segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Simplesmente Denise


“Denise era o nome de uma ótima cantora que eu gostava muito de ouvir nos finais da década de 80 em bares saudosos como o Clube do Choro e o Bar da Virada, muitas vezes em companhia do não menos saudoso Jorge Costa, um dos melhores e menos lembrados compositores do samba de São Paulo (embora fosse, de origem, alagoano e tivesse sido criado na Mangueira). Bela voz, com aquela bossa e versatilidade bem “noite”, que lhe permitiam transitar sem sustos de um samba-canção bem “alaíde” até um sacolejo mais “alcione”, passando por “ademildes” e “beths”.
Ano passado descubro uma outra Denise, assinalando presença marcante numa das faixas do primeiro CD dos rapazes do Quinteto em Branco e Preto, dedicada aos sambas da Velha Guarda do Camisa Verde-e-Branco. Soube também, na época que ela comandava a função num local onde se reuniam vários dos integrantes da ala mais nobre da escola da Barra Funda (sobre o qual vou escrever para vocês na próxima semana). Mas minha maior e melhor surpresa foi descobrir, noutro dia, que as duas Denises são, na verdade... a mesma! E pela canja que ouvi na oportunidade, sem falar na própria gravação citada, parece que está mesmo em plena forma.”


Escrevi este texto em junho de 2001, quando editava a seção paulistana das notícias da Agenda do Samba & Choro. Na ocasião, ninguém menos que mestre Nei Lopes tascou lá na Agenda o seguinte comentário: “Denise é uma das maiores cantoras de samba do momento. E já está mais do que na hora de ela gravar um disco só dela. Alô, gravadoras descompromissadas com o pop e com o jabá!!!!!”. Passados, pois, oito anos, o primeiro disco dessa estupenda intérprete finalmente foi gravado e só está esperando a mixagem para sair. A grande Denise Camargo confidenciou semana passada à minha querida Railídia, outra grande intérprete do samba de São Paulo, que a única coisa com que ainda sonhava era poder ver seu tão esperado trabalho finalmente na rua. Talvez uma estranha premonição. Na madrugada de sexta-feira para sábado, depois de se apresentar numa roda de samba na quadra do Camisa Verde-e-Branco, na festa de escolha dos novos Cidadãos Samba da cidade, Denise sofreu um enfarte fulminante. Morreu, na flor de seus 59 anos, como todo sambista aspira: “numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”.

Convivi com ela em dois períodos distintos das nossas vidas. Na época citada no trecho acima, do final dos anos 80 até meados de 1994, quando a morte de Jorge Costa, o fechamento de alguns importantes redutos do samba e outras cositas que não merecem vir à baila, começaram a afastar-me do ambiente das rodas e escolas. A mocidade era risonha e franca, e nós bebíamos, cantávamos, falávamos de samba e da vida, como convém a bons companheiros de noite. Anos depois, reaproximado das coisas e da gente do samba, reencontramo-nos por ocasião da apresentação a que a notícia se referia. Só então comecei a conhecer pra valer a grandeza desse ser humano excepcional e sua importância na história das escolas de samba da cidade de São Paulo. Vi poucas pessoas tão unanimemente queridas; sobretudo num ambiente onde a competição, a rivalidade e - por que não dizer? – as vaidades muitas vezes sobrepõe-se ao valor pessoal de um artista. Tive a honra de tornar-me seu amigo, conhecer sua belíssima família, sua casa. Nunca mais deixamos de nos encontrar, numa roda aqui, num evento ali, sem os mesmos descompromissos notívagos do passado, mas aprofundando um respeito e um bem-querer mútuos que me orgulham como poucas coisas nesta vida.

