“É um trabalho de teatro. A vida é um palco e a gente se diverte”
(Armando Colacciopo)
Há três dias, por um presente divino, encontrei-o no Ó do Borogodó. Lá ia ele todas as noites, vender seus famosos bichinhos. Do mesmo jeito que no Bar do Cidão, no Bom Motivo, Filial, Sem saída e tantos outros. Como, em tempos passados, no Xodó da Paulista, no Bar Brasil, Vou Vivendo, Clube do Choro, Bar da Virada, todos passados para as páginas viradas da História. Sempre que me encontrava, rigorosamente sempre, mandava uma do repertório do Orlando Silva, nossa paixão comum, do qual era grande conhecedor. Nessa noite não foi diferente:
Esta será a última canção
Que cantarei ao me despedir
Depois verás então
Em breve eu partir...(1)
Que cantarei ao me despedir
Depois verás então
Em breve eu partir...(1)
Jamais poderia desconfiar do sentido profético dessas palavras. O telefone tocou ontem à noite e a voz da minha amada amiga Roberta Valente já denunciava a tristeza. Nosso querido Armando Colacciopo, o Armando dos bichinhos, sentiu-se mal ao final da mdrugada de ontem. De repente, como só fazem jus os escolhidos, o anjo das nossas madrugadas solitárias bateu asas pra tocar sua flautinha na morada dos Ancestrais.
Foram mais de vinte anos de convivência nas noites perdidas de São Paulo. E posso testemunhar, sem medo, que salvou minha vida em muitas oportunidades. Quantas e quantas vezes, sozinho pelos bares, enchendo a cara por falta de coragem de voltar pra casa, na certeza de que todas as almas conhecidas teriam viajado sem me comunicar, aparecia ele com seu abraço tímido, sua paz infinita estampada no rosto às vezes cansado; sentava, jogava cinco minutos de conversa fora e, cumprida sua angélica missão de me resgatar do naufrágio, seguia na sua empreitada de todas as madrugadas durante mais de trinta anos.
Se a nossa missão, enfim, é resistir, Armando talvez tenha sido o maior. Militante político convicto e incansável, teve seus problemas com a repressão da ditadura militar e buscou salvaguarda entre os hippies da década de 70. Com eles aprendeu que se pode viver de artesanato. Mesmo formado em engenharia naval pela Politécnica da USP, recusou-se durante toda a sua vida a adotar os padrões de vida burguesa que tanto repugnavam aos seus ideais de igualdade e justiça. Nunca teve patrão, sempre fez o que bem quis. “Foi assim desde criança”, lembrou alguém, hoje, ao lado do caixão. Sempre vendendo os bichinhos feitos pela inseparável companheira Vera Bertazonni, andando de ônibus ou de bicicleta, nunca pedindo nada pra ninguém, viveu sua vida, criou os filhos, provou-nos ser possível.
Começou pelos bares dos jardins, depois acompanhou a migração do movimento noturno para Pinheiros e a Vila, mas enquanto o último reduto do lado de lá respirou – o Xodó -, não deixava de dar sua passadinha, “pra depois descer”, como ele sempre dizia. Conheci-o no Bom Motivo, onde dividimos a mêsa em muito fim de noite, jornadas encerradas, em companhia de amigos como Roberto Lapiccirella e Waltinho do violão. Há anos planejava fazer com ele uma entrevista, pra registrar suas histórias. No nosso derradeiro encontro de terça, ainda falei: “A gente se conhece há 20 anos e você nunca foi lá em casa.” Peguei seu telefone e a promessa de levar D. Vera pra conhecer a Rosa. Não deu tempo de nada. Liguei para sua casa, pela primeira vez em vinte anos, pra saber o horário do enterro.
A Vila Madalena veste luto, assim como esta página. Pelas esquinas escuto violões, flautas e cavaquinhos em funeral. Soube que muitos bares ontem baixaram suas portas em homenagem ao seu anjo-guerreiro. Resta a mim, de novo, e sempre, chorar. Como choro escrevendo estas linhas, lembrando estas e tantas outras histórias. Porque a minha solidão cada dia tem menos remédio. Porque o preço da sobrevivência é ter que ver os nossos melhores tombando. Mas a nossa resistência se nutrirá de seu sangue e de seu sopro. E se fortalecerá para que não tenha sido em vão a sua luta.
Vou beber pelas madrugadas a saudade do amigo. Tuli tuli tulá... Chorar em companhia da Cobrinha Azul, do Zé Celso, do Pingüim, do Inconsciente Coletivo, do Marciano Erótico, do Libertadores (o porquinho verde que batizei em 99), tantos e tantos personagens que povoaram minha trajetória boêmia nesses anos todos, hoje órfãos.
“É um trabalho de teatro. A vida é um palco e a gente se diverte, mas hoje eu tenho lidado mais com o povo. Antigamente era mais a classe média, que agora freqüenta lugares fechados. Não tenho mais acesso a eles. Meu público é estudante, ator de teatro, jornalista...”(2)
Fechadas as cortinas, meu velho, você que foi o maior, fique com o aplauso do povo. Do teu povo.
(1) A última canção, fox-canção de Guilherme Augusto Pereira, gravada por Orlando Silva em 1937
(2) Fonte: Guia da Vila