terça-feira, 19 de outubro de 2004

Mudar



Nasci na Bela Vista, coração de São Paulo. Meus pais moravam nas Perdizes, Rua Bartira, primeiro endereço para onde me transferi depois de baixar neste terreiro doido. Embora tenha morado ali apenas até os dois anos, guardo uma imagem difusa do apartamento, que a princípio sequer se poderia tratar de memória, mas que minha mãe atesta bater muito com o lugar. De concreta, mesmo, a lembrança doce de subir a escada de cacos de cerâmica vermelha, mão dada com a vovó, contando os degraus em alemão: einz, zwei, drei... Pelos dados disponíveis, acho que fui feliz. E mudei.

Para a casa espaçosa do Sumaré, na Praça Joanópolis, 96. Neste importante ponto do universo, eu pude descobrir que era gente. E que ser gente era correr atrás de passarinho, desobedecer a mãe, ralar o joelho na mureta, ter medo de escuro e de ladrão e do Borges (o vigia-andarilho-mendigo que usava uma capa até a canela, chapéu de couro e óculos escuros e estava sempre de porre), ganhar pintinho colorido, chorar quando o pintinho virasse frango, ter irmã, judiar dela, ter ciúme, se arrepender, ir pra escola, fazer amigo, gostar de menina, soltar balão, andar de triciclo, empinar pipa, assistir a Xênia nos dias de chuva, esperar o vovô chegar do serviço com o saquinho de bala de goma (ou cigarrinho de chocolate Pan - que agora proibiram... - com fósforo de marzipã), ficar desidratado (por causa das gotas de pinho Alabarda, que a Giovana – que era linda e eu me apaixonei por ela – anunciava na televisão), ir pra o hospital, trabalhar com o pai, ser palmeirense. Definitivamente, fui feliz. E mudei.

Em janeiro de 1978, de volta às Perdizes, no 1003 da Rua Monte Alegre. A vizinha PUC havia sido invadida em setembro do ano anterior. As marcas ainda se viam nas paredes externas chamuscadas das bombas, nas histórias dos vizinhos, no muro do estacionamento ao lado do nosso prédio, onde a estudantada era tangida pela reiúna. PUC que foi o meu quintal, onde aprendi a jogar bola com os moleques da rua, onde matava aula do colégio, do primeiro beijo e do primeiro porre. Que foi capela e que foi alcova. Que depois virou casa, com a casa virando sucursal do Centro Acadêmico. Foram dezenove anos irresumíveis. Felizes. Casei e mudei.

De Perdizes, que ficou chata, tumultuada e burguesa demais, para a Pompéia, da Rua Barão do Bananal, 800. A velha Pompeía das ruínas da infância, na casa da minha outra avó, mas que já começava também a ficar chata, tumultuada e burguesa como está hoje. A Pompéia foi dos domingos em casa, com os amigos, comida, samba e cerveja demais. Do presente maior que a vida me deu, chegando em casa embrulhadinha numa mantilha branca de tricô. Das comilanças a dois e das noites em claro, na rua ou cuidando de cólica de neném. Um casamento é um casamento, ora sabeis. Onde, em maior ou menor medida, se é feliz naquela bela fase de quase todos os casamentos. Eu fui demais. E mudei.

Para o meu desterro da Armando Brussolo, na Vila Romana, que acabou virando pátria. Quase não deu tempo de ser feliz nem infeliz, medo maior. Mas a gente puxa o tamborim pra nossa baqueta e povoa a sala de amigos, o quintal de sambas, a cozinha de comida do pai, o banheiro de livros, o quarto de cheiros. Pra tudo se acabar em caixas, sábado agora.

O duro não é encaixotar as centenas de livros e cd’s. É a nudez da casa – que no fundo é a sua própria - escancarada, gritando, indiscreta sob as botas impessoais dos carregadores. Juntar os cacos das felicidades e tristezas para arquivar... O que ainda é nada comparado ao depois, àquele total estranhamento que sucede o ciúme. Àquele exílio de sua própria história.

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