terça-feira, 11 de março de 2008

Samba Popular Brasileiro (cont.)

Parte II - O samba pede passagem


Inegavelmente, de todas as formas musicais populares do Brasil que atingiram efetivamente o status de "nacionais", no sentido que aqui estamos empregando, o samba atingiu o cume mais elevado, possivelmente por exprimir com maior perfeição o amálgama das diversas correntes tributárias do caudaloso caldo da cultura nacional, bem como a síntese dialética mais bem acabada entre a singularidade expressiva e a aceitabilidade universal. Isso sem negar, por óbvio, a preponderância política e econômica do Sudeste brasileiro - onde o samba se desenvolveu até atingir a forma urbana moderna que conhecemos - como polo irradiador de cultura, inclusive com indisfarçado patrocínio estatal durante a era Vargas. Essa disseminação é visível, perfeitamente identificável em todo o território nacional, inclusive nas que padeceram maiores dificuldades de integração.

O samba constituiu-se num dos traços mais autênticos e genuínos da cultura brasileira. Forma de expressão musical essencialmente negra em suas matrizes, símbolo da contribuição africana na formação da nação brasileira, e que ao mesmo tempo traduz como nenhuma outra os traços mestiços desse povo que se forma do encontro de muitas etnias. O samba espelha de maneira maravilhosa a incorporação dos principais legados culturais da africanidade para a identidade brasileira, num exemplo portentoso de afirmação e síntese dialética na construção dos traços marcantes da face nacional.

Mais que um gênero musical, uma dança ou uma festa, o samba representa verdadeiramente uma cultura, enquanto um modo de ser, de se comportar, ver o mundo, interpretá-lo e reexprimí-lo. Repousa sua força e vitalidade na expressão desse jeito de ser no mundo, próprio do povo brasileiro. E se ele exprime o encontro das culturas e das nações que formam o Brasil, inegavelmente é por sua matriz negro-africana que se encontra tão impregnado da idéia de tradição (do verbo latino trado = entregar, transmitir). Tradição que não se pensa como algo estanque, que não evolui, mas pelo contrário, que se transmite e se transforma, não perdendo a referência de suas fontes primárias.

Da cultura africana o samba herda, pois, a consciência de que os indivíduos não existem isoladamente, mas relacionados verticalmente com os antepassados e descendentes, e horizontalmente com a comunidade a que pertence. O indivíduo constitui-se, na cadeia das forças comunitárias vitais, como elo vivo de ligação entre os antepassados e os descendentes. Daí sua responsabilidade na guarda da tradição recebida e sua transmissão às novas gerações, acrescentando-lhe a sua força vital, traço distintivo de sua presença no mundo. O universo histórico e cultural em que o samba se insere, portanto, o credencia como espaço privilegiado de afirmação da preponderância da cultura como "cimento" do substrato simbólico indispensável para a comunicação social possível e, conseqüentemente, para construção das teias de resistência à lógica impositiva, impessoal e destrutiva da acumulação capitalista.

Escrevia eu, alhures: “Como sempre lembra mestre Nei Lopes, o samba é um saber iniciático, no que espelha inequivocamente, aliás, a matriz cultural africana. Não se compreendem seus significados, suas regras e sobretudo seus mistérios, se não se progride na experienciação paulatina desta ampla gama de sutilezas que permeia as relações, os rituais, os ambientes em geral desse universo. Portanto, para que o samba possa aumentar o número de seus adeptos cativos, insusceptíveis aos ventos efêmeros dos modismos, é preciso que se ofereça a este publico que se aproxima do “produto final” do mundo do samba a procura de entretenimento condições para que ele compreenda os diversos outros elementos a envolver esta expressão cultural tão singular. Se hoje o samba se afirma, estribado em apoios importantes, são muitos ainda os obstáculos a transpor para firmá-lo como forma e espaço privilegiado de afirmação de um modo de viver, pensar e agir diferentes daqueles imposto pelos padrões dominantes, hoje em escala globalizada.”

A cultura do samba engendra uma forma particularmente brasileira de construção social. Nela prima a singularidade do indivíduo e de sua expressão criativa, enquanto na sociedade capitalista o indivíduo é uma parte desqualificada de uma massa informe. O sambista é sujeito da história quando constrói seu espaço de sociabilidade, de integração e de expressão singulares a partir da prática do canto, da dança, da poesia, da crítica. O indivíduo na sociedade capitalista está sujeito às regras preestabelecidas que normatizam os espaços de integração e socialização, sobre as quais ele não pode influir.

O que pode parecer mera teoria, transforma-se em vivência: quem participa de um samba verdadeiro pode experimentar, na prática, uma forma de socialização que rejeita e reinventa as regras da sociedade capitalista; pode experimentar uma das mais belas formas de funcionamento de uma estrutura social sem classes, sem o predomínio da lógica abstrata e embrutecedora do dinheiro e do poder. A roda de samba é o modo privilegiado de celebração, no sentido ritualístico de destacamento e atualização, dos elementos que compõem esse universo tão rico, tão singular e tão significativo. Muito mais do que nas gravações, nos discos, que cumprem o papel do registro histórico, na roda é que o samba vive e pode disseminar a sua força de coesão e de resistência. Ao som das palmas e da marcação dos tambores é que se faz presente e atual todo o universo simbólico e valorativo, com suas regras, seus oráculos de sabedoria, seus ritos e mitos que tanto representam para a compreensão e estruturação da própria idéia de brasilidade.

Em outra passagem do texto citado acima, completava: “O samba por todo o país vive um momento privilegiado no que tange a sua visibilidade para o público em geral. Mas a história ensina que o maior “sucesso” em determinados momentos nunca garantiu ao samba o reconhecimento efetivo e perene que ele merece enquanto expressão maior da especificidade musical brasileira. Assim, ele parece nunca ser tratado pelos porta-vozes da ‘oficialidade’ como o patrimônio cultural fundamental do povo brasileiro que realmente é, muito pelo contrário.”

Vale dizer, a expansão do consumo dos produtos musicais ligados ao universo do samba, por si só, nada garante relativamente ao histórico descaso e à marginalização marcadamente ideológica relativa ao gênero - comumente associado às classes baixas e à cultura negra (pejorativamente), quando não à malandragem e à marginalidade. Há que se proporcionar às platéias aptas a compreenderem essa forma da arte musical do povo brasileiro condições e vivências para plenamente poderem percebê-lo como expressão maior de toda uma cultura, que traduz formas específicas de sociabilidade, comportamento, ética, visão de mundo.

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