terça-feira, 1 de julho de 2008

Aos inimigos, a lei


Pois há hoje dez dias que entrou em vigor a nova lei regulamentadora dos (não) limites de ingestão alcoólica para condutores de veículos. Loas, claro. Não seria eu, que optei já há quase quatro anos pela bebida, em detrimento do volante, a criticar as inquestionáveis razões da medida. Minhas indagações são outras, até porque de razões em geral já há bastante gente a se ocupar.

Pretendendo ilustrar os impactos da nova legislação sobre a vida das cidades, matéria do Estado de São Paulo de ontem, por exemplo relata o caso do condutor de uma camionete que invadiu um posto de gasolina em alta velocidade, possivelmente por ter perdido o controle do veículo após um “racha”, matando e ferindo várias pessoas. Eu, que já perdi gente querida por irresponsabilidades automobilísticas de matizes diversas (inclusive etílicas), e não perdi outros mais por pura providência superior, pergunto: nesta hipótese específica, foi (só) a bebida que matou e feriu quem não tinha nada a ver com o peixe? É imperioso indagar que espécie de gente entra num carro e sai a altíssimas velocidades disputando corridas pelas ruas das cidades! Esse tipo de animal precisa beber, ou sua existência pura e simples já atenta contra a incolumidade alheia? Repita-se, isso não é para desqualificar os acertos das novéis restrições aos motoristas. É para perguntar: qual lei nos socorrerá da imbecilidade absoluta? Quais vergastas deverão ser impingidas, para vermos definitivamente execrados e banidos os padrões de conduta de uma casta criada sob a certeza de que o mundo, as vidas, as ruas, tudo lhes subjaz como propriedade de se pôr e dispor? Responsabilizar sempre a droga, a bebida, as más influências, o sistema, ou o quer que o valha, é sempre achar o diabo no “outro”, no que não está em nós. É fechar os olhos para a face bestial de um determinado tipo de cultura, e também, é claro, para o lado escuro, podre e vil da natureza humana que todos compartilhamos.

A estatística é, por certo, a mais ignara forma do saber humano. E não só pela razão, esta óbvia, de que não reflete nenhum conhecimento em si mesma, dependendo das interpretações e análises que a partir dos dados numéricos se possam tecer – e, conseqüentemente, da inteligência, competência, boa-fé do intérprete-analista. Mas pelo motivo superior de que ela não pode mensurar o não-ser, o não dado, que tantas vezes tem muito mais a nos dizer do que o que salta aos olhos. Pela estatística sabemos que não sei quantos por cento dos crimes violentos cometidos estão direta ou indiretamente associados ao ambiente do bar; que o uso do álcool relaciona-se a tantos por cento dos casamentos e famílias dilacerados; a outros tantos de perda do emprego, ruína pessoal e insanidade. Isso está lá nos prontuários médicos, nos boletins de ocorrência, nos registros de RH. Entretanto, o número que jamais nos será dado conhecer é: a quantos não-crimes está associada a bebida? Quantas vezes o cidadão oprimido no ambiente de trabalho, humilhado no transporte público, exasperado pela dureza da vida, não deixou de fazer uma besteira, porque antes de chegar em casa encontrou dois conhecidos no butiquim e pôde esfriar a cabeça, serenar os ânimos e pensar que ainda existem a camaradagem, a convivência e a fraternidade, isso tudo tomando uma cervejinha? Nenhum levantamento sociológico nos informará quantos cidadãos são salvos da insanidade e do desespero porque podem, vez por outra, encontrar refrigério para as vilezas de um mundo povoado de “doninhos de tudo”, relaxando e confraternizando-se em torno de uma mesa de bar. Alguém poderá contar quantas vezes a “baixa da guarda”, após algumas doses, foi responsável por reconciliações e superações de rixas e antagonismos que a dureza das “razões” jamais permitiria?

A razão tem sua esfera de eficiência e legitimidade no equacionamento de alguns dilemas da existência humana. O problema é quando se passa a tomar suas assertivas como verdades para além de qualquer questionamento, como se todo o amplo espectro do ser fosse abarcável em toda a sua complexidade por uma faculdade humana, por definição limitada. Do fato de que algumas coisas sejam inteligíveis não segue que tudo possa estar sob a égide legisladora da razão humana. O que não-é, o que só pode ser sentido ou percebido por intuição, o que é cognoscível por meio da emoção ou do prazer estético, tudo é fonte de conhecimento e sabedoria e não pode ser esquecido, sob pena de abdicarmos de uma existência plena e feliz, em nome de uma pseudo-segurança limitadora e intrinsecamente medíocre que nos confere a ditadura dos padrões "inquestionáveis" de certa racionalidade.

