terça-feira, 27 de março de 2007

Estupro


Expira esta semana o prazo final para os munícipes da nossa triste Cidade adequarem-se ao mais recente desatino da razão imperial pseudo-pública a que já nos referimos neste espaço. Inapelavelmente, garantem os construtores de mais um delírio normocrático, até o fim-de-semana São Paulo estará livre de outdoors, placas de publicidade, letreiros, cartazes, luminosos, toldos e qualquer coisa que aluda a marcas particulares, com exceção futura, por óbvio, daquelas que o poder “público” resolver alugar arbitrariamente em proveito próprio.

E assim, de alguns dias para cá, a Velha Senhora tem começado melancolicamente a se despir, exibindo as vergonhas menos tristes pelas judiarias do tempo e da vida do que pela violência com que estão sendo postas a nu. Não o desvestimento natural do banho, nem a nudez voluptuosa do sexo, antes o despojamento forçado, brutal do estupro, indignidade suprema e imperdoável. Privada das dissimulações de suas rotas farpelas, eis que vê emergir o insuportável impudor dos seus esconsos violados até os limites últimos da integridade plausível de sua alma.

Desvela-se, assim, pouco a pouco, não um corpo, mas um monstrengo deformado nas pequenas e grandes dimensões de sua persona subjugada. Uma anciã cuja psique não sobreviveu ao incontrolado dos próprios desatinos, aos seus desejos paranóicos de não-ser, de consumir-se desenfreada e incessantemente, pelo simples “prazer” de ver girar a roda viva da grana que ergue e destrói todas as coisas, belas ou não. Que perdeu completamente a capacidade de manter-se íntegra a despeito de sua tão propalada auto-suficiência.

E a nós, de quem foram arrancadas impiedosamente todas e quaisquer possibilidades de diferenciação, de reconhecimento, de orientação, a quem foram peremptoriamente negadas as verdades simples de ruas e casas e lembranças, só nos restava a pantomima burlesca de marcas e placas e anúncios e letreiros. Pois se o nosso mundo de verdade foi destruído, um mundo honesto de vizinhos, farmácias, açougues e butecos, como podem agora nos querer arrancar dos simulacros aos quais, mais ou menos coletivamente, tivemos que nos agarrar para sobreviver na indistinção do caos induzido? É verdade que cada cidade tem o Redentor que merece, mas como é, meu Deus, que vamos nos guiar pelas noites náufragas sem o relógio do Itaú a luzir como um farol de esperança e Consolação?

Sobreviverá a Cidade, afinal, a si mesma? Suportará o horror das chagas que por tantos anos se auto impingiu? Será minimamente possível esperar que nossa verdade, enfim, nos liberte? Ou os infernos acolherão, por fim, os restos infectos dizimados por purulências de gangrenas irreversíveis?

Um comentário:

  1. È muito pouco e muito do que se perdeu, especialmente de intersubjetividade, é irrecuperável. No entanto, para mim, a cidade está um pouco melhor com a diminuição da propaganda, com suas poucas belezas e muitas mazelas um pouco mais expostas.

    Abraço,

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