terça-feira, 4 de março de 2008

Samba Popular Brasileiro

Parte I - Música Popular: um traço de brasilidade


O conjunto das manifestações do artifício humano que exprime as vivências, representações, percepções e interpretações de mundo, no âmbito de um determinado grupo social é o que chamaremos aqui de cultura. Cultura popular, por sua vez, aquela que, não se pautando pelas regras estritas do academicismo erudito (isto é, não subjugados pelos cânones da erudição, embora por vezes possua os seus próprios, localizadamente), desenvolve-se à margem da hegemonia do grande capital, tida essa como o conjunto de sistemas, técnicas, lógicas, ideologias precipuamente voltadas para a perpetuação de um específico modo de produção, qual seja o modo capitalista. Vale dizer, a cultura não erudita que igualmente não se produz com a finalidade específica da produção de valor de troca (mercadoria).

A cultura popular, portanto, representa uma esfera da vida social onde as diferentes representações e simbolismos dispersos pelo corpo social podem se expressar e assim interagir, de modo a estabelecer as “sinapses” comunicativas essenciais para a composição de um substrato representativo comum que possibilite o entendimento entre os indivíduos. Neste sentido, podemos afirmar que quão mais intensa a produção cultural, mais entretecidos serão os universos significativos dos diferentes indivíduos componentes de um grupo social, com uma ampliação das possibilidades comunicacionais e, conseqüentemente, de resistência à planificação massificante imposta pela hegemonia.

No âmbito da cultura popular assim definida, a arte que se desenvolve sem a finalidade estritamente comercial (embora possa e deva inserir-se no mercado, até como condição de sobrevivência) chamaremos arte popular, dentro de cujo espaço está inserida a música popular lato sensu. Ainda no âmbito das definições conceituais, para efeitos práticos (não teóricos), por música popular brasileira stricto sensu entenderemos as manifestações que não as de ordem da música tradicional, de expressão tipicamente regionalizada, normalmente associadas à dança ou a funções dramáticas (de formato processional ou em forma de auto), perpetuada a partir da transmissão oral, tais como o jongo, o carimbó, o maracatu, a congada, o batuque, o tambor-de-crioula, a cana-verde, a folia-de-reis, o samba rural, a tirana etc.

A partir da singularidade dessas diversas expressões localizadas geograficamente, podemos encontrar traços comuns; possivelmente, por um lado, em função de origens assemelhadas, a partir de elementos da música africana, indígena e européia, entre outras (mas diferenciadas a partir das peculiaridades do processo de amalgamação). Por outro, por via da disseminação pelo território nacional das formas oriundas dos centros produtivos de maior pujança econômica (Sudeste, principalmente o eixo Rio-SP), que concentravam os meios materiais de divulgação, notadamente o rádio e a indústria fonográfica, nos primórdios. Destarte, o que a partir de agora designaremos música popular brasileira, exprime esta acepção restrita, que normalmente expressa formas musicais que incorporam elementos da tradição regional, mas que somados a outros de uma linguagem comum nacional, vão constituir uma expressão cultural capaz de ser assimilada em diferentes pontos do país. Dito de outra forma, e de maneira um tanto simplista, essa música popular engendra o “nacional”, a partir da dialética recorrente entre o particular e o universal.

A idéia de brasilidade foi forjada a partir da cultura dos indivíduos comuns do povo brasileiro e traduz essa forma nossa toda particular de ser e estar no mundo, reconhecida em todas as partes do mundo. É claro em muitíssimos autores brasileiros desde o século XIX que a elite sócio-econômica não se reconhece nesse jeito de ser. Suas aspirações, suas referências, seus valores são importados, vêm dalhures e negam expressamente a originalidade, a significação e a importância dessa cultura nativa. A idéia de pertencimento a uma nação foi, pois, forjada a partir das classes populares, que dela se valeram, desde há muito, como uma força aglutinadora, de resistência. Por isso insisto no reconhecimento da verdadeira importância da dimensão cultural na vida do povo e da nação. Esse processo de constante mediação é o que permite que as relações sociais se processem baseadas na integração racional pela via do entendimento entre os indivíduos, e não de acordo com as estruturas formais de mediação que tendem a gerar relações reificadas, marcadas pela opressão. Assim é que podemos situar a música popular no Brasil exercendo, no âmbito nacional, o mesmo papel que as manifestações tradicionais no seio de suas comunidades de origem, qual seja o de contribuir dialeticamente para a ampliação do universo significativo comum onde vai se construir a idéia e o sentimento de “povo brasileiro”.

[continua]

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