Parafraseando ao inverso o famoso aforismo de Martin Niemöller, um dos baluartes da resistência anti-nazista na Alemanha, quando vieram buscar os tabagistas, mesmo não sendo fumante, não me calei. No início, para proibir-se o fumo em ambientes fechados, usaram-se razões perfeitamente sólidas e defensáveis, de preocupação com as prerrogativas do não-fumante, de defesa da qualidade dos ambientes públicos, de prevalência do interesse coletivo sobre as liberdades individuais etc. Mas como nem tudo que tem cabeça tem ombro, onde passou um boi, passou a boiada inteira. Sociedades “civilizadíssimas” há em que o cidadão não pode mais fumar trancafiado sozinho dentro de um quarto de hotel, nem isolado numa ilha deserta. O uso do tabaco foi erigido em aberração moral, em desvio de conduta, em crime de lesa-humanidade, de modo que a racionalidade inicial a justificar certas restrições hoje é peça de museu.

Então, meus amigos, atenção. Hoje proíbe-se o álcool para quem vai dirigir. Aplausos. Amanhã, todo um modo de vida em que o ato de beber, mesmo não sendo estritamente essencial, é componente de um intrincado jogo de relações simbólicas e ritualizações inerentes a um específico modo de sociabilidade, estará sob a mira das bestas-feras ditadoras da moral.

9 comentários:

  1. Perfeito! Maravilha, mano! Eu tava pensando em escrever algo a respeito disso, mas você já disse tudo. É isso aí!
    PS: dentro do que você escreveu: dias atrás, uma assinante do jornal escreveu no correio do leitor que a multa deveria ser aplicada não apenas ao motorista embriagado, mas também ao passageiro que, por ventura, também houvesse bebido um pouquinho! Medidas como esta são ótimas para reacender a sanha fascista de nossa classe média.

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  2. Anônimo1/7/08 17:28

    Voce, como sempre, disse tudo e mais um pouco.
    Beijo.

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  3. "Na primeira noite eles se aproximam
    e roubam uma flor
    do nosso jardim.
    E não dizemos nada.
    Na segunda noite, já não se escondem;
    pisam as flores,
    matam nosso cão,
    e não dizemos nada.
    Até que um dia,
    o mais frágil deles
    entra sozinho em nossa casa,
    rouba-nos a luz, e,
    conhecendo nosso medo,
    arranca-nos a voz da garganta.
    E já não podemos dizer nada."

    É isso.

    (Trecho de "No caminho, com Maiakovski", de Eduardo Alves da Costa)

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  4. Na minha humilde opinião isso vai acabar como tudo aqui no Brasil: Daqui há um mês ninguém fala mais nisso, e nem teremos mais fiscalizações nas ruas.

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  5. Não seria mais prudente, meu velho, proibir o uso de automotores ? Será que os doutos não percebem que o problema não é a bebida; é o carro...

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  6. Jardim suspenso? E a cultura, a política e as sandices em geral?

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  7. Já viram os índices de internações hospitalares por acidentes de trânsito em SP e Rio? Eu vi. Em alguns hospitais, caíram pela metade depois da Lei Seca!

    Antipática ou não, o q importa é q FUNCIONA.

    Não há como se impedir, TOTALMENTE, um acidente. Mas pode-se diminuir. Um racha, por exemplo, de fato pode ser cometido por quem ñ bebeu.

    Eu apóio a Lei Seca. Quem quiser q pague táxi ou beba perto de casa. Ao contrário de hospital público, buteco tem em qualquer bairro do país, graças a Deus. ]

    Beijo, amigo!

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  8. Mas, Eugênia, como fica a vida do cara que leva a pretendente, pela primeira vez, num restaurante? Como será o clima do primeiro encontro à base de água mineral com gás? Não dá! A ocasião pede uma ou duas garrafas de vinho, exige uma sutil embriaguez no ar, um leve torpor que faça a moça baixar a guarda e o rapaz tomar coragem de avançar o sinal (não o de trânsito, diga-se). Um adulto que se preze não fica bêbado com uma ou duas garrafas de vinho. Meu medo é que leis desse tipo acabem nos transformando num exército de reprimidos. Beijo!

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