terça-feira, 22 de junho de 2004

Leonel de Moura Brizola




Uma parada cárdio-respiratória aparentemente motivada por infarte fez o que a ditadura militar e o mais poderoso conglomerado de comunicação de massa do planeta juntos não conseguiram: calar a voz do velho caudilho. Sem dúvida, um dos políticos brasileiros mais importantes do século XX e uma das mais populares figuras da esquerda nacional, juntamente com Prestes e Lula. 

Tendo dele discordado um sem número de vezes, mais do que exaltar sua participação fundamental em tantos episódios da história republicana nos últimos 60 anos, deixo aqui a minha homenagem ao homem público que, no meu imaginário, desde as históricas eleições de 1982, sempre representou na política a sobrevivência da dimensão fundamental do sonho. Naquele pleito, impingiu a maior derrota eleitoral às forças políticas conservadoras, elegendo-se na contra-mão de todos os interesses e conspirações, apoiado pelas massas excluídas dos morros e da Baixada Fluminense. Mas vinte e um anos antes, Brizola já liderava a resistência à tentativa de golpe contra Jango requisitando a marcha sobre Porto Alegre de cavaleiros das estâncias riograndenses, com seus ponchos e bombachas, a quem armou com revólveres requisitados à uma grande fábrica gaúcha de armamentos. A atitude à primeira vista quixotesca acabou por engendrar a corrente de legalidade que garantiu a posse de Goulart e postergou por três anos o golpe que viria a instalar a ditadura militar no Brasil. 

Movido pelo mesmo sonho, o velho Leonel pôde dar asas às maravilhosas insanidades de outro sonhador, o saudoso Darcy Ribeiro, e romper pela primeira vez na história brasileira com o estigma de que a educação de qualidade seria prerrogativa dos filhos das classes abastadas. Ainda sonhando com uma sociedade onde a polícia respeitasse os barracos dos morros tanto quanto os apartamentos da Zona Sul carioca, foi criminosamente acusado, com patrocínio da Vênus Platinada, de se aliar aos interesses de traficantes com finalidades eleitoreiras. Raciocínio que, docemente abraçado pelas elites para as quais pé na porta do barraco dos outros é visita, não impediria que Brizola voltasse ao Palácio Guanabara nos braços do eleitorado pobre e politizado das regiões mais oprimidas da metrópole fluminense. Com que outras armas, senão o sonho, o caudilho poderia prometer acabar com a concessão pública ao sistema Globo com uma canetada? Meu Deus, quanto eu mesmo não sonhei com isso?... 

A lembrança que não posso deixar de registrar: eu, com dezenove anos, enfiado até o pescoço na campanha pesidencial de Mário Covas, assistindo ao último debate do primeiro turno das eleições. Minha mãe não entende nada quando, entrando na sala, me pega aos prantos gritando: “eu vou votar no Brizola, mãe... Eu vou votar no Brizola”! Motivo: o mais belo discurso que ouvi do maior dos oradores da política brasileira do meu tempo. Até o último de meus dias, não me sairão da mente as suas palavras: “Não votem em mim; votem em qualquer destes democratas que aqui se encontram”, em alusão às ausências do favorito Fernando Collor e do estapafúrdio Sílvio Santos. E pode ser verdade que a história não seja feita do “se”, mas também me permito imaginar, se não fossem pouco mais de 200 mil votos, o velho Leonel reduzindo a pó o “inspirado” candidato oficial no famoso debate depois torpemente editado pelo Jornal Nacional. 

E é essa a imagem, pois, que transmitirei à minha filha: a do nosso bravo e incansável Dom Quixote, investindo com seu corajosos devaneios contra os moinhos de vento do poder econômico e político exercido historicamente em nosso país em detrimento do interesse dos trabalhadores e de todo o povo. Para que nós possamos levar a diante a preciosa herança que nos legou – o sonho – nestes tempos em que a rude ditadura da realidade dada parece a cada dia mais ofuscar o brilho das nossas últimas esperanças.

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