sexta-feira, 14 de março de 2008

Chove chuva...

...chove sem paraaaaaaar
(Jorge Ben Jor)



(Sempre me constrangeu um pouco essa construção: a chuva, no caso, é sujeito ou objeto? Porque, de regra, não aprendemos que o verbo é intransitivo e o sujeito inexistente? Chove. A chuva do verso esculhambou completamente a empáfia do chover... Caramba, não era nada disso que eu queria dizer; aliás, queria dizer alguma coisa?)

O fato é que chove. Chove e estou preso aqui. E por isso, muito provavelmente, tenho que enrolar algum assunto para a crônica de amanhã - que será hoje quando estivéreis lendo. E vós, que não vos apercebeis das coisas, acharão tudo estranho e sem sentido. Chove uma chuva canalha, sórdida, sim senhor. E completamente alheios a essa canalhice essencial, impedidos de voltar o olhar para o passado ululante, vós, como de hábito, lançareis a vossa condenação surda e inapelável: “Não sabe o que diz, coitado. Está, afinal, como os outros...”

Porque não percebestes que as chuvas, como as moças, têm múltiplos e imprevisíveis temperamentos? Outro dia mesmo reparava numa chuva elegante, muito convicta no seu chover solene, mas de que leveza... Luminosa, até! Uma chuva digna de todos os deslumbres. Há as chuvas melancólicas, sentimentais, que nos arremessam a estados desaparecidos do ser e despertam as ternuras mais sinceras. Essas, via de regra, são ligeiramente perigosas, como o tudo o mais que se põe a cavocar passados tão densamente povoados. Já as tempestades, as há circunspectas como uma primeira-ministra inglesa, avassaladoras como uma Gilda de Rita Hayworth, e até mesmo as petulantes, de uma agressividade desnecessária e insolente, como essas tantas que deparamos pelas instâncias diversas da burocracia nacional.

Nomeado que fui para a missão de singrar os mares revoltos da existência sem direito a rechaçar mau tempo, vou tentando driblar minha incompetência, num jogo de corpo aprendido e previsível de zagueiro grosso, mas veterano. Na base da catimba, mantenho a cabeça erguida, apesar de uma bola entre as pernas aqui, um chapéu ali, procurando honrar a camisa. Ainda que hoje dispute a liga barbante, ao longo da carreira enfrentei-as todas, as petulantes, as avassaladoras, sentimentais e elegantes. Não vou dizer que não tenha engolido água, nem mesmo posso negar que um braço salvador tenha tido a fortuna de estar no lugar certo, hora exata. Mas cheguei aqui, ora essa, e me arvoro no direito de não ter de tolerar certas coisas.

Pois chove hoje, meus amigos, uma chuva simplesmente, insuportavelmente calhorda; destituída de mínimos escrúpulos que lhe pudessem mitigar a vileza, a disposição única de existir encastelada em sua velhacaria. Nem roreja, nem troveja: chove indiscriminadamente. E os calhordas, de hábito um tanto mais dissimulados, acobertados por sua chuva cúmplice, aproveitam a disseminação da patifaria para adrede exercer o seu ofício desprezível. Geladas as possibilidades de reação, ilhado e aviltado o artífice em seu acuamento, não podem, entretanto, impedir a vingança única, a satisfação íntima possível: “Calada a boca, resta o peito... Calado o peito, resta a cuca”.

No último dia, o Senhor fez a crônica; e viu que isso era bom.

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