Denise foi uma intérprete excepcional, uma amiga querida, um baluarte do samba paulistano. Comandou históricas reuniões de sambistas, como no Em cima da hora, no Bairro do Limão, e o “angu da Denise”, no tradicional “Cantinho do Peruche”. Integrava a Velha Guarda de sua gloriosa Unidos do Peruche, escola das mais queridas e respeitadas nesse chão de Piratininga. As traiçoeiras águas de janeiro e fevereiro, que são misteriosamente pródigas em carregar sambistas para a grande batucada que nunca termina, já tinham-nos levado este ano o grande Xangô da Mangueira, Casemiro da Cuíca, Dona Edith e a queridíssima Doca. Agora, foi-se a nossa amada Denise. Choram Portela, Estação Primeira, Peruche. Chora o Camisa Verde-e-Branco, Mocidade Alegre, Unidos de Vila Maria, Rosas de Ouro. Caudalosos prantos correram pelas ruas da cidade, neste sábado, para desaguar na quadra histórica, ali na Ponte do Limão. Os inúmeros bambas que ali estiveram puderam reverenciar a memória de Denise num grande pagode-homenagem, como ela sempre quis que fosse. Quase podíamos ouvir no meio da noite quente sua voz inconfundível a nos consolar, no samba de Ideval e Zelão que ela consagrou pelos quatro cantos da cidade:

A lua vem surgindo
sereno do céu vem caindo:
É madrugada!
Eu já afinei a minha viola
peguei paletó vou me embora
pra batucada!
É lá que eu esqueço a saudade
e sonho com a felicidade
que eu desejei
E canto no meio da moçada
Esqueço aquela malvada
que eu tanto amei
Não sei por quê
Não sei por quê
Felicidade dura pouco para mim
Não sei por quê
Tristeza so no samba é que tem fim...


5 comentários:

  1. Caro Fernando
    O texto só pode ser seu, não? Maravilha! Denise era mesmo grande! E esse CD? As gravações tinham sido concluídas? É coisa q não pode ficar em fundo de gavet!

    Abração,

    Chico

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  2. Grande Chico, Enciclopédia do Samba! Fique tranqüilo, que o Cd da nossa querida amiga está em ótimas mãos: faz parte do pacote de 12 lançamentos do projeto "Memória do Samba Paulista", organizado pelos competentíssimos T Kaçula e Renato Dias. Já tem Velha Guarda da Rosas de Ouro, um primor, vem saindo também Toniquinho Batuqueiro, esperadíssimo. Nossa querida Denise terá postumamente o reconhecimento e a homenagem que sempre mereceu.
    Grande abraço!

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  3. Grande Fernando vc me emocionou com esse texto tão maravilho e sincero, ela considerava não só vc mas todas as pessoas no mundo samba, até o flanelinha que olhava carro na rua, humildade pura de um coração tão grande, uma dona de casa perfeita na qual nunca nos deixou faltar nada, eu posso dizer que tive uma univerdade dentro de casa a onde aprendi inumeras coisas tanto com ela quanto ao meu pai que faleceu a 7 meses atrás tb..Pois é, a vida nos prega surpresas e com isso aprendi que temos que aproveitar o máximo a convivência com as pessoas que a gente ama, abraçar, beijar a todo tempo de espaço, pois pra Deus não existe a idade certa e nem cronologia, quando chega a hora temos que ir pra cumprir a missão em outro lugar. Do mais eu só tenho a agradecer vc fernando e todas as pessoas que prestaram a homenagem a minha mãe e que vida continua e com certeza eu o meu irmão Nenê vamos continuar com a herança que ela nos deixou. Espero que o CD dela saia rapidamente para que a nossa homenagem a essa grande sambista e grande pessoa seja completa.

    Um forte abraço a todos.
    saudações sambísticas, Marcio Camargo - cantor e compositor.

    Cabaré, Cabaré, um noite de pecado, negro escândalizado, esqueço o meu passado...

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  4. Meu caro amigo Márcio, você e Nenê agora, mais do que nunca, são depositários do grande respeito e apreço que sempre nutri pela minha querida amiga Denise e pelo saudoso Camargo. Que os caminhos da vida permitam que a gente siga por aí, juntos, celebrando essa herança grandiosa que tivemos a honra de receber dos que nos precederam. Grande abraço!

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  5. Parabéns Fernando!
    Seu texto veio emocionar-me novamente...Denise foi sem dúvida nenhuma,uma das maiores interpretes do samba paulistano...quando soube de seu falecimento,por ironia do destino,estava em uma roda de samba aqui Campanha MG,onde resido atualmente!Recebi o telefone justamente quando eu cantava um samba,e não pude deixar de cantar na sequência "cabaré" um dos grandes sucessos dessa diva do nosso samba!...Denise saudades eternas!
    (Mário André Silva)
    Campanha -MG

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