o sax mandando ver, e a turma lá de baixo naquela pose de guarda de trânsito. O chorinho é entusiástico, contagiante, mas ninguém se deixou levar pelo inevitável arrasta-pé. O chorinho é enternecedor. Um professor chorou – de verdade! – em "Saudade". Mas ninguém teve coragem de pegar uma dama nos braços e levá-la para as alcovas da suavidade da música... só os dois... esquecendo o mundo… esquecendo até da banda… ninguém!
Por que somos tão travados assim? O que aconteceu conosco que ficamos com vergonha de coreografar todas aquelas verdades sobre nós mesmos, que o chorinho expressa lindamente? Não há nenhuma dignidade nessa timidez mórbida – se é que alguém considera indigno sair dançando e se esfregando feito patife nas gafieiras da vida. A festança do Chorocultura tem toda a força e autenticidade para provocar uma catarse, uma epifania, mas não aconteceu. Ficamos lá, maravilhados por dentro, mas estacionados, parados feito besta, com cara de hidrante. Que insegurança é essa que nos faz ter vergonha de nossa própria alma? Uma das respostas eu sei, mas, evidentemente, não vou dizer pra qualquer um, assim de graça...
[publicado originalmente no sítio Portfólio]